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Os saneamentos «selvagens» no Norte e as desavenças na Frente Antifascista

Apesar destas precauções formais e do facto de que, em dezembro de 1944, o CLN do Norte se comprometeu a obedecer às ordens das auto- ridades aliadas durante e depois da libertação, os dias a seguir à insurrei- ção de 25 de Abril de 1945 e à queda da RSI ficaram marcados por uma sangrenta onda de justiça sumária. As mortes e os internamentos arbitrá- rios em prisão prolongaram-se por semanas sem qualquer intervenção dos Aliados, tendo como resultado um número de mortes estimado al- gures entre 12 000 e 15 000 (Oliva 1999). Os comunistas permitiram que a vingança dos partisans seguisse o seu curso e apoiaram uma política de reconhecimento de facto consumado, de modo a «promover o mito de que o país, graças à luta pela liberdade, se tinha libertado por si próprio» (Woller 1997, 351). Contudo, quando as represálias em algumas áreas se transformaram num instrumento de luta de classes, depararam-se com a resistência dos Aliados, que se ergueram contra aqueles tribunais popu- lares improvisados.

A reposição da legalidade e os primórdios da justiça transicional su- jeita a controlos formais não foi fácil. Durante os primeiros meses após o fim das hostilidades, comités operários controlados pelo PCI decreta- ram ilegalmente saneamentos maciços, tanto os tribunais populares como os militares pronunciaram e executaram muitas penas de morte e alguns atos de vingança contra colaboracionistas de ambos os sexos foram extremamente violentos. Os Aliados atribuíram a si mesmos o papel de supervisionar os saneamentos no sector económico, mas em muitos casos permitiram que os comités que se tinham formado para esse propósito específico agissem sem interferência.

Contrariamente ao que afirmam alguns historiadores, não é possível qualificar a experiência italiana como um saneamento fracassado (Mercuri 1988). Em resultado da pressão da opinião pública e muitas vezes limi- tando dramaticamente os direitos dos acusados, os tribunais civis extraor- dinários impuseram penas duras – com frequência, a pena de morte. Só gradualmente abrandaram a sua atitude: apenas à medida que aumentou a autoridade de juízes profissionais neles integrados e declinou a ameaça de jurados com intenções políticas. Entre 1945 e 1947, houve quase 30 000 julgamentos por colaboracionismo, dos quais mais de mil resultaram em pena de morte (embora menos de um décimo das sentenças fossem exe- cutadas). Os julgamentos não tinham apenas a função de atuar contra in-

divíduos; também levaram a tribunal todo um sistema político, pro - curando condenar uma ideologia que tinha sido a inspiração das ações desse sistema (Algardi 1958; Neppi Modona 1984; Domenico 1991). O seu papel político não se perdeu nem nos partidos de esquerda nem nos de centro e de direita, que, centrados nos saneamentos, se empenha- ram numa batalha decisiva pela futura direção do país. A DC foi espica- çada pelas palavras do papa Pio XII, que, em outubro de 1945, fez saber que estava preocupado em assegurar que a sociedade italiana recuperava a paz, depois das feridas que lhe tinham sido infligidas durante a guerra. Os democratas-cristãos começaram a apoiar a ideia de esquecer as ofensas e a violência do passado, preferindo olhar para o futuro. O PLI também sentia que o papel do CLN se tinha esgotado. O conflito com a esquerda ainda se agravou mais quando o Alto-Comissariado para os saneamentos foi confiado, pelo Governo dirigido pelo líder partisan Ferruccio Parri, ao líder do PSI Pietro Nenni, o qual tinha manifestado intenções particular- mente intransigentes a respeito desse assunto. Enquanto, no Sul da Itália, continuava a crescer a intolerância dos processos de saneamento que ti- nham afetado um grande número de funcionários públicos, o alto-comis- sário pediu uma extensão para os tribunais civis extraordinários e declarou a sua intenção de processar, para além dos níveis superiores da função pú- blica, também quadros de empresas privadas. As desavenças levaram o PLI a abandonar o Governo, causando a sua queda.

Em poucos meses, o novo primeiro-ministro – o líder da DC, Alcide de Gasperi – encerrou o Alto-Comissariado, unificou o aparelho de sa- neamento e transferiu as suas responsabilidades para o gabinete para as sanções contra o fascismo, o qual respondia diretamente perante o gabi- nete do primeiro-ministro. As investigações passaram dos funcionários públicos para aqueles que tinham atuado como informadores da polícia política do regime fascista. A influência do CLN nos processos de san- ções foi virtualmente eliminada quando, entre 1946 e 1947, o saneamento foi completado. Das quase 20 000 pessoas saneadas, muitas apelaram e foram tratadas com mais indulgência pelos órgãos de recurso. Os partidos de direita, revitalizados pelo sucesso do movimento Uomo Qualunque (Homem Comum) – que tinha feito da luta tanto contra os saneamentos como contra os partidos do CLN a sua bandeira principal – nas eleições para a Assembleia Constituinte, ficaram insatisfeitos e, em fevereiro de 1948, conseguiram assegurar a reabilitação daqueles que tinham sido sa- neados (Setta 1975).

Apesar de tudo, a justiça transicional alcançou a maior parte dos re- sultados esperados, pois a imprensa, as universidades e os manuais esco-

lares foram desfascizados. Os julgamentos contra personalidades bem conhecidas do regime e da RSI levaram os italianos a examinar «a cons- ciência coletiva» e a reiteração da condenação pública do regime de Mus- solini (Woller 1997, 551). A ala mais radical do fascismo foi destruída em consequência da justiça sumária, tendo ficado presos mais de 20 000 dos seus membros. A derrota da monarquia no referendo de 2 de junho de 1946 tornou fútil qualquer esperança ou receio da restauração do ancien régime sob qualquer forma. Isto obrigou o PCI, que não queria fazer um inimigo da massa de ex-fascistas, a aceitar a amnistia política proposta pelo rei Humberto II, que tinha sucedido a seu pai. A medida, que foi redigida e assinada por Togliatti, na qualidade de ministro da Justiça, per- mitiu a vários milhares de fascistas e a muitos dos responsáveis pela onda de violência antifascista da primavera de 1945 serem libertados da prisão (Franzinelli 2006). Isto requereu a comutação, redução e cancelamento de sentenças, permitindo aos juízes uma ponderação mais liberal. A pro- posta foi acompanhada de um relatório em que era defendida a necessi- dade de estabelecer um «regime de paz e reconciliação para todos os bons italianos» (Canosa 1978, 126).

Embora a justiça transicional não tenha terminado com a amnistia, fez uma inflexão decisiva. O número de presos por crimes políticos pas- sou para metade e, no espaço de um ano, esse número tinha sido redu- zido a 2000, apesar de os julgamentos continuarem até 1950. Muitos cri- mes ficaram sem pena e o Supremo Tribunal foi criticado pela sua tendência para mitigar as sentenças pronunciadas pelos tribunais inferio- res. Não obstante, o próprio PCI se apercebeu de que, numa altura em que o antifascismo tinha esgotado o seu impulso inicial e o clima inter- nacional da Guerra Fria estava a despontar, mais intransigência só lhe po- deria ser prejudicial.

A legitimação da democracia e a «política