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Os mecanismos enunciativos 3 a camada do folhado textual

CAPÍTULO 2 – PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE PARA ELABORAÇÃO

2.1. Os procedimentos do ISD

2.1.1. As condições para a produção de um novo texto

2.1.1.2. A arquitetura interna do texto ou folhado textual

2.1.1.2.3. Os mecanismos enunciativos 3 a camada do folhado textual

Da arquitetura interna do texto resta-nos abordar a 3a camada do folhado textual, os mecanismos enunciativos, que incluem o gerenciamento das vozes e das modalizações que contribuem, segundo Bronckart (2003), para o estabelecimento da coerência pragmática do texto, que mostra, de um lado, os julgamentos, as opiniões, os sentimentos etc. que podem ser expostos em determinado conteúdo temático do texto (as modalizações) e, por outro lado, apresenta as próprias fontes dessas avaliações, ou seja, quais instâncias assumem ou se responsabilizam (as vozes) por esses julgamentos, opiniões e sentimentos (modalizações).

Essa discussão se justifica pela interação entre as representações que o produtor do texto tem e as representações de outras instâncias que ele aciona no momento da produção.

Aparentemente, o autor de um texto empírico é o responsável pelas operações de linguagem, pois é ele quem decide o gênero textual, quem seleciona e organiza os tipos de discurso, as formas de planificação e os mecanismos de textualização. De certa forma, ele também assume a responsabilidade pelo que está sendo dito no texto. Para Bronckart (2003), isso é um problema complexo, visto que, ao produzir seu texto, o autor cria automaticamente um ou vários mundos discursivos, cujas regras de funcionamento são diferentes do seu mundo empírico. Nesse sentido, é a partir desses mundos virtuais e da sua função (textualizador, expositor, narrador)9 que são distribuídas as vozes que se expressam no texto. Assim, diferentes vozes podem se revelar em um texto, podendo ser reagrupadas segundo o autor, em três subconjuntos:

1. A voz do autor empírico.

2. As vozes sociais, isto é, as vozes de outras pessoas ou de instituições humanas exteriores ao conteúdo temático do texto.

3. As vozes de personagens, isto é, as vozes de pessoas ou de instituições que estão diretamente implicadas no percurso temático.

Essas vozes, dependendo do subconjunto a que elas pertençam, podem estar implícitas, isto é, não são traduzidas por marcas linguísticas específicas, portanto, não poderão ser inferidas na leitura do texto. Entretanto, em alguns casos, essas vozes são explícitas por formas pronominais, por sintagmas nominais, por frases ou, ainda, por segmentos de frases.

Em geral, segundo Bronckart (2003), um texto será polifônico quando nele soarem várias vozes distintas, podendo tratar-se de várias vozes do mesmo estatuto (diferentes vozes sociais ou diferentes vozes de personagens) ou, ainda, de combinações de vozes de estatuto diferente (voz do autor, voz de um personagem, voz social), assim, podem existir múltiplas formas de combinações polifônicas.

Por essa razão,

[...] a aprendizagem em leitura e em produção, da distribuição das vozes é, por exemplo, uma oportunidade de se tomar conhecimento das diversas

9 Textualizador – responsável pela articulação dos tipos de discurso, em geral; expositor – gerencia os mundos discursivos da ordem expor; narrador gerencia os mundos discursivos da ordem do narrar.

formas de posicionamento e de engajamento enunciativos construídos em um grupo, de se situar em relação a essas formas, reformulando-as, o que faz com que esse processo contribua, sem dúvida alguma, para o desenvolvimento da identidade das pessoas. (BRONCKART, 2006, p. 156)

Um outro mecanismo enunciativo é a expressão das modalizações presentes na constituição de um texto empírico. Segundo Bronckart (2003, p. 330), “as modalizações têm como finalidade geral traduzir, a partir de qualquer voz enunciativa, os diversos comentários ou avaliações formulados a respeito de alguns elementos do conteúdo temático”.

As modalizações contribuem para o estabelecimento da coerência pragmática ou interativa com a finalidade de orientar o interlocutor na interpretação do conteúdo temático do texto. Bronckart (2003), inspirado na teoria dos três mundos (mundo objetivo, social e subjetivo) de Habermas (1987), destaca quatro funções de modalidade redefinidas presentes no texto, por meio de marcas linguísticas específicas:

1. As modalizações lógicas consistem em uma avaliação de alguns elementos do conteúdo temático, por meio de critérios ou conhecimentos organizados no mundo objetivo, sob o ponto de vista de suas condições de verdade, fatos possíveis, prováveis, eventuais, necessários etc. Por exemplo: provavelmente viajaremos à noite.

2. As modalizações deônticas consistem na avaliação de alguns elementos do conteúdo temático, por meio de normas, valores e regras presentes no mundo social, do domínio do direito, da obrigação social ou das normas em uso. Por exemplo: o professor deveria se atualizar.

3. As modalizações apreciativas são uma avaliação de aspectos do conteúdo temático por meio de expressões do mundo subjetivo, da voz que deu origem aos julgamentos, que podem ser benéficos, infelizes, estranhos, de acordo com a entidade avaliadora. Por exemplo: infelizmente, não tinha outro jeito.

4. As modalizações pragmáticas contribuem para a explicitação de alguns aspectos da responsabilidade enunciativa de algum agente (personagem, grupo, instituição etc.) presente no conteúdo temático, atribuindo a esse agente determinadas razões, intenções etc. As marcas linguísticas que demarcam essas modalizações podem ser os tempos verbais do modo condicional; os auxiliares de modo: querer, dever, ser necessário e poder; advérbios ou locuções adverbiais: certamente, provavelmente, evidentemente,

verdadeiramente etc.; orações impessoais: é provável que, é lamentável que etc.; orações adverbiais: sem dúvida que. Por exemplo: é bem provável que você não tenha visto o aviso, por isso encostou-se na tinta fresca.

Percebemos que, diferentemente das unidades que marcam a textualização, as unidades que apontam a modalização combinam-se entre si. Dessa forma, não há uma relação direta entre as funções de modalização e os tipos de discurso. No entanto, podemos identificá- las conforme sua frequência no conteúdo temático de alguns gêneros, por exemplo, um texto científico cujo conteúdo temático é considerado absoluto subtraído à avaliação, como é o caso do gênero dicionário ou manual científico, as unidades de modalizações são raras ou ausentes. Do mesmo modo, num artigo científico, livro didático de história ou em panfletos políticos, cujo conteúdo temático é passível de debate, discussão e de constante avaliação, a frequência de modalizadores é bastante significativa.

Podemos, também, fazer a identificação de avaliações nos textos a partir de adjetivos, marcas de subjetividade do enunciador ou dos personagens, mencionados pelo enunciador. Kerbrat-Orecchioni (1990) ressalta que os adjetivos dividem-se em dois grupos: os afetivos, que expressam uma reação emocional do locutor, como em: “ele foi um homem caridoso”; e os axiológicos que expressam uma opinião mais objetiva, como em: “Marcos é um menino gordinho”.

Por meio da análise dos adjetivos, podemos perceber as diferentes emoções e reações das instâncias presentes no conteúdo temático e, no caso específico desta pesquisa, sobre os actantes da autobiografia.

Conforme abordamos anteriormente, em uma atividade de produção de texto, o produtor mobiliza as representações do contexto, o gênero de acordo com o objetivo, o conteúdo temático e as dispõe em forma de texto utilizando-se de mecanismos de textualização para a sua organização e enunciativos que contribuem para a coerência textual. Dolz e Schneuwly (2004) ressaltam que esse ensino permite o desenvolvimento de capacidades nas pessoas, capacidades de agir em diferentes situações linguageiras, produzindo textos orais ou escritos. Na próxima seção discutiremos como o ISD aborda as capacidades de linguagem relacionadas às operações de linguagem em determinado texto.