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Justiça transicional e partidos políticos

Por justiça transicional entende-se o ajuste de contas com o passado au- toritário por meio de instrumentos legais ou extralegais, quer por iniciativa da elite política, quer de organizações da sociedade civil, durante o período

de mudança de regime. Os estudos sobre a justiça transicional publicados nos últimos 20 anos têm incidido essencialmente sobre uma de três di- mensões. Em primeiro lugar, existe uma predominância dos estudos que incidem sobre a dimensão legal da justiça transicional, nomeadamente atra- vés do estudo do papel do sistema judicial, dos instrumentos legais usados para punir ou perdoar a elite e os colaboradores da ditadura, assim como do papel do direito internacional na criação das estruturas necessárias à pu- nição, reconciliação ou mesmo perdão (Teitel 2000). Em segundo lugar, existe um interesse crescente sobre a dimensão social da justiça transicional, em especial sobre os meios extralegais mobilizados pelas organizações da sociedade civil, assim como o impacto dos legados de repressão sobre a memória coletiva (Olsen, Payne e Reiter 2012). Por fim, a dimensão polí- tico-institucional da justiça justiça transicional só recentemente começou a ser objeto de análise sistemática, onde se incluem os estudos sobre a in- fluência do equilíbrio de poderes e das estratégias partidárias, sobre o im- pacto destas medidas na confiança nas instituições, ou sobre as oportuni- dades ou constrangimentos político-institucionais que influenciam o processo decisório (Williams, Fowler e Szczerbiak 2005; Grodsky 2011; Horne 2012). É sobre esta dimensão que este capítulo se centra.

O interesse das ciências sociais pela dimensão política da «justiça tran- sicional» remonta à teoria de Samuel Huntington. Em 1991, antes mesmo de ter sido cunhada a expressão «justiça transicional», Huntington con- cluiu que o carácter mais ou menos punitivo do ajuste de contas com o passado era amplamente determinado pelo equilíbrio de poderes que, por sua vez, resultava do modo como o regime autoritário dava lugar à de- mocracia (Huntington 1991). Segundo o autor, é de esperar que transições por rutura criem uma janela de oportunidades para o ajuste de contas com o passado; ao passo que transições negociadas deverão condicionar a ação dos agentes potencialmente interessados em ajustar contas com o passado. Ao longo das duas últimas décadas, a literatura sobre justiça transicional tem reconhecido a relevância da dimensão política lato sensu, mas tem de- dicado relativamente pouca atenção à questão das dinâmicas político-par- tidárias. Que partidos formam o sistema partidário quando a questão da justiça transicional entra na agenda e como se distribuem ao longo do eixo esquerda-direita? Que estratégias adotam? Que uso fazem dessas questões durante as primeiras campanhas eleitorais? Como calculam os custos e os benefícios associados ao seu envolvimento no debate? Para compreender a existência ou a ausência de vontade política de ajustar con- tas com o passado, é fundamental analisar as dinâmicas político-partidárias no período em questão.

Em Espanha, o tema da justiça transicional foi afastado da agenda política pela maioria dos partidos e mantido fora dela pelo PSOE ao longo dos governos de maioria absoluta até à sua derrota eleitoral em 1996 (Aguilar Fernández 2002). Nas transições que marcaram a década de 1990 na Europa, vários partidos manifestaram a sua oposição à adoção de medidas de justiça transicional, em especial os chamados partidos pós- comunistas, mas não só, fundamentalmente nos países em que a transi- ção à democracia se fez por via da negociação (David 2003; Calhoun 2004; Zolkos 2006). No caso português, os partidos de direita – que não são contudo uma reorganização da elite anterior, ao contrário da AP ou dos partidos «pós-comunistas» da Europa de Leste – não se posicionaram abertamente contra o ajuste de contas com o passado, apesar da pressão exercida pela extrema-esquerda, optando por se manter fora do debate e da decisão. Esta diferença em relação a outros casos já estudados necessita de ser analisada e explicada.

Considerando que não existem até à data grandes linhas teóricas ou hipóteses de investigação que possam constituir um ponto de partida para a análise das dinâmicas político-partidárias na justiça transicional, este estudo procura dar resposta às seguintes questões: Quais as estratégias adotadas pelos partidos políticos portugueses para dar resposta ao apelo à punição dos ex-membros da PIDE/DGS? Que tipo de alianças políticas se formaram quer na busca de medidas punitivas quer da sua rejeição? Que tipo de obstáculos institucionais se colocaram aos apoiantes de uma justiça transicional punitiva?

Com o objetivo de mapear a posição dos partidos políticos portugue- ses no ajuste de contas com a PIDE/DGS e de responder às questões acima, foram tidos em conta os seguintes aspetos: em primeiro lugar, a natureza dos atores que dominaram a transição à democracia em Portu- gal, o papel peculiar das Forças Armadas e as alterações no equilíbrio de poderes ao longo dos primeiros dois anos; em segundo lugar, a origem e o nível de fragmentação inicial do sistema partidário português e o posi- cionamento dos partidos no continuum esquerda-direita; em terceiro lugar, as estratégias dos partidos antes e depois das primeiras eleições livres e justas. Ao longo da análise, foram tidos em conta três outros as- petos salientados pela literatura: o desvio do espectro político para a es- querda; o impacto dos chamados «Pactos MFA/Partidos» na relação entre civis e militares, assim como na institucionalização do poder político mi- litar; e o recurso a uma legalidade revolucionária quer por parte da ala mais radical do sector militar quer do Partido Comunista Português (Pinto 1989; Ferreira 1993; Bacalhau 1994; Stock 1985; Lobo 1996; Ro-

binson 1996). Estes aspetos foram tidos em conta ao longo da análise, ainda que por razões de espaço não tenha sido possível explorar ou men- cionar cada um deles ao longo do capítulo.

Neste estudo sobre o posicionamento dos partidos políticos portu- gueses no debate e na decisão sobre um dos aspetos da justiça transicional nos primeiros anos de transição à democracia, procedeu-se à análise qua- litativa das seguintes fontes: legislação publicada no âmbito da justiça transicional; imprensa diária e semanal; imprensa partidária; programas eleitorais; debates da Assembleia Constituinte; e arquivos militares. Todos os dados analisados dizem respeito ao período entre 1974 e 1976. Proce- deu-se ainda à triangulação dos dados recolhidos através de entrevistas semiestruturadas a atores militares direta ou indiretamente envolvidos no processo.

A transição por rutura, a origem do sistema