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3. A QUESTÃO DA COMPETÊNCIA NA ARBITRAGEM

3.4. O que compõe a análise da competência do árbitro?

3.4.2. Limites e extensão ou abrangência do contrato de arbitragem

3.4.2.2. A extensão subjetiva do contrato de arbitragem

A extensão subjetiva do contrato de arbitragem indica quais pessoas e entidades estão abrangidas por determinada convenção arbitral. O contrato de arbitragem é ineficaz para quem não for contratante. Logo a extensão subjetiva é um fator definidor da legitimidade para ser parte no processo arbitral.

A definição da legitimidade é, na teoria geral do processo, uma questão de direito material. A teoria eclética colocou a legitimatio ad causam como uma das condições da ação. Logo, sua análise seria anterior ao julgamento do mérito do processo, inexistindo legitimidade o processo seria extinto sem resolução meritória. Entretanto, afirmar que o autor é parte ilegítima para propor determinada demanda é o mesmo que dizer que o autor não é titular do direito alegado, trata-se de análise de mérito.

No processo arbitral, há sempre uma dupla análise da legitimidade, enquanto titularidade ou responsabilidade pelo direito alegado. Deve-se indagar sobre a legitimidade (titularidade/responsabilidade) do direito de fundo discutido e para a

legitimidade para ser parte no processo arbitral.

É importante evitar confusão terminológica. É possível ser titular do direito material, sendo parte legítima para propor uma demanda sobre o caso (ou para ser demandado), mas ser parte ilegítima para um processo arbitral, por não se estar abrangido na convenção de arbitragem. Em outras palavras, por não ser titular de pretensão ou dever de se submeter a processo arbitral.

A legitimidade para ser parte em processo arbitral decorre não da análise do direito de fundo, mas da convenção de arbitragem que estabelece a jurisdição dos árbitros e determina a submissão das partes. É questão de direito material, conforme já observava Pontes de Miranda.

Há, na verdade, uma pretensão dúplice. Ou melhor, é necessário analisar duas pretensões materiais distintas. Na petição inicial ou requerimento de qualquer arbitragem, há pretensão (alegada) ao pedido de mérito e pretensão (alegada) ao uso do

remédio jurídico processual pela via arbitral. A convenção de arbitragem é, no fundo, um negócio jurídico material para renúncia ao juízo estatal, à processualidade estatal226.

Considerando que o consenso e a vontade são determinantes para a definição da jurisdição e competência do árbitro importa saber quem são as partes que podem (ou que se obrigaram a) participar do processo arbitral. A questão é relativamente simples quando A e B firmam um contrato de compra e venda e surge uma discussão sobre o preço ajustado e A inicia um processo arbitral contra B.

Entretanto, na hipótese de um contrato assinado com uma empresa parte de uma holding, será possível iniciar o processo contra a controladora? Ou é possível que o árbitro desconsidere a personalidade jurídica de uma das partes para lidar com uma situação de fraude? E se o ato foi praticado com excesso de poderes? Há, enfim, uma série de situações em que podem surgir dúvidas quanto a quem deve ser parte no processo arbitral.

É comum a utilização da desginação extensão do contrato de arbitragem à

partes não signatárias, para indicar que, em determinadas situações, quem não assinou o

contrato, ainda assim, estará vinculado à convenção de arbitragem. Tal designação é, como bem observado por Bernard Honatiau, imprecisa227. Rigorosamente, a análise do contrato e da manifestação volitiva das partes ainda é fundamental. Ou seja, não se trataria de tornar parte no processo quem não assinou o contrato, mas de encontrar o real contratante e submetê-lo ao processo.

Sempre que se analisa a extensão subjetiva de um contrato de arbitragem, é preciso enfrentar a questão do consentimento, para poder determinar se uma determinada pessoa pode (obrigou-se) ou não ser parte em um processo arbitral228.

Uma das teorias que permite lidar com a questão da abrangência subjetiva da convenção de arbitragem é a teoria do consentimento implícito229. Sempre que um arranjo societário ou contratual é utilizado para dificultar o uso do remédio jurídico processual arbitral seria possível mover o processo arbitral contra os reais contratantes.

226 MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2008, t.

XV, p. 180.

227 HONATIAU, Bernard. Complex Arbitrations: Multiparty, Multicontract, Multi-Issue and Class Actions. Haia: Kluwer Law International, 2006, p. 4.

228 HONATIAU, Bernard. Complex Arbitrations: Multiparty, Multicontract, Multi-Issue and Class Actions. Haia: Kluwer Law International, 2006, p. 7.

229 Em inglês, “theory of implied consent”. Vide: PARK, William W.. Non-signatories and international

contracts: an arbitrator’s dilemma. In: PERMANENT COURT OF ARBITRATION (ed.) Multiple Party

Por outro lado, não é o simples fato de existir um grupo econômico (de fato ou de direito) que permite que qualquer das sociedades do grupo seja demandada em processo arbitral. É preciso que exista, em algum grau, por parte dos envolvidos, consentimento ou o objetivo de fraudar a outra parte, em um tentativa de evitar o processo arbitral230.

A jurisdição arbitral derivada do consentimento implícito decorre da análise da intenção e do comportamento dos envolvidos de modo que uma parte que não tenha diretamente assinado a convenção de arbitragem deve razoavelmente ser parte em um processo arbitral. O objetivo é preservar a boa-fé contratual.

Um exemplo é o do empresário que negocia diretamente e em seu nome um contrato, mas, no último instante, substitui o polo contratual para que conste uma firma da qual é sócio majoritário. A intenção das partes, derivada da boa-fé objetiva, é que o real contratante está obrigado a se submeter à arbitragem, ainda que não tenha formalmente firmado o contrato, o empresário, no exemplo, implicitamente consentiu com o recurso ao processo arbitral.

Outra situação é quando de maneira abusiva surge uma situação de fraude, o contrato é assinado com uma sociedade empresária que é posteriormente esvaziada (tem o seu patrimônio propositalmente dilapidado) prejudicando a outra parte. A personalidade jurídica aqui poderia ser utilizada para impedir a outra parte de se valer da arbitragem, nessas situações é possível que o árbitro reconheça que há uma abuso de personalidade jurídica. Por isso, piercing the corporate veil, o processo arbitral pode se desenvolver validamente contra o real responsável.

Um caso muito curioso sobre a abrangência subjetiva da convenção de arbitragem e que gerou uma grande controvérsia entre os tribunais franceses e ingleses é o caso Dallah Real State v. Government of Pakistan. Nesse caso, foi celebrado um contrato entre a Dallah, uma companhia da Arábia Saudita, e a fundação Awami Hajj, entidade mantida pelo Governo do Paquistão, através do qual a Dallah obrigou-se a construir acomodações e quartos para receber peregrinos viajando do Paquistão para Meca. Tal contrato continha uma cláusula compromissória arbitral CCI, estabelecendo sede em Paris.

As negociações foram conduzidas diretamente pelo Governo do Paquistão que, para fins de celebração e execução do contrato, decidiu criar a fundação Awami Hajj.

230 HONATIAU, Bernard. Complex Arbitrations: Multiparty, Multicontract, Multi-Issue and Class Actions. Haia: Kluwer Law International, 2006, p. 48-49.

Alguns meses após o início da execução do contrato, o Ministro para Assuntos Religiosos do Paquistão, em uma carta no papel timbrado do Ministério, enviou uma notificação à Dallah rescindindo o contrato por culpa e inadimplemento contratual da Dallah. O governo do Paquistão encerrou todas as atividades da Fundação Awami Hajj, que deixou legalmente de existir.

Dallah, então, iniciou processo arbitral contra o governo do Paquistão conforme as regras da CCI em Paris. O governo do Paquistão alegou em sua defesa não ser parte do contrato e jamais ter aceitado se submeter à arbitragem. O tribunal arbitral entendeu que o governo do Paquistão estaria obrigado e seria parte legítima para o processo arbitral, já que a convenção de arbitragem abrangeria não apenas as partes que formalmente assinaram o contrato, mas também aquelas que estiveram diretamente envolvidas na negociação e execução de dito contrato. No mérito, o Governo do Paquistão foi condenado a pagar reparação em valor superior à 20 milhões de libras esterlinas.

A Dallah, então, efetuou requerimento para que a sentença arbitral fosse reconhecida e executada na Inglaterra, o que foi inicialmente deferido. O Governo do Paquistão se insurgiu contra tal requerimento, alegando que a sentença arbitral não poderia ser reconhecida por ter sido proferida contra quem não era parte na convenção de arbitragem. A High Court, aplicando o direito francês (considerando que a sede da arbitragem foi em Paris), entendeu que não havia convenção de arbitragem que obrigasse o governo do Paquistão. Tal posição foi confirmada na Supreme Court do Reino Unido231.

Entretanto, os tribunais franceses (também aplicando o direito francês) chegaram a uma solução substancialmente diferente. Em fevereiro de 2011, apenas alguns meses após o julgamento da Supreme Court, o tribunal de apelação de Paris julgou improcedente uma ação anulatória de sentença arbitral movida pelo Governo do Paquistão, tendo por consequência direta que a sentença arbitral, na França, não é nula e é apta para ser executada. A fundamentação do tribunal francês foi a de que o Governo do Paquistão agiu como se parte fosse e a Fundação Awami Hajj apenas seria um intermediário formal e que o verdadeiro contratante seria o Governo do Paquistão,

231 REINO UNIDO. Supreme Court. [2010] UKSC 46. On appeal from: 2009 EWCA Civ 755. Relator:

através do seu Ministério para Assuntos Religiosos. O mesmo caso em dois países, soluções diametralmente opostas232.

Esse caso serve como ilustração de que é possível uma posição que privilegie a verdade das negociações e que não deve ser admissível a criação de uma pessoa jurídica com o objetivo específico de desviar a submissão ao processo arbitral, particularmente quando tal situação causar dano à outra parte.

Para além dessas situações de consentimento implícito ou desconsideração da personalidade jurídica, há outras situações quem podem gerar dúvidas: por exemplo, quando há a cessão de direitos e obrigações contratuais ou a fusão, cisão ou incorporação de uma sociedade, nas quais se faz importante analisar a transferência de direitos e a posição contratual das partes no evento de uma disputa.

No caso de cessão de posição contratual233 ou transferência indiscriminada dos direitos e obrigações contratuais, o melhor entendimento é o de que a obrigação de se submeter à arbitragem é transmitida conjuntamente com a cessão do contrato principal234, salvo expresso acordo em contrário entre o cessionário, adquirente das obrigações, e a outra parte contratante que tenha anuído com a cessão. A vontade do cedente, neste ponto, é irrelevante e o acordo entre o cessionário e a outra parte contratante de extinguir a convenção de arbitragem deve ser lido como distrato do contrato de arbitragem, não como um efeito automaticamente decorrente da cessão. Cede-se o direito à arbitragem e se distrata o negócio jurídico.

Na cessão de posição contratual, todos os direitos e obrigações são transferidos ao cessionário, que passa a ocupar a posição contratual do cedente. Tal transmissão abrangente necessita da anuência da outra parte contratante do contrato cedido e, como regra, implica a transmissão da cláusula compromissória arbitral. Tal transmissão, entretanto, não desobriga o cedente da obrigação de se submeter à arbitragem contra o

232 MAYER, Pierre. The extension of the arbitration clause to non-signatories —the irreconcilable

positions of French and English courts. In: American University International law Review. n. 27. v. 4. Washington: American University, 2012, 836.

233 Sobre a cessão de posição contratual, que não se confunde com as figuras clássicas da cessão de crédito

e da assunção de dívidas veja-se a colocação de Rosilice Pinheiro e Frederico Glitz: “A cessão da posição

contratual ganha autonomia, cujos contornos são balizados por uma disciplina jurídica genérica, delineando-se como tipo contratual. O contrato de cessão revela-se como instrumento do contrato-base, que é objeto de transmissão. A rigor, não se transfere o contrato, mas sua posição contratual a cargo de uma das partes, ora compreendida em sua totalidade. Eis que a finalidade é transmitir globalmente os direitos e obrigações que compõem a posição contratual. Isso coloca a descoberto a complexidade obrigacional.” PINHEIRO, Rosalice Fidalgo; GLITZ, Frederico Eduardo Zenedin. Cessão da posição

contratual na perspectiva do direito brasileiro contemporâneo: em busca da compreensão da relação jurídica obrigacional. In: Anais do XVII Congresso Nacional do CONPEDI. Brasilia, 2008, p. 6751.

234 Nesse sentido: MAYER, Pierre. Les limites de la séparabilité de la clause compromissoire. In: Revue de l’Arbitrage. Paris: Comité Français de l’Arbitrage, 1998, v. 1998. n. 2, p. 361-362.

outro contratante originário. Essa obrigação perdura. Tanto o cedente quanto o cessionário poderão demandar ou ser arbitralmente acionados pelo outro contratante originário.

Um discussão exclusivamente decorrente da relação entre cedente e cessionário considerada em si mesma (decorrente puramente da cessão), entretanto, só se submeterá à arbitragem se o contrato de cessão assim o dispuser. Contudo, se de algum modo forem controvertidos direitos relativos às obrigações e direitos decorrente da posição contratual cedida, a cláusula compromissória do contrato originário terá pleno efeito.