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3. A QUESTÃO DA COMPETÊNCIA NA ARBITRAGEM

3.2. Competência e legitimação na arbitragem

A fonte de legitimação do poder jurisdicional do árbitro é diversa da do juiz194. A legitimação daquele advém do livre consentimento e manifestação volitiva das partes, a deste decorre, entre outros fatores, da investidura, da garantia do juiz natural e da conformação legislativa do Estado. Em ambos, entretanto, processo e procedimento, enquanto expectativa de conduta a ser reproduzida para a prolação da decisão, desenvolvem um papel fundamental. A aceitabilidade da decisão decorre necessariamente da observância pelo decisor de um processo pré-estabelecido. Não se sabe qual o conteúdo da decisão, mas se sabe qual o caminho até a sua prolação (due

process of law).

Na arbitragem, a própria legitimidade do processo e, por consequência, a da sentença arbitral decorrem da vontade das partes. É a vontade das partes que permite o surgimento de uma jurisdição privada e o julgamento do conflito. Não é a lei que legitima uma arbitragem específica, certamente a lei reconhece, estabelece e legitima o sistema arbitral e permite o seu funcionamento. É a vontade das partes que estabelece

193 Por isso, alguns autores utilizam os termos indistintamente para a arbitragem, considerando que alguns

países falam em competência e outros em jurisdição para designar o fato de o árbitro ter poder para julgar um determinado caso. Vide: ALVES, Rafael Francisco. A inadmissibilidade das medidas

antiarbitragem no direito brasileiro. São Paulo: Atlas, 2009, p. 59-60. LADEIRA, Ana Clara Viola.

Conflito de Competência em Matéria de Arbitragem. In: Revista Brasileira de Arbitragem. São Paulo: CBAr & IOB, 2014, v. XI, n. 41, p. 44-45.

194 FREITAS, José Lebre de. Introdução ao processo civil: conceitos e princípios gerais. 2. Ed. Coimbra:

que um conflito determinado(vel) será resolvido por arbitragem195. Sob esse ponto de vista, a arbitragem é um fenômeno social que reclamou reconhecimento jurídico. Rigorosamente, é a convenção de arbitragem, enquanto negócio jurídico processual196, que permite toda a atuação dos árbitros, nos limites da lei.

Os poderes jurisdicionais do árbitro e o exercício dessa jurisdição se legitimam pelo querer das partes. Daí a seriedade e importância de qualquer alegação que diga respeito à incompetência dos árbitros197. Dizer que um árbitro é incompetente é dizer que ele não tinha poderes para julgar aquele caso. É dizer que todo o processo daí decorrente não detinha qualquer legitimidade, já que não derivou do consentimento válido.

O ponto de partida da arbitragem é a convenção de arbitragem, um enunciado linguístico com uma vinculatividade específica. Uma norma de derrogação da jurisdição estatal geralmente ofertada. O processo arbitral se legitima nos exatos limites da competência do árbitro. O problema da legitimidade do juiz ou do Poder Judiciário está ligado, em ultima instância, à questão de afirmação do Poder Político e decorre da própria feição constitucional e das regras de distribuição do poder do Estado. É uma questão relativa à Teoria Geral do Estado.

Evidentemente, a lei constitui um fator jurídico e, de igual maneira, metajurídico legitimador importante e juridicamente autoriza a vontade das partes a estabelecer a competência dos árbitros. Ressaltar o aspecto contratual da convenção de arbitragem e a importância da autonomia da vontade no tema não é olvidar que a lei reconhece e empresta efeito jurídico a essa manifestação volitiva. Aliás, a regra da competência-competência e o poder que os árbitros possuem de decidir sobre sua própria competência não derivam da convenção das partes, mas são uma atribuição prevista em lei. É a lei que autoriza que os árbitros decidam sobre a sua própria competência198.

195 BLACKABY, Nigel; CONSTANTINE, Partasides; REDFERN, Alan; HUNTER, J. Martin H.. Redfern and Hunter on International Arbitration. Oxford: Oxford University Press, 2009, p. 340-341. 196 Para uma conceituação da noção de negócio jurídico processual vide: BRAGA, Paula Sarno.

“Primeiras reflexões sobre uma teoria do fato jurídico processual: plano da existência”. Revista de

Processo. São Paulo: RT, n. 148, jun. 2007. DIDIER JR, Fredie; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Teoria dos fatos jurídicos processuais. Salvador: Juspodivm, 2011.

197 BERMANN, George. The “Gateway” Problem in International Commercial Arbitration. In: KRÖLL,

Stefan Michael; Loukas MISTELIS, et al. (eds). International Arbitration and International

Commercial Law: Synergy, Convergence and Evolution. Haia: Kluwer Law International, 2011, p. 54-

55.

198 POUDRET, Jean-François; BESSON, Sébastien. Comparative law of international arbitration. 2.

A arbitragem aparece como uma derrogação ou uma saída dos quadros da jurisdição estatal. É uma jurisdição privada, paralela, reconhecida pelo Estado. O desenvolvimento de um processo arbitral na ausência de jurisdição do árbitro representa, em alguma medida, uma usurpação do exercício da jurisdição estatal.

A alegação de incompetência do árbitro representa um momento de (potencial) crise e desequilíbrio dessa jurisdição privada. Do ponto de vista da legitimidade, aqui entendida como aceitabilidade da decisão, é o desejo das partes o ponto central para a arbitragem. É a premissa filosófica da liberdade para contratar o ponto central da arbitragem199.

Essa liberdade é levada ao ponto de afastar uma manifestação da soberania estatal, pois o poder de julgar é, também, na concepção moderna de Estado, uma das principais formas de afirmação do poder político, é prerrogativa própria do soberano.

A legitimidade da arbitragem é autônoma e simbolicamente decorre da percepção de uma capacidade de julgar adequadamente, da neutralidade do árbitro enquanto um topoi a que se adere. A adesão voluntária do jurisdicionado se substitui a autoridade pública do Estado que se impõe sobre todos200.

A questão do que leva as partes a tomar essa decisão é diferente e está ligada a uma série de pré-compreensões e desejos das partes. Talvez seja o arquétipo do árbitro enquanto um julgador mais próximo e especializado, talvez seja o desejo de um julgamento mais célere ou confidencial. Entretanto, no momento em que se questiona a competência dos árbitros, os motivos que levaram à tomada da decisão tornam-se irrelevantes, exceto para a constatação de um eventual vício de vontade.

Do ponto de vista do Estado, a arbitragem representa uma afirmação do espaço democrático, com o respeito à pluralidade de opiniões e de meios201. É contenção do próprio Estado. Entretanto, a saída dos quadros estatais de justiça, por uma questão de premissa do Estado Moderno, só pode ser reconhecida em condições por esse mesmo Estado pré-determinadas e aceitas.

Por isso, a questão da competência do árbitro é central para a definição da própria legitimidade do processo arbitral e da sentença, bem como para que o Estado possa permitir a saída do julgamento do conflito dos seus quadros tradicionais de justiça.

199 PAULSSON, Jan. The idea of arbitration. Oxford: Oxford University Press, 2013, p. 3 200 OPPETIT, Bruno. Teoría del arbitraje. Bogotá: Legis Editores, 2006, p. 41.

É possível reconhecer uma espécie de legitimação procedimental na arbitragem internacional202. O procedimento alcança um reconhecimento generalizado que é independente da decisão particular e que gera a aceitação e acatamento da decisão. A aceitação, sob esse viés, não decorreria do conteúdo da decisão, mas do procedimento que se reconhece e que se constrói enquanto expectativa.

Certamente esse reconhecimento e essa legitimação pressupõem a aceitação dos usuários da arbitragem, daí a importância de construção de limites viáveis e adequados para a prática arbitral. No fundo da preocupação no controle da competência do árbitro (e da necessidade de limitação desse controle) está a construção de um procedimento arbitral viável e que atenda efetivamente às expectativas de quem o escolheu. O controle adequado da competência do árbitro é um fator de legitimação do próprio processo arbitral.

Não é por acaso ou mera coincidência que, conforme a pesquisa realizada pelo CBAr e pela Fundação Getúlio Vargas, entre os temas levados ao Judiciário a questão da competência do árbitro seja o tema mais recorrente. A afirmação da competência do árbitro obsta a utilização de processo judicial. A tática dilatória mais comum é justamente questionar a competência do árbitro.

O respeito ao estabelecido na convenção do árbitro e à competência judicial é fundamental para o bom funcionamento do sistema de justiça civil. Intervenções judiciais inadequadas acabam por minar o desenvolvimento da jurisdição privada, além de criarem um quadro de substancial insegurança jurídica. É que surge o risco de

202 “La legitimación procedimental es central para un derecho fragmentado supranacional y neoespontáneo

que opera supraterritorialmente. Donde no hay posibilidad de unidad objetual, social y temporal, el procedimiento constituye un mecanismo de legitimación como aceptación (‘por las razones que sea’, como indica Luhmann) de la aplicación del mismo procedimiento y de los resultados que se deriven materialmente de ello. Más aun: una alta vinculación de los afectados al procedimiento y sus resultados puede lograrse cuando una indicación procedimental mínima señala que sean las partes (y no toda la comunidad jurídica eventualmente afectada) las que construyan elementos relevantes del mismo. De especial interés aquí es el caso de los tribunales arbitrales en materias comerciales, en los que el procedimiento de formación del tribunal contempla la autonomía de las partes para decidir la ley aplicable al arbitraje, la ley aplicable al contrato, el o los idiomas del arbitraje, el número de árbitros, las características que ellos deben tener, el tipo de pruebas aceptables y la duración del arbitraje (Mereminskaya , 2006,2007). Es decir, el procedimiento indica en este caso que las partes definan elementos sustantivos del procedimiento. Subyace a esto una radicalización de la legitimación procedimental sobre la base de un modo autorregulado de autoconstitucionalización para la solución de controversias. Con ello, la legitimidad —siguiendo a Luhmann— como disponibilidad generalizada de aceptar, dentro de ciertos límites de tolerancia, decisiones en este caso arbitrales de contenido aún indeterminado, queda asegurada por la autovinculación procedimentalizada de las partes a la generación del procedimiento arbitral.” MASCAREÑO, Aldo. Problemas de legitimación en la sociedad mundial. In:

Revista da Faculdade de Direito da UFG. Gioânia: Universidade Federal de Goiás, 2009, v. 33, n. 2, p.

decisões conflitantes ou contraditórias sobre uma mesma matéria sempre que duas jurisdições se entendem como competentes para julgar uma mesma questão litigiosa203.

Assim, o respeito às regras de alocação de competência entre juízes e árbitros é um fator fundamental para o desenvolvimento e afirmação de um sistema de justiça civil amplo, democrático e que respeite a vontade do cidadão. O protagonismo judicial amplamente propalado cede, na modernidade tardia, espaço para a convivência com a jurisdição privada, reconhecendo a complementariedade de funções. O respeito à competência do árbitro é impulsionado pela própria flexibilidade de meios existente na pós-modernidade, entretanto, o direito é uma matéria que, por excelência, preocupa-se com a segurança e a solidez. Daí por que a questão da legitimação do processo arbitral e o reconhecimento que se dá ao próprio funcionamento da arbitragem insere-se em um contexto de construção de um sistema de justiça civil em sentido amplo e pragmaticamente efetivo.

3.3. O contrato de arbitragem como opt out do Poder Judiciário. Até que ponto é