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3. A QUESTÃO DA COMPETÊNCIA NA ARBITRAGEM

3.4. O que compõe a análise da competência do árbitro?

3.4.3. A arbitrabilidade

Arbitrabilidade pode ser entendida como a aptidão de determinada matéria ou entidade de ser julgada através de arbitragem. Há questões e entidades que apenas podem ser julgadas pelo Poder Judiciário235-236.

Assim, é possível falar em arbitrabilidade em sentido objetivo para designar o

que (quais matérias) pode ser julgado por arbitragem e em sentido subjetivo

relacionando-se com quem pode se submeter à arbitragem237.

A inarbitrabilidade objetiva ou subjetiva implicam a ineficácia da convenção de arbitragem. Não há invalidade na convenção de arbitragem como decorrência da inarbitrabilidade, ou o contrato é ineficaz por uma parte não poder se submeter à arbitragem ou é ineficaz em relação à determinada matéria. A inarbitrabilidade é uma questão externa ao contrato. Ela é uma questão jurisdicional, e não uma questão propriamente contratual238.

Por isso, na arbitrabilidade, a discussão sobre o impedimento para o desenvolvimento do processo arbitral não é pertinente apenas ao contrato de arbitragem

235 Utilizamos aqui um sentido restrito para arbitrabilidade. Em uma acepção ampla, por vezes presente na

doutrina e prática norte-americana, arbitrabilidade incluiria todas as questões relativas à competência do árbitro. Vide: BERMANN, George. The “Gateway” Problem in International Commercial Arbitration. In: KRÖLL, Stefan Michael; MISTELIS, Loukas, et al. (eds). International Arbitration and International

Commercial Law: Synergy, Convergence and Evolution. Haia: Kluwer Law International, 2011, p. 58. 236 A lei aparece como limitadora da possibilidade de autorregramento das partes. Sobre o assunto:

MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954, t. 3, p. 45-53.

237 LEW, Julian D. M.; MISTELIS, Loukas; KRÖLL, Stefan M.. Comparative international commercial arbitration. Haia: Kluwer, 2003, p. 187-188.

238 Nesse sentido: BREKOULAKIS, Stavros. On Arbitrability: Persisting Misconceptions and New Areas

of Concern. In: Queen Mary University of London, School of Law - Legal Studies Research Paper n.

considerado em si mesmo239, mas se volta para um fator externo: a competência exclusiva do Poder Judiciário para decidir sobre determinada questão240. A lei fixa que determinadas questões que apenas podem ser julgadas pelo Poder Judiciário.

A jurisdição arbitral é decorrente e limitada pela convenção de arbitragem firmada pelas partes, mas a legislação nacional também limita o campo em que pode se desenvolver a arbitragem. A arbitrabilidade constitui uma delimitação decisiva para a prática arbitral241. Entretanto, há uma tendência de expansão das matérias consideradas como arbitráveis, enquanto se observa uma retração da ordem pública interna enquanto fator limitador da arbitragem242.

Nos casos de inarbitrabilidade objetiva, é, muitas vezes, impossível saber se a disputa seria inarbitrável ou não no momento em que se firma a convenção de arbitragem. De um mesmo contrato é possível que surjam disputas arbitráveis e outras inarbitráveis.

Trata-se de um conceito multifacetado, determinado pelas legislações nacionais, mas que possui uma dinâmica própria no âmbito do comércio internacional. Há uma tendência de abertura e de expansão das áreas nas quais podem ser realizadas a prática arbitral243.

As legislações nacionais tem um tratamento muito diferenciado sobre quais matérias são inarbitráveis. Na Itália, por exemplo, o artigo 806 do Código de Processo Civil244 estabelece que apenas disputas sobre direitos que as partes podem dispor é que podem ser julgados por arbitragem. Previsões similares a estas podem ser encontradas

239 BREKOULAKIS, Stavros. On Arbitrability: Persisting Misconceptions and New Areas of Concern. In: Queen Mary University of London, School of Law - Legal Studies Research Paper n. 20/2009.

Londres: Queen Mary, University of London, 2009, p. 40.

240ARFAZADEH, Homayoon. Arbitrability under the New York Convention: the Lex Fori Revisited. In: Arbitration International. v. 17. n. 1. Haia: Kluwer Law International 2001, p. 79.

241 ROCHA, Caio César Vieira. Limites no controle judicial sobre a jurisdição arbitral no Brasil.

2012. 317 f. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade de São Paulo, 2012, 41-42.

242 HONATIU, Bernard. What Law Governs the Issue of Arbitrability? In: Arbitration International. v.

12. n. 4. Haia: Kluwer, 1996, p. 402.

243 MISTELIS, Loukas. Is Arbitrability a National or an International Law Issue? In: MISTELIS, Loukas;

BREKOULAKIS, Stavros. (eds.) Arbitrability: International and Comparative Perspectives. Haia: Kluwer International, 2009, p. 6.

244 “Art. 806. (Controversie arbitrabili) Le parti possono far decidere da arbitri le controversie tra di loro

insorte che non abbiano per oggetto diritti indisponibili, salvo espresso divieto di legge. Le controversie di cui all'articolo 409 possono essere decise da arbitri solo se previsto dalla legge o nei contratti o accordi collettivi di lavoro.”

no Código Judiciário Belga (art. 1676(1))245, no Código de Processo Civil da Holanda (art. 1020 (3))246 e da Grécia (art. 867)247.

Na legislação de Singapura há uma completa identificação entre arbitrabilidade e ordem pública. A Lei de Arbitragem Internacional em seu artigo 11 coloca que “qualquer disputa que as partes resolvam submeter à arbitragem, através de uma

convenção arbitral, poderão ser julgados por arbitragem, exceto se isso for contrário à ordem pública.”

A Lei Chinesa de Arbitragem tomou um viés diferente e, ao invés de se valer de um conceito semanticamente aberto, preferiu expressamente excluir algumas matérias do âmbito da arbitragem. Na China são inarbitráveis disputas que envolvam direito administrativo, direitos da personalidade, do trabalho e disputas relativas a projetos de agricultura.

O Código Civil Francês (art. 2.060248) estabelece que não são arbitráveis as questões de estado e capacidade das pessoas, aquelas relativas ao divórcio e separação de corpos e as disputas relativas aos interesses da coletividades e estabelecimentos públicos e, de maneira mais geral, aquelas matérias que sejam consideradas como de ordem pública. Deve se observar entretanto que as empresas públicas que desenvolvam atividades industrial ou comercial podem, mediante decreto, serem autorizadas a se submeter à arbitragem.

O Código de Processo Alemão, Seção 1.030 (1)249 toma uma postura mais liberal e estabelece que qualquer pretensão envolvendo um interesse econômico pode ser

245 “Art. 1.676., § 1er. Toute cause de nature patrimoniale peut faire l'objet d'un arbitrage. Les causes de

nature non-patrimoniale sur lesquelles il est permis de transiger peuvent aussi faire l'objet d'un arbitrage. (...)”

246 “Article 1020 Arbitration agreements in general - 1. Parties may agree to submit to arbitration disputes

which have arisen or may arise between them out of a defined legal relationship, whether contractual or not. (...)”

247 “Article 867 - Private law disputes may, by agreement, be submitted to arbitration if the parties to such

agreement are empowered to freely dispose of the subject-matter of the dispute. The disputes referred to in article 663 cannot be submitted to arbitration.”

248 “Article 2.060 On ne peut compromettre sur les questions d'état et de capacité des personnes, sur celles

relatives au divorce et à la séparation de corps ou sur les contestations intéressant les collectivités publiques et les établissements publics et plus généralement dans toutes les matières qui intéressent l'ordre public. Toutefois, des catégories d'établissements publics à caractère industriel et commercial peuvent être autorisées par décret à compromettre.”

249 "Section 1030 - Eligibility for arbitration - (1) Any claim under property law may become the subject

matter of an arbitration agreement. An arbitration agreement regarding non-pecuniary claims has legal effect insofar as the parties to the dispute are entitled to conclude a settlement regarding the subject matter of the dispute.. (2) An arbitration agreement regarding legal disputes arising in the context of a tenancy relationship for residential space in Germany is invalid. This shall not apply to the extent the residential premises concerned are of the type determined in section 549 subsection (2) numbers 1 to 3 of the Civil Code (Bürgerliches Gesetzbuch, BGB).(3) Any stipulations of the law outside of the present Book,

objeto de uma convenção de arbitragem. A lei de Direito Internacional Privado da Suíça (art. 177 (1))250 tem uma redação um pouco semelhante e estabelece que podem ser objeto de arbitragem qualquer disputa envolvendo propriedade.

No Brasil, a Lei de Arbitragem (art. 1º) enuncia que as pessoas capazes de

contratar poderão se valer de arbitragem para resolver conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis. Tal disposição, no direito brasileiro, já se encontrava na

redação do revogado artigo 1.072 do Código de Processo Civil de 1973.

Assim, somente matérias que tratem de direito direitos patrimoniais 251 disponíveis252 é que podem ser validamente julgadas por arbitragem. Deve haver um conteúdo ou interesse patrimonial envolvido. O direito brasileiro, por exemplo, tornou inarbitráveis as questões estritamente de estado e capacidade das pessoas, de direito pessoal de família e de outras que não tenham caráter estritamente patrimonial. É o que se depreende da análise conjunta dos artigos 1 da Lei de Arbitragem e 852 do Código Civil.

Não se deve, entretanto, confundir arbitrabilidade e transigibilidade253. Diz-se transigível a matéria que possa ser objeto de transação, disposição. Disponibilidade relaciona-se com a possibilidade de disposição de determinados bens jurídicos. Submeter uma questão à arbitragem não é o mesmo que transigir sobre a questão, pelo contrário, a arbitragem é adjudicatória: há decisão final e impositiva prolatada pelo

according to which disputes may not be subjected to arbitration proceedings, or only if specific prerequisites have been met, shall remain unaffected hereby.”

250 “Article 177 II. Arbitrability 1 Any dispute involving an economic interest may be the subject-matter

of an arbitration. 2 If a party to the arbitration agreement is a state or an enterprise or organization controlled by it, it cannot rely on its own law in order to contest its capacity to be a party to an arbitration or the arbitrability of a dispute covered by the arbitration agreement.”

251 “Passando à análise do critério da patrimonialidade da pretensão, este dita que serão arbitráveis os

litígios relativos a interesses susceptíveis de avaliação pecuniária. A primeira questão que se coloca a este propósito está relacionada com a própria finalidade desempenhada pelo critério de arbitrabilidade objectiva – seleção última entre aquilo que o Estado pode e aquilo que não pode deixar nas mãos dos particulares dotados de poderes jurisdicionais.” GONÇALVES, Isabel. A não arbitrabilidade como fundamento de anulação da sentença arbitral na lei de arbitragem voluntaria. In: GOUVEIA, Mariana França; PINTO-FERREIRA, João. Análise da jurisprudência sobre arbitragem. Coimbra: Almedina, 2011, p. 146.

252 O conceito de disponibilidade é complexo e, por vezes, de difícil identificação. A indisponibilidade não

é absoluta e deve ser aferida no caso concreto, mesmo os direitos ditos indisponíveis tem alguma parcela ou viés disponível. Sobre o tema conferir: GONÇALVES, Isabel. A não arbitrabilidade como fundamento de anulação da sentença arbitral na lei de arbitragem voluntaria. In: GOUVEIA, Mariana França; PINTO- FERREIRA, João. Análise da jurisprudência sobre arbitragem. Coimbra: Almedina, 2011, p. 135-166.

253 LIMA, Bernardo Silva de. A arbitrabilidade do dano ambiental e seu ressarcimento. 2009. 163 f.

árbitro para as partes. As partes não transacionam na arbitragem, submetem-se à decisão de um terceiro254.

De modo semelhante, patrimonialidade e disponibilidade são conceitos distintos. Patrimonial é aquilo que pode ser convertido em dinheiro, mas é possível que uma prestação pecuniária seja indisponível. Um bom exemplo é o caso do salário mínimo. Não se discute que o salário mínimo tem um evidente conteúdo econômico (é pago em dinheiro), mas o seu valor é indisponível255.

A questão da capacidade das partes para contratar não representa em si um requisito de arbitrabilidade, mas um requisito para a existência ou eficácia do contrato de arbitragem. Se a parte não for capaz de contratar em geral, por ser menor de idade, ou por estar interditado, por exemplo, o efeito prático é que o caso não poderá ser julgado por arbitragem, mas não é o mesmo que dizer que há uma inarbitratbilidade: o vício está no negócio jurídico.

O mais importante exemplo de inarbitrabilidade subjetiva, talvez, seja a discussão relativa à possibilidade e da Administração Pública ser parte em arbitragem. Evidentemente a administração é capaz de contratar, mas ela poderá em determinados casos (se assim dispuser a lei) não poder se submeter à arbitragem.

A discussão quanto à arbitrabilidade de conflitos envolvendo a Administração Pública remonta ao direito francês que entendia que a prerrogativa de julgar a Administração seria dos tribunais administrativos. O Estado apenas poderia ser julgado pelos seus próprios tribunais, gozando, inclusive, de imunidade de jurisdição perante os tribunais estrangeiros. Nesse tipo de visão, arbitragem com uma entidade estatal seria impensável256.

No que concerne à arbitrabilidade subjetiva, o Brasil tradicionalmente manteve um ranço estatista e de hostilidade em relação à arbitragem, particularmente quanto à possibilidade de entes públicos serem parte em processos arbitrais. O desconhecimento leva ao medo. Há uma clara tendência de abertura e expansão da possibilidade de entes públicos serem partes em processos arbitrais. Um importante exemplo de abertura do direito brasileiro nesse ponto é a Lei das Parcerias Público-Privadas (Lei nº 11.079/2004) que estabelece ser possível, nos contratos regidos por essa lei, o emprego

254 ALMEIDA, Ricardo Ramalho. Arbitragem comercial internacional e ordem pública. Rio de

Janeiro: Renovar, 2005, p.102-103.

255 LIMA, Bernardo Silva de. A arbitrabilidade do dano ambiental e seu ressarcimento. 2009. 163 f.

Dissertação (Mestrado em Direito Público) – Universidade Federal da Bahia, 2009, p. 53.

de mecanismos privados de resolução de disputas, incluindo a arbitragem. A lei procurou estabelecer um equilíbrio ao determinar que a arbitragem tem que ser realizada no Brasil e em língua portuguesa. O objetivo é definir que o Brasil será a sede dessas arbitragens, resguardando ao Poder Judiciário pátrio um papel de supervisão sobre o processo arbitral.

O Projeto de Lei do Senado de nº 406 de 2013, que propõe alterações na Lei de Arbitragem, pretende afastar de vez qualquer dúvida sobre a arbitrabilidade (subjetiva) de litígios que envolvam a Administração Pública direta e indireta. O projeto prevê, equilibrando o interesse público, que os processos arbitrais que envolvam a Administração Pública deverão ser sempre de direito (ficando vedado qualquer tipo de julgamento por equidade) e deverão respeitar o princípio da publicidade. Acrescentamos que, a exemplo da exigência contida no art. 11 da Lei nº 11.079/2004, o Brasil deve ser apontado como sede para esses processos arbitrais, de modo a permitir um controle mais adequado dos tribunais pátrios sobre a questão.

Segundo o projeto de lei, a Administração Pública poderá utilizar a arbitragem em qualquer conflito relativo a direitos patrimoniais disponíveis decorrentes dos contratos que celebrar. Assim, confirma-se a tendência de abertura e afirmação da arbitragem com a Administração Pública no Brasil; aprovado o projeto de lei haverá uma autorização geral para utilização da arbitragem.

3.5. A definição sobre a competência do árbitro e do juiz: a regra da competência-