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Os partidos políticos gregos e a justiça transicional

As forças políticas do período de transição (partidos políticos e orga- nizações da resistência) tinham experimentado a repressão dos coronéis de algumas formas diferentes. A severidade da repressão diferiu consoante o partido político. Embora a Junta fosse particularmente dura com os membros da resistência comunista, também não poupou outros mem- bros da resistência cujas origens políticas eram de centro ou de centro- -esquerda, tais como os quadros partidários e intelectuais que tinham es- tado associados com a EK antes do golpe de 1967. A Junta perseguiu igualmente monárquicos que tinham apoiado o rei Constantino, que tinha estado por detrás de um contragolpe abortado em dezembro de 1967, antes de fugir. Os partidos políticos gregos não adotaram uma po- sição consensual sobre a justiça transicional. Embora as questões da jus- tiça transicional não estivessem em primeiro plano nas suas agendas elei- torais, todos os partidos reagiram ao desenvolvimento dos julgamentos,

Quadro 7.1 – Número absoluto e proporção de polícias, guardas e militares processados judicialmente e condenados na Grécia depois da transição para a democracia (1974)

Polícia Guarda Forças Armadas Total

Processado 58 34 99 191

Seguidamente julgados 56 (97%) 33 (97%) 95 (96%) 184

Condenados 32 (57%) 24 (73%) 57 (60%) 113

Fonte: Sotiropoulos (2007, 124). Os números foram calculados com base nos dados disponibiliza-

dos em Kremmydas (1984).

3Ioannides e Dertilis ainda se encontravam na prisão em janeiro de 2010, enquanto

os outros oficiais da Junta condenados, ou tinham sido libertados depois de muitos anos de prisão, ou já tinham morrido.

ao mesmo tempo que manobravam por todos os meios para conquistar posições no sistema partidário pós-1974. Pela parte dos partidos políticos, no tocante a questões da justiça transicional, prevaleceram considerações eleitorais de curto prazo, mais do que princípios claramente formulados.

Como foi observado acima, nas primeiras eleições pós-autoritárias, Karamanlis participou como líder do novo partido de centro-direita, a ND. A EK e o Novas Forças concorreram às eleições numa lista comum (EK-ND), enquanto o mesmo sucedeu com os comunistas pró-soviéticos (KKE) e os eurocomunistas (KKE-Interno) e a Esquerda Democrática Unida (EDA – Eniaia Dimokratiki Aristera). As duas fações do Partido Comunista tinham-se separado em 1968, mas em 1974 apresentaram uma lista eleitoral comum, a Esquerda Unida (EA – Enomeni Aristera). Um partido inteiramente novo foi criado por Andreas Papandreou, filho do antigo primeiro-ministro George Papandreou, que governou de 1963 a 1965. Em agosto de 1974, Andreas Papandreou e políticos de centro-es- querda mais jovens, incluindo Costas Simitis, fundaram um partido so- cialista de esquerda, o Movimento Socialista Pan-Helénico (PASOK – Panellinio Sosialistikó Kínima). Partidos pequenos, entre os quais a EDE, de extrema-direita, participaram igualmente nas eleições gerais de 1974, mas não conseguiram eleger deputados. Como mostra o quadro 7.2, a ND de Karamanlis obteve uma vitória retumbante, com os centristas a ficarem em segundo lugar, os socialistas em terceiro e os comunistas em quarto. Os resultados eleitorais mostram não só a dominância do partido conservador, mas também o facto de que o sistema eleitoral – tradicio- nalmente modelado para facilitar a formação de governos de maioria de um único partido – favoreceu desproporcionadamente o vencedor das eleições. A ND obteve pouco mais de metade dos votos expressos (54,4%), mas desfrutou de uma confortável maioria no Parlamento, com 72% dos lugares (216 em 300).

Tradicionalmente, na Grécia, o Governo no poder consegue influen- ciar a seleção dos juízes superiores (Pikramenos 2002; Magalhães, Guar- nieri e Kaminis 2006). De facto, o executivo em funções designa normal- mente os juízes superiores, que, por sua vez, escolhem os juízes de categorias média e inferior. Por outras palavras, o poder judicial está de- pendente do poder executivo. Se pensarmos que este último estava com- pletamente dominado pelo partido do Governo, então a conclusão é que todos os poderes de Estado estavam numa posição de dependência pe- rante a elite do Governo em funções. Uma disposição institucional como esta significou que, depois da mudança de regime de 1974, o escopo, ritmo e precisão com que a justiça transicional foi aplicada estava nas

mãos do partido do Governo. Mais precisamente, dado que a ND era um partido personalista, fundado e dirigido por Karamanlis, todo o pro- cesso foi efetivamente um one-man show. Depois da transição de 1974, houve algum debate a respeito da razão por que o Governo não tinha agido para implicar mais oficiais das Forças Armadas e da Polícia e fun- cionários públicos superiores (que tinham claramente tido um papel no apoio ao regime autoritário) ou a elite ministerial do regime. Como já foi observado, a hesitação da ND e do seu líder em avançar com um sa- neamento completo dos militares pode ser explicada pelas restrições im- postas como consequência das relações tensas da Grécia com a Turquia. A possibilidade de guerra não podia ser excluída e os militares eram muito necessários. Neste contexto, a demissão de centenas de oficiais a seguir à tentativa de golpe de fevereiro de 1975 foi um passo arriscado.

Quanto aos membros da elite ministerial, oficiais superiores da Polícia e funcionários públicos superiores, o Governo da ND poupou-os ao cas- tigo por duas razões principais: primeiro, Karamanlis compreendeu os efeitos desestabilizadores de políticas punitivas quando afetam um grande número de pessoas; e, segundo, ele tinha consciência de que, pelo menos até 1973, a maioria dos gregos não tinha resistido ao regime au- toritário. Se tivesse optado por um saneamento mais abrangente, então teria sido difícil estabelecer a diferença entre aqueles que realmente ha- viam colaborado com a Junta e a maioria que tinha permanecido passiva, cumprindo os seus deveres como sempre. Karamanlis, alegadamente, ex- pressou o seu ponto de vista do seguinte modo: «Quanto às reivindica- ções de um saneamento mais alargado [...] metade da população grega estaria na cadeia se eu não me tivesse oposto» (Karakatsanis 2001, 153). A ND, completamente dominada pelo seu fundador, apoiou a sua pers-

Quadro 7.2 – Distribuição dos votos e de mandatos no Parlamento nas primeiras eleições pós-autoritárias (novembro 1974) (%)

Votos Mandatos ND 54,4 72,0 EK-New Forces 20,4 20,3 PASOK 13,6 5,0 EA 9,5 2,7 EDE 1,1 – Outros 1,0 – Total 100 100

petiva da justiça transicional – o líder tinha definido o tom e a extensão das medidas punitivas. Isto tornou-se evidente em agosto de 1975, quando o tribunal de recurso de Atenas, que tinha julgado os líderes da Junta por alta traição e amotinação, os considerou culpados e os conde- nou à pena de morte. No espaço de poucas horas depois de as sentenças terem sido proferidas, o Governo anunciou a sua intenção de comutá- -las em penas de prisão perpétua. Karamanlis respondeu ao protesto ge- neralizado que se ergueu dizendo: «Quando dizemos ‘prisão perpétua’, queremos dizer ‘prisão perpétua’. E mandou o ministro da Justiça con- cretizar a decisão do Governo (Τα Νέ , 30 de agosto de 1975, 12).

Os partidos da oposição pensavam de maneira diferente. A coligação eleitoral EK-ND discordava do processo pelo qual a pena de morte fora comutada em prisão perpétua. Não declarou abertamente que a pena de morte devia ter sido imposta; em geral, a EK-ND defendia que a justiça transicional devia ter sido administrada por uma nova instituição judicial independente e que todos aqueles julgamentos deviam ter começado mais cedo e terminado o mais brevemente possível. O líder da EK-ND, George Mavros, argumentava que a Grécia enfrentava problemas internos e de política externa mais importantes e que o Governo devia ter com- pletado os processos punitivos mais rapidamente. Contudo, parece que, devido a restrições constitucionais, a proposta de criar uma nova insti- tuição foi reprovada, se bem que o argumento de que o empenhamento do Governo no processo estivesse provavelmente correto e tivesse sido aventado também por outros partidos.

O PASOK criticou veementemente o Governo, não só por atrasar o processo punitivo, mas também por não ter tomado medidas suficiente- mente punitivas contra os elementos da Junta. Em agosto de 1975, Pa- pandreou exigiu que fosse aplicada a pena capital aos dirigentes da Junta, desvalorizando o argumento do Governo de que todos os partidos da oposição eram, em princípio, contra a pena de morte (Η Αυγή, 26 de agosto de 1975, 7; Ριζοσπάστης, 26 de agosto de 1975, 7). Papandreou re- clamou eleições gerais, visto que, na sua opinião, a decisão do Governo de comutar as penas capitais era sintomática de uma crise política muito mais extensa.

A esquerda comunista rejeitou igualmente a decisão do Governo; no entanto, não foi tão assertiva como o PASOK nas suas reações. Embora o KKE e o KKE-Interior exigissem que fosse executada a decisão do tri- bunal contra os três chefes da Junta, ambos explicavam nas suas declara- ções públicas que a pena devia ser vista no contexto de evitar a queda da democracia no futuro. Na realidade, o KKE era fortemente crítico do

Governo, acusando-o de manter uma «atitude transigente em relação ao imperialismo». Em contraste, o partido eurocomunista insistia em maté- rias processuais, em particular nos factos de que o Governo não tinha consultado os outros partidos antes de comutar a pena de morte, de que não esperara pela decisão do Ministério da Justiça e de que devia reunir novamente o Parlamento, que não estava em sessão naquela altura (Τα Νέα, 26 de agosto de 1975, 10). No entanto, ao longo do evoluir dos jul- gamentos da Junta, a esquerda não foi tão determinada como o PASOK na pretensão de impor as sentenças mais severas que fosse possível contra os envolvidos no golpe de 1967, na repressão do levantamento de 1973 e na tortura de membros da resistência. Alguns dos quadros da esquerda que tinham sofrido no período de 1967-1974 nem sequer apresentaram queixa contra os seus torturadores, enquanto outros não estiveram pre- sentes nos julgamentos.

Em 1967-1974, Papandreou e a maioria dos seus associados políticos viveram no estrangeiro e, quando regressaram, depois da queda da Junta, fundaram o Pasok, que, em termos da habitual escala esquerda-direita, se situava à direita dos comunistas. Estes, apesar de divididos em duas fações autónomas, passaram a maior parte dos sete anos do período au- toritário ou na clandestinidade ou na prisão e sofreram a repressão da Junta. (Isto era verdade sobretudo para os filiados do KKE-Interior, que tinham permanecido no país, enquanto muitos membros do Comité Central e outros quadros do partido tinham estado na Europa de Leste de dominância socialista.) Contudo, depois de derrubado o regime, em 1974, os comunistas, em particular o KKE-Interior, não reagiram tão fe- rozmente como o PASOK contra o Governo e o sistema judicial no to- cante à justiça transicional.4Como se explica este paradoxo?

Ao que parece, no princípio da transição, não havia, entre os comu- nistas, uma linha de orientação definida sobre quão fundo nas hierarquias militares e da Polícia devia ir o saneamento ou sobre o grau de severidade que deviam ter as sentenças no caso dos oficiais julgados pelo esmaga- mento da rebelião na Escola Politécnica, ou sobre o que fazer quanto aos torcionários. Em contrapartida, o PASOK, em cujas fileiras se conta- vam militantes do centro e centro-esquerda anteriores à ditadura, bem como socialistas de uma geração mais jovem, foi mais sonoro a exigir justiça e a usar retórica inflamada sobre a questão: por exemplo, Papan- dreou defendia que o antigo rei devia ter sido julgado por alta traição

4Entrevistas pessoais com dois membros da resistência de esquerda, Atenas, maio e

juntamente com os oficiais da Junta (Τα Νέα, 6 de Augusto de 1975, 1). Havia uma razão de peso para a esquerda comunista adotar uma posição diferente da dos socialistas: os comunistas estavam mais ansiosos por ver a restauração da democracia, desta vez sem as restrições do período 1949- -1967, do que por pressionar para que fosse aplicada a justiça transicional contra os apoiantes do Regime dos Coronéis. Por outras palavras, para a esquerda, a instituição segura de um parlamentarismo que funcionasse era provavelmente uma prioridade maior do que o alargamento do cír- culo de apoiantes da Junta processados judicialmente, para serem julga- dos e sentenciados pelas suas ações criminosas durante os anos 1967- -1974. Os membros de meia-idade de esquerda ou mais idosos da resis- tência contra a Junta tinham passado pela experiência traumática da de- mocracia «disciplinada» ou «guiada» que fora a monarquia constitucional depois da guerra civil, que discriminara a esquerda e coartara os direitos e liberdades dos cidadãos de esquerda (Mouzelis 1978). Do ponto de vista destes últimos, a perspetiva de deixar os chefes das forças de segu- rança e os torcionários que tinham estado ao serviço da Junta escaparem impunes era dececionante, mas o risco de um volte-face na transição para a democracia devido a uma intervenção militar na política era, essa sim, mais alarmante.

Pelo contrário, os membros da ala esquerda da velha EK e os socialistas mais jovens tinham gozado as liberdades limitadas da democracia «disci- plinada» no pós-guerra. Os quadros, que antes de 1967 pertenciam à EK (no poder em 1963-1965) ou que eram demasiado novos no princípio dos anos 1960, só vieram a conhecer dura repressão política depois de 1967, quando ofereceram resistência à Junta. Comparada com a dos co- munistas, a sua experiência de prisão e tortura foi algo novo – senão mesmo inesperado – e doloroso. Visto isso, não era de surpreender que, depois do fim da Junta, fossem mais veementes do que os comunistas a apoiar quaisquer medidas tomadas contra os seus opressores. Existia uma segunda razão para os socialistas gregos se mostrarem tão insistentes na aplicação da justiça transicional contra os coronéis e seus colaboradores. Guiado por Andreas Papandreou – um líder carismático, orador brilhante e político polarizador –, o PASOK optou pela curta marcha para o poder (Spourdalakis 1988). Isto significou que o PASOK abriu as suas fileiras igualmente a socialistas e não socialistas e escolheu uma estratégia eleitoral que visava ganhar eleições tão depressa quanto possível e obter tantos votos quantos conseguisse – em particular, votos da esquerda. A fim de alcançar isto, o PASOK tirou proveito das atitudes antiamerica- nas e antiocidentais generalizadas entre a população grega. Em meados

dos anos 1970, muitos gregos acreditavam que, em 1967, o Ocidente, e especificamente os Estados Unidos, tinham tolerado – senão mesmo fa- cilitado – a imposição da ditadura e que, em julho de 1974, nem os Esta- dos Unidos nem o Reino Unido tinham feito alguma coisa para impedir que a Turquia invadisse Chipre. Foram observados padrões semelhantes nos finais da década de 1990, quando, numa sondagem de opinião, uma grande percentagem de inquiridos (26%) afirmou que os americanos ti- nham culpas no golpe de 1967 (Kafetzis 1999, 300). Por outras palavras, durante meados dos anos 1970, o PASOK escolheu ser muito mais radical – em comparação não só com a EK-ND, mas também com os comunis- tas. Parte integrante desta estratégia – que, na realidade, demonstrou ser útil, com o PASOK a ganhar as eleições de 1981 – era requerer a mais completa e severa punição para aqueles que haviam apoiado o Regime dos Coronéis.

O retrocesso e apagamento da memória