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A legitimação da democracia e a «política do passado»

O colapso do regime em 25 de julho de 1943, os acontecimentos san- grentos da guerra civil, os julgamentos sumários, os procedimentos legais dos tribunais encarregados de julgar as ações criminosas de que eram acusa dos membros destacados do regime e da RSI e, por último, mas não menos importantes, os saneamentos, tudo isto teve o efeito de des- prover a experiência fascista de legitimidade aos olhos de muitos italianos que se tinham sujeitado ao regime autoritário. No entanto, isso não foi

suficiente para conferir legitimidade ao regime democrático, pois este carregava o fardo das consequências da derrota numa guerra devastadora, de 18 meses de um conflito fratricida numa parte do país e ocupação mi- litar na outra, e das divisões por demais óbvias entre as forças antifascistas, que, apesar de unidas no CLN, tinham multiplicado os desentendimen- tos. O que era agora necessário era uma política específica do passado, isto é, uma série de medidas com vista a induzir a população e a elite so- cial a reverem o significado do passado fascista em termos daquilo que os partidos democráticos esperavam alcançar no presente.

A legitimação da recém-nascida democracia italiana foi atingida por meio de diversas medidas, algumas das quais tinham a ver com o controlo político da dinâmica social e do conflito. Dentro deste contexto, o peso do legado autoritário pode ser medido com base numa multiplicidade de indicadores, que vão da influência persistente de alguns dos atores que ti- nham feito parte da coligação dominante do regime autoritário até à pre- servação de algumas das estruturas que o fascismo tinha criado a fim de facilitar a intervenção do Estado nas áreas económica e social. Aqui, limi- tamo-nos a destacar alguns dos fatores que tiveram uma relação mais direta com os esforços da nova classe dirigente para tirar lições do passado:

(a) O primeiro e mais importante destes fatores foi o resultado do re- ferendo constitucional que levou ao fim da monarquia e à procla- mação da república. Como consequência, a política do passado deu o primeiro passo, condenando aqueles que tinham permitido que o fascismo chegasse ao poder e que o tinham apoiado por mais de 20 anos.

(b) Entretanto, foi feita uma tentativa de tranquilizar os amplos sectores da opinião pública que tinham apoiado o fascismo. Nesse sentido, os prefeitos que tinham sido nomeados no Norte de Itália depois do fim da guerra e em resultado do ímpeto da libertação foram quase todos demitidos dos seus cargos entre 1946 e 1947. O fim dos saneamentos permitiu que o pessoal administrativo expres- sasse o seu apoio ao Estado democrático e renovou a lealdade de muitos funcionários superiores que tinham passado do pré-fas- cismo para o fascismo sem nenhuns problemas de consciência. (c) Teve um papel muito importante o acordo constitucional que per-

mitiu aos maiores partidos, apesar das suas inspirações ideológicas contrastantes, redigirem a magna carta de princípios que criaria as fundações para a nova república italiana, superando temporaria- mente o conflito que tinha sido mais agudo nos anos que tinham

precedido o sucesso do fascismo, e que, em breve, voltaria com o início da Guerra Fria.

(d) A «política do passado» também incluiu a tentativa de eliminar os muitos vestígios simbólicos que o regime fascista tinha deixado (Gentile 2007). A elaboração de uma espécie de religião cívica ba- seada no paradigma antifascista foi, no entanto, obstruída pela in- fluência preponderante que o PCI exercia dentro do movimento dos partisans. A proposta de considerar a resistência como a con- tinuação e conclusão ideal do Risorgimento não obteve aprovação unânime (Paggi 1999) e, até aos anos 1960, apenas administrações locais dominadas pela esquerda construíram monumentos come- morativos das ações dos partisans. A data de 25 de Abril, que co- memora a insurreição antifascista, adquiriu a solenidade de uma celebração de libertação nacional, mas a interpretação do seu sig- nificado dividiu os partidos que tinham partilhado a experiência do CLN (Cenci 1999; Ridolfi 2003; Chiarini 2005).

(e) Dentro deste cenário político, a «integração negativa» dos segui- dores do fascismo teve um papel significativow. Apesar da proibi- ção formal decretada pelas normas transitórias da constituição e confirmada pela Lei Scelba de 1952, foram autorizados a organizar um partido – o Movimento Social Italiano (MSI – Movimento Sociale Italiano) – e a participar em eleições. Esta opção frustrou as tentativas do pequeno grupo neofascista de realizar atividades terroristas e facilitou-lhe a longa marcha através das instituições (Ignazi 1989; Tarchi 1995), que, com o passar do tempo, modera- ram a ideologia inicial neofascista.

A legitimação das instituições democráticas também passou, mesmo que não inteiramente, por quatro níveis – instituições, elites, grupos so- ciais e as massas –, o que permitiu ao novo regime utilizar instrumentos de consenso explorando, embora com um objetivo diferente, os mesmos canais de penetração e mobilização da sociedade civil que o regime fas- cista tinha construído no intuito de estabelecer as bases dos seus planos totalitários incompletos (Morlino 1991).

Um papel-chave na transição do fascismo para a democracia, e na acei- tação ou rejeição das várias componentes do legado deixado pelo regime fascista, foi desempenhado pelos partidos antifascistas. As suas posições foram influenciadas por dois objetivos, que eram, de certo modo, contras- tantes: em primeiro lugar, conseguirem o maior consenso possível daqueles – a maioria dos italianos – que tinham apoiado o regime fascista; e, em se-

gundo lugar, ser-lhes permitido participar legitimamente na governação através do reconhecimento da sua contribuição para a queda da ditadura.

Ao princípio, tanto a DC como o PCI tentaram fazer jogo duplo, apoiando a conveniência da reconciliação nacional ao mesmo tempo que condenavam publicamente o passado fascista e participavam juntos nas celebrações oficiais da resistência. Contudo, com a crise do CLN e a exclusão dos partidos de esquerda do Governo, as coisas mudaram. A DC empenhou-se na deslegitimação simétrica do fascismo e dos «ex- tremos» comunistas, com o intuito de atrair o consenso dos moderados, ao mesmo tempo que abrandava as suas críticas do passado autoritário. Esperava atrair o apoio dos sectores conservadores da opinião pública que, em 1946, tinham votado no Uomo Qualunque (Homem Comum), no PLI ou nos partidos monárquicos (Imbriani 1996) e, com esse obje- tivo, acusou o movimento partisan de se envolver num banho de sangue desproporcionado no que tocava aos crimes fascistas e de uma tendência para subverter a ordem social em nome da luta de classes. Além disso, a fim de penetrar a sociedade civil mais efetivamente, onde já gozava do apoio ativo da Igreja, a DC precisava de chegar a um acordo com os gru- pos que tinham apoiado ativamente o fascismo – em particular, no Sul do país. A rápida obliteração do passado, a par de práticas clientelistas, era o instrumento mais eficaz para alcançar esse resultado.

Em consequência disto, a utilização política das comemorações da resistência passou completamente para a esquerda, que tentou identificar a nação inteira com o antifascismo, dando credibilidade à imagem da re- sistência à ditadura por parte de toda a população italiana. Porém, esta operação, que procurava ultrapassar a brecha na sua legitimidade causada pelo começo da Guerra Fria, teve a oposição da DC e dos partidos do centro e acabou por abrir espaço para uma memória dos partisans de uma batalha travada apenas por uma minoria heroica (Dondi 1999; Luzzatto 2004). Esta memória não podia ser partilhada pela maioria dos italianos, que tinha mantido uma atitude de esperar para ver durante o período da guerra civil, e contribuiu para o isolamento político do PCI.

O debate público sobre o passado fascista