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Normatividade abstrata (universalismo) contra sensibilidade histórica e sensível

ao contexto (relativismo)

Pode parecer que, ao apelar a mais sensibilidade histórica e contextual, nos encurralamos a nós mesmos numa posição relativista e perdemos a capacidade de julgar o que é preferível normativamente. No campo dos direitos humanos, este problema foi extensamente discutido e rotulado como «debate universalismo versus relativismo».7

6 Itálico da autora.

7 Estes rótulos são de certo modo enganadores, visto que as teorias propostas pelos

relativistas são, ponto por ponto, tão universais nas suas ambições como as que são pro- postas pelos universalistas, mas, ainda assim, mantenho-os aqui. Para mais desenvolvi- mento das ideias desta secção, ver Barahona de Brito e Whitehead (2009).

A crítica ao ponto de vista normativo demasiado abstrato, como re- capitulado acima, é que ele ignora contexto e história e tende a cometer o pecado do padrão (uma medida serve para tudo, uma medida que é estabelecida com referência à prática ocidental liberal, em cuja base está o a-historicismo liberal). Os comunitaristas argumentaram, por exemplo, que não há nenhum «código moral mínimo e universal» (Walzer 1987, 24) e que os padrões abstratos teriam de ser «considerados em termos tão abstratos que pouca utilidade teriam ao pensar-se em classificações espe- cíficas» (Walzer 1983, 8). Assim, em vez de um padrão «eterno», existem diversos padrões que provêm de condições históricas e culturais da vida real. O contra-argumento «universalista» é que há valores partilhados uni- versalmente para além da cultura e do contexto e que, ao apelarem à es- pecificidade contextual e à história, os relativistas perdem a capacidade de julgar e de condenar grosseiras violações de direitos humanos que podem ser justificadas com fundamentos culturais.

Se vamos aceitar que cada sociedade encontrará as suas próprias so- luções – soluções que surgem orgânica e historicamente de contextos es- pecíficos e variados –, como podemos manter a capacidade de julgar e determinar o que é melhor ou pior? Compreendo ambos os pontos de vista e, por isso, instintivamente procurei conseguir uma síntese do que habitualmente se considera opiniões mutuamente exclusivas. Creio que estas perspetivas não são forçosamente antagónicas e podem (de facto, devem) ser ambas utilizadas, desde que ambas admitam que são parciais.

Ajudará compreender que os universalistas fizeram concessões aos re- lativistas e que os relativistas tendem a utilizar parâmetros universais de um tipo ou outro. Rawls, por exemplo, argumentou inicialmente que havia um ponto arquimediano original a partir do qual se podia julgar uma sociedade «da perspetiva da eternidade» (1971), mas, mais tarde, re- conheceu que a sua teoria talvez só funcionasse em contextos liberais de- mocráticos (1993), e posteriormente admitiu que podia não ser possível exportar o liberalismo para todo o lado e que sociedades não agressivas, «decentes e bem ordenadas» e com um conceito comum de justiça, me- canismos razoáveis de consulta e respeito por alguns direitos básicos po- diam ser o melhor que havia a esperar (1999). Ao contrário, Berlin e Wil- liams, que podem, tanto um como o outro, ser considerados críticos das perspetivas platónica e kantiana, apesar do seu ímpeto «relativizador» e «historicizador», revelam um «kantianismo sub-reptício», por assim dizer, quando apresentam um padrão universal mínimo para lhes permitir dize- rem alguma coisa sobre sociedades humanas. O pluralismo positivo de Berlin propunha a liberdade como valor universal, com o seu mínimo de-

nominador comum a transcender tempo e lugar. Williams propõe a «exi- gência básica de legitimação» (BLD, basic legitimation demand) como uma espécie de parâmetro universal com o qual medir o desempenho de dife- rentes sociedades ou regimes. Portanto, se, conforme o próprio reconhe- ceu, o parâmetro universal de Rawls não resulta globalmente, a relativiza- ção de Berlin e Williams também tem os seus limites. Esta necessidade de estabelecer um parâmetro universal e abstrato parece sugerir que os argu- mentos baseados no contexto do relativismo não funcionam. Contudo, eu diria que o dilema universalismo versus relativismo, em parte, é falso.

Claramente, há um género de relativismo e um tipo de universalismo que não podem ser conciliados: o relativismo radical não deixa espaço de manobra, e até dá um tiro no pé (a «contradição performativa»); en- quanto o universalismo do tipo que equaciona a «boa sociedade» com um conjunto muito particular e frequentemente mal definido de valores ocidentais (por exemplo, o estilo de vida americano/American way of life) não deixa espaço para a variação, é teoricamente pobre e viola o próprio princípio que afirma defender (a liberdade – neste caso, a liberdade de sociedades diferentes de organizarem as suas políticas como escolherem). No entanto, existe um amplo meio-termo em que é possível alguma in- tegração.8

A condição para isto funcionar é que cada ponto de vista seja reco- nhecido como parcial e como um de dois «modos de ver» que são ine- rentes à maneira como os seres humanos se relacionam com o mundo. Uma das formas de reconhecer a parcialidade é notar que, embora a po- sição de partida destas duas perspetivas seja diferente, a jogada final é a mesma. O universalista parte do geral para o particular (estabelece uma medida de, digamos, liberdade e olha para a realidade para ver se está a ser correspondida), enquanto o relativista avança do particular para o geral (observa como as coisas são feitas localmente, toma em atenção grande variabilidade e retira conclusões). Contudo, para ambos a meta é assegurar que todas as pessoas são protegidas de poder arbitrário do Es- tado e vivem em condições de dignidade. Pode ser precisa uma medida mínima do que é necessário para a dignidade, mas o espaço de variação é largo. O ponto-chave aqui é que não temos de tomar partido por um ponto de vista ou pelo outro, mas podemos (e fazemo-lo) utilizar ambas as abordagens com consciência das limitações de cada uma.

8 Embora reconheça que estão em jogo questões epistemológicas e deontológicas

muito mais profundas, concentro-me aqui apenas nos aspetos relativos aos direitos hu- manos deste debate.

É igualmente possível uma conciliação das duas visões se admitirmos que elas são as duas faces da mesma moeda: duas maneiras de ver que são, intrinsecamente, modos humanos de ver. Somos portadores e prati- cantes de ambas as perspetivas. Podemos falar de árvores em geral, desta ou daquela árvore em particular e podemos reter uma imagem de uma Árvore-arquétipo. Conseguimos ver as coisas de dentro para fora (do nosso ponto de vista), pôr-nos na pele dos outros e, até, adotar o «não ponto de vista» de Sidgewick, que Williams ridicularizou. Experimenta- mos a universalidade e o relativismo e vemos as coisas através das suas lentes duais na nossa vida quotidiana (a música versus uma sonata de Cho- pin ou uma raga indiana; a matemática versus uma aplicação em particular; a «mãe» arquetípica ou variações culturais dela [Demeter, Kwan Yin ou Durga] versus mães; a experiência de «unificação» na meditação versus uma experiência culturalmente delimitada de divindade). Elas não são antagó- nicas: são interdependentes. São duas perspetivas constantes e em intera- ção que exibimos nas nossas tentativas de compreender (e julgar) «con- dutas» humanas (como diria Oakeshott) – incluindo a nossa, claro.

Voltando à justiça transicional e aos estudos da memória, tal como os universalistas e os relativistas nos debates sobre direitos humanos têm mais em comum do que parece à primeira vista e beneficiariam de com- binar as suas visões e admitir a sua parcialidade, os pontos de vista mais abstratos e normativos ficariam a ganhar com uma maior fundamentação em realidades locais.