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Justiça transicional e luta política

Depois de assinado o armistício, o saneamento tornou-se o assunto central de uma relação triangular entre o governo civil, os partidos polí- ticos e o governo militar. Os decretos de dezembro de 1943 e abril de 1944 tiveram resultados controversos e, em alguns casos, o Partido Co- munista (PCI – Partito Comunista Italiano), em divergência com as comis sões nomeadas pelo Governo, tomou a iniciativa de despedir os funcionários públicos que ainda mantinham o seu lugar, mas que tinham apoiado o regime anterior. Enquanto a guerra civil se intensificava no Norte e as tropas aliadas tinham começado a avançar de novo, o jogo político tornou-se mais complicado. O Governo foi confrontado com o dilema de decidir se violava o princípio legal de não aplicação retroativa das leis e punia atos que anteriormente tinham sido não só legais como obrigatórios; e também se oferecia compensação àqueles que tinham sido marginalizados ou perseguidos, bem como se impedia explosões descontroladas de vingança por meio de penas exemplares que não pre- judicassem o restabelecimento da paz social (Leebaw 2008). O único re- sultado desses esforços foi a nomeação, em fevereiro de 1944, de um «alto-comissário para o saneamento do fascismo». Quase logo se perce- beu que as possibilidades operacionais desta função estavam limitadas pelas discordâncias entre as duas frentes políticas, constituídas, de um lado, por aqueles que acreditavam que, a fim de promover a pacificação social, era preciso primeiro acelerar e intensificar o saneamento e, do outro lado, por aqueles que pensavam que, para atingir o mesmo obje- tivo, era necessário manter os saneamentos no mínimo.

As coisas não melhoraram quando o Governo foi remodelado numa base decididamente mais antifascista, em abril de 1944. Continuava a ser difícil identificar as responsabilidades dos quadros intermédios do fas- cismo. Para o fazer, seria preciso acusar a classe média como um todo, e isso não era certamente a intenção dos partidos moderados. Além disso, quando os britânicos e os americanos viram o crescimento de um movi- mento de partisans que era dominado pelo PCI nas áreas ainda por li- bertar, passaram a opor-se a um saneamento excessivamente rígido,

crendo que muitos antigos fascistas poderiam dar um apoio útil aos es- forços anticomunistas depois de a guerra acabar.

Os liberais eram a favor de uma solução moderada para o problema, defendendo que, apesar de ter cometido atos criminosos, o regime fas- cista se tinha mantido dentro dos limites legais formais e, por consequên- cia, aqueles que o serviam não podiam ser acusados de um crime, a menos que tivessem cometido ofensas específicas. Não obstante, devido também às notícias que chegavam da RSI, onde as atrocidades cresciam, prevaleceu a linha dura dentro do Governo. Restabeleu-se a pena de morte e foi criado um Alto-Comissariado para a punição dos crimes e ações ilegais do fascismo, para compensar as vítimas do fascismo – pelo menos a nível psicológico –, revendo punições de natureza política que tinham sido aplicadas a algumas pessoas durante o período fascista. Outra novidade significativa realçou a reviravolta política: as sentenças defini- tivas nos processos de saneamento foram confiadas a tribunais especiais, constituídos por um juiz ordinário e um júri de sete pessoas «politica- mente irrepreensíveis» (Woller 1997).

Depois de Roma ser libertada, foi formado um governo em que es- tavam representados os seis partidos do CLN. O saneamento dos fas- cistas tornou-se uma prioridade e foi alargado à Polícia, ao sistema judi- cial e ao poder económico. O risco de ver a estrutura do Estado desmoronar-se na sequência do despedimento de tantos funcionários públicos aumentou a cautela dos democratas-cristãos (DC – Democrazia Cristiana) e do Partido Liberal (PLI – Partito Liberale Italiano) e levou o governo militar aliado a ficar desconfiado e contra um «saneamento totalitário».

O verão de 1944 marcou uma nova fase tanto no Centro-Norte como no Sul do país. O Governo publicou um decreto a estabelecer sanções contra o fascismo (Canosa 1978). Membros do Governo fascista e res- ponsáveis do partido seriam julgados pelo Supremo Tribunal de Justiça, enquanto os de níveis mais baixos compareceriam diante de tribunais de civis ou militares. O saneamento foi transformado numa arma de luta política e os partidos de esquerda, com as classes mais abastadas em vista, pretendiam tirar o máximo partido dele. O Alto-Comissariado foi res- taurado e recebeu poderes mais alargados; poderes que alcançavam as Forças Armadas, as grandes empresas e aquelas que detinham concessões para o fornecimento de serviços públicos. Por sua vez, a quem fosse con- denado era permitido apelar para uma comissão central nomeada pelo primeiro-ministro, a qual podia rever os julgamentos feitos pelas comis- sões provinciais. O PCI conseguiu que um dos seus membros mais im-

portantes, Mauro Scoccimarro, fosse nomeado como vice-alto-comissário para o saneamento da administração pública e muitos membros do par- tido integraram o aparelho de saneamento a nível local, dando origem a acusações da DC de que os comunistas estavam a usar as suas posições para persuadir pessoal administrativo e chefias que antes tinham perten- cido ao PNF a juntar-se a eles, de modo a escapar a punições (Scoppola 1977, 276).

Ao mesmo tempo, para norte da linha da frente, intensificaram-se os saneamentos «espontâneos» levados cabo pela resistência. A dureza dos conflitos originou um rápido aumento do número de atos de vingança e de retaliação contra os suspeitos de simpatia pelo fascismo, no passado ou no presente. A ala mais radical do movimento dos partisans não tinha intenção de esperar pelo fim da guerra para ajustar velhas contas e não tinha paciência para leis e procedimentos. À medida que os fascistas e os alemães recuavam, um saneamento político de facto nos territórios liber- tados – onde as administrações que tinham sido demitidas ou tinham fugido foram substituídas por novos responsáveis do partido – foi acom- panhado por um saneamento sangrento que foi uma mistura de guerra antifascista e de luta de classes. A juntar às compreensíveis represálias, ir- rompeu em cena a «necessidade de ajustar velhas contas com um fas- cismo que rejeitava qualquer tipo de considerações morais, jurídicas ou humanas» (Woller 1997). Embora alastrassem ações sumárias de vingança sem a mínima pretensão de justiça, foi criado um aparelho extrajudicial de tribunais populares e comissões de justiça ad hoc constituídas por membros dos partisans. Destas sentenças não havia possibilidade de apelo e o aparelho expandiu-se sem resistência nos dias imediatamente a seguir à queda da RSI.

Uma vez quebrada a resistência alemã, em Cassino, os Aliados, vendo-se em áreas que anteriormente tinham sido administradas por fas- cistas impenitentes que tinham apoiado a RSI, adotaram uma política mais radical de saneamento, com a qual tentaram livrar-se de elementos potencialmente traiçoeiros e prosseguir com demissões em massa e o aprisionamento de muitos funcionários públicos. Contudo, em breve se aperceberam de que isso conduziria a uma paralisia administrativa e os obrigaria a acarretar uma enorme quantidade de trabalho que apenas atrasaria o seu esforço de guerra. Por consequência, viram-se na necessi- dade de optar por medidas menos drásticas.

Enquanto a guerra civil ainda decorria, a expansão de saneamentos legais e os excessos dos saneamentos «selvagens» instilaram medo de uma destruição iminente da hierarquia social entre os antifascistas mais con-

servadores, em particular nas regiões do Sul. No sistema judicial, cujos membros tinham em grande medida continuado a trabalhar e avançado nas suas carreiras durante o período fascista, estes resistiram com deter- minação quando confrontados com a aplicação de uma lei que, devido à natureza da emergência, forçava os limites dos princípios naturais dos direitos. A sua resistência passiva consistiu em desobediência, atrasos e minúcias processuais. A fim de contrabalançar esta forma de bloqueio, os partidos de esquerda intensificaram medidas punitivas contra a admi- nistração: 309 dos 420 senadores foram suspensos dos seus cargos e todos nos níveis mais altos da administração pública foram afastados (Missori 1978, 152-155). O secretário-geral do PCI, Palmiro Togliatti, apoiou esta linha por algum tempo, defendendo a necessidade de o «sagrado ódio do povo» se manifestar contra aqueles que tinham espezinhado a sua li- berdade durante 20 anos. Não tardou, porém, a aperceber-se dos sinais de uma crescente intolerância da classe média – em particular no Sul – relativamente a esta forma vingativa de jacobinismo e isso levou-o a mudar de tática. Embora o PSI e o Partido da Ação (PdA – Partito d’Azione) deixassem o Governo, o PCI manteve-se e aceitou abrandar os saneamentos.

Perto do fim da guerra, a iniciativa coube de novo aos Aliados, que pressionaram o Governo para que introduzisse leis que garantissem o sa- neamento do setor económico e criasse tribunais que julgassem os cul- pados de colaboracionismo com os alemães (Harris 1957). Isto, ao mesmo tempo que impediu que os industriais que tinham enriquecido a negociar com o inimigo ficassem impunes, também ajudou a evitar que o inevitável ímpeto de vingança crescesse até ao caos incontrolável. Pou- cos dias antes da rendição do inimigo, o Governo de Roma decretou a criação de tribunais civis extraordinários para punir crimes de colabora- cionismo. O objetivo era contrabalançar as ações dos comités locais do CLN, sendo os novos tribunais encarregados igualmente de identificar cidadãos de entre os quais podiam ser escolhidos, por votação secreta, quatro membros de júri para se sentarem ao lado de um juiz. O decreto estabelecia que qualquer pessoa que detivesse alguma forma de autori- dade dentro da RSI era passível de condenação, que os tribunais aplica- riam o código de justiça militar em tempo de guerra, que a atividade dos tribunais duraria até seis meses e que se podia recorrer para o Supremo Tribunal.

Os saneamentos «selvagens» no Norte