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A autobiografia daqueles que não escrevem para publicar

CAPÍTULO 4 – A ELABORAÇÃO DO MODELO DIDÁTICO

4.1. História e características básicas da autobiografia

4.1.1. A autobiografia daqueles que não escrevem para publicar

Nesta seção apresentaremos reflexões sobre a autobiografia das pessoas que não escrevem para publicar. Lejeune (2008, p. 113) inicia o capítulo sobre “A autobiografia dos que não escrevem” com a seguinte proposição:

Escrever e publicar a narrativa da própria vida foi por muito tempo e ainda continua sendo, em grande medida, um privilégio reservado aos membros das classes dominantes. O “silêncio” das outras classes parece totalmente natural: a autobiografia não faz parte da cultura dos pobres.

Entretanto, há cerca de dez anos, essa situação tem mudado por meio de uma nova técnica, os relatos de vida, coletados pelo gravador e publicados em formato de livro, colocando, assim, à disposição do público a voz de operários, artesãos e camponeses, muito comum em estudos de Linguística Aplicada sobre trabalho, sociologia e formação de professores, entre outros temas. Dessa forma, essas vozes são transformadas em textos dos próprios actantes ou de seus observadores. A palavra é, assim, tomada deles para ser transformada em escrita, tornando-se a autobiografia propriamente dita uma autobiografia em colaboração.

Para Lejeune (2008, p. 121):

O redator de uma autobiografia em colaboração se encontra, durante a primeira fase do trabalho, nessa posição intermediária de escuta e questionamento. Mas deve, em seguida, renunciar a esse papel. A única posição que poderá então ocupar, se quiser dar dignidade ao seu trabalho, será a do romancista. Deve apostar não no distanciamento, mas na identificação. Embebido da fala do modelo, impregnado na sua história, ele tentará pôr-se em seu lugar para poder escrever como se fosse ele.

O autor afirma também que a colaboração atualmente é mencionada nos créditos, pois o redator não é indicado como o autor do livro, mas, sim, colocado em segundo plano, desempenhando a função de um secretário particular.

Na autobiografia gravada de pessoas do povo, as técnicas de trabalho e a divisão de papéis são mais ou menos as mesmas, entretanto, o que se propõe captar é a voz, o discurso autobiográfico dos que não escrevem. Suas narrativas passam a ser valorizadas aos olhos do leitor, do ponto de vista de uma cultura diferente que se define pela exclusão da escrita (LEJEUNE, 2008).

Nessa perspectiva, encontra-se o Museu da Pessoa, um museu virtual de histórias de vida, fundado em 1991, “aberto à participação gratuita de toda pessoa que queira compartilhar sua história” (MUSEU DA PESSOA, 2010a). A missão desse museu é contribuir para tornar a história de cada pessoa valorizada pela sociedade, visando um mundo mais justo e democrático com base na história de pessoas de todos os segmentos da sociedade.

O Museu da Pessoa (2010b) baseia seu trabalho na crença de que:

• Toda história de vida tem valor e deve fazer parte da memória social; • Ouvir o outro é essencial para respeitá-lo e compreendê-lo como par; • No protagonismo histórico: [sic] todas as pessoas têm um papel como agente de transformação da História. Democratizar e ampliar a participação dos indivíduos na construção da memória social é atuar na percepção que os

indivíduos e os grupos têm de si mesmos e de sua situação conseguir [sic] em nome de outrem;

• Integrar indivíduos e distintos grupos sociais por meio da produção e conhecimento de suas experiências é atuar para romper o isolamento de alguns grupos sociais e impulsionar processos de empoderamento fundamentais para mudar relações sociais, políticas e econômicas.

Sobre o Museu da Pessoa, Berber Sardinha (2009) ressalta que se trata de uma organização que reúne narrativas contadas por pessoas comuns como um meio de preservar a história oral. O autor afirma, ainda, que essa iniciativa se espalhou para outros países, como EUA, Portugal e Canadá. Assim, o Museu da Pessoa, procura manter viva a memória das comunidades, que de outra forma, não seria possível de ser registrada.

Nesse mesmo sentido encontra-se a Associação pela Autobiografia e pelo Patrimônio Autobiográfico18 (APA), criada na França por Lejeune e amigos, em 1992, logo após a criação do Museu da Pessoa no Brasil. Essa associação recebe e lê todos os tipos de textos de vida inéditos: autobiografias, relatos de infância, de guerra, de doença, de viagens, diários e cartas, desde que sejam regidos pelo pacto de verdade.

Em consonância com a missão do Museu da Pessoa, Ricoeur (1997) afirma que a escrita narrativa pode e atribui ao sujeito não só a oportunidade de pensar sobre si, mas também de falar sobre si. Para o autor, a autobiografia é, acima de tudo, a história de uma vida e, como toda obra narrativa, é seletiva.

Nesse sentido, consideramos que se a narrativa autobiográfica dá ao sujeito a oportunidade de narrar a própria vida, uma vida marcada por diversas experiências, os pré- adolescentes também podem relatar sua própria vida, imprimindo sua marca e suas concepções de mundo. Desse modo, a autobiografia estabelece a tarefa de lidar com informações e conteúdos que pertencem a cada um, organizados e disponibilizados no texto a partir de escolhas subjetivas que ganham especificidade, apesar da não publicação.

Ao tratarmos nesta seção da autobiografia daqueles que não escrevem para publicar, incluímos aí a autobiografia de nossos alunos em processo de escolarização e chamamos a atenção para as especificidades que essa escrita adquire ao longo desse processo. É uma autobiografia diferente daquela que um autor, na idade adulta, escreve após toda uma trajetória de vida. O aluno traz para o texto a sua vivência, os seus sentimentos, os vários conflitos enfrentados e informa como foram transformando sua vida. Essas experiências podem não ser muitas, devido a pouca idade, por mais experiências que tenha, entretanto, “a

autobiografia pode ter qualquer tamanho, pois não é isso que garante que será fornecido esse percurso de uma vida, e sim a predominância da narração” (BARROS, 2006, p. 59).

A partir do que levantamos até agora, algumas características desse gênero são:

• O contexto de produção da autobiografia é constituído pelas representações dos contextos físico e sociosubjetivo (quem escreve, para quem escreve, com que objetivo escreve etc.);

• A instância de produção da autobiografia, a esfera autobiográfica;

• Há identidade entre o autor, narrador e personagem (são a mesma pessoa); • O tema é a vida individual do autor;

• Predomina o uso da 1a pessoa (eu, nós, nos);

• Predomina o tipo de discurso da ordem do narrar (relato interativo);

• A ordem cronológica vai do período mais distante, quase sempre da infância, para o período mais recente;

• Os tempos verbais predominantes são: pretérito perfeito e imperfeito. • Uso de organizadores temporais como: “dois meses depois”, “em 1970”. • Aparecem descrições de espaços, lugares etc.

Na seção seguinte veremos o que os documentos educacionais nos dizem, em suas prescrições, sobre o ensino do gênero autobiografia.