CAPÍTULO 4 – A ELABORAÇÃO DO MODELO DIDÁTICO
5.1. Apresentação do gênero autobiografia aos alunos
5.1.1. A primeira autobiografia de Ely, escrita aos 12 anos
Em primeiro lugar relatamos a história de nosso sujeito de pesquisa n. 1 que chamaremos pelo pseudônimo Ely.
Ely nasceu no Estado da Bahia, no município de Ubaitaba, num núcleo familiar de classe social baixa. Muito cedo ficou sem sua mãe, que a abandonou com o pai e veio morar em São Paulo. A princípio, morou com sua tia. Como sua tia não tinha condições financeiras, foi morar com sua avó e começou a trabalhar ainda criança para ajudar no sustento de sua casa. Ela vendia doces e salgados na praia de Ilhéus. Quando tinha 10 anos, sua mãe foi buscá-la e a trouxe para morar em São José dos Campos, Estado de São Paulo, quando conheceu seus três irmãos, filhos do outro casamento de sua mãe.
Ely nunca havia frequentado uma escola. Ao chegar a São José dos Campos, sua mãe teve de recorrer ao Conselho Tutelar para conseguir uma vaga na escola. Em 2007, ela faria 11 anos em junho. Era uma menina maior que os alunos do 1o ano, que tinham apenas 7 anos. Nessa ocasião, Ely foi transferida para uma Turma de Progressão, classe que atendia alunos com dificuldades e com defasagem ano/série.
Durante o ano de 2007, frequentou essa turma e se destacou pelo interesse em aprender; terminou o ano lendo e escrevendo com muita dificuldade.
No ano seguinte, a aluna foi transferida para uma turma regular de 5o ano (antigo 4o ano do Ensino Fundamental de 8 anos), pois sua aprendizagem se distanciava dos outros alunos da classe que frequentara anteriormente, dado seu interesse e esforço.
Em julho de 2008, Ely participou do projeto “Pequenos Grandes Escritores”, como enunciadora de sua autobiografia.
Abaixo apresentamos a transcrição do primeiro texto de Ely, cujo original é reproduzido no Anexo I. Foram mantidas as características originais do texto:
Meu nomie: E... sou do Dia 7 de Junho de 1996 Sou da Baía
Euso de uma familha ceparada eu morei uito tnepo lonje da minha mãe eu morava com o meu pai mais ele cenpre fei um home muito sonhador // quando meu avo faliceu eli deichou uma parto da fazenda pumeu pai mas pasado o tenpo meu pai pegou a parte dele e vendeu ele queria da para mi uma vida melho meu pai no ajentavamais mi ver cei ir para escola fei ai que ele me levou para porto ceuro mais ele não pinha muito dieiro para com pra um casa para nos dois morar //
foi a ir que eu me alembrei que eu tinha uma avo que mora aqui eu e meu pai fomos proucorar a minha avo passamo o Dia interinho na rua qua do estava a noitecendo eu e meu pai fomos para um o teu que ficava do lade de uma padaria la na baia não eu acordei bem cedinho e fiquei na janela cegurando a foto da vovo que cichama india quando derepente o padeiro falou o nome da minha vo eu cori para chama o meu pai mais ele estava muito cansado ue sair corendo para vê ceconcegia encom tralamais foi tarde dimais ela já tinha des zaparecido foi air que eu tivi aideia de ir ate a padaria e pergunta paro padero e ele falou quer sabia eu voltei para o oteu muito triste mas ainda restava um pouco de esparansasi que meu pai a cordou eu falei tudo para ele então meu pai teve uma idéia de sair pelo pario e logo a diante eu emcontrei a minha vo// Eu e meu pai ficamos la parand de gumes mezes eu comecei a trabalha para ajoda o meu pai eu vem dia doces e saugados na praia passado o tenpo o meu pai comcegiu com prar a nosso casa.//
Quam do eu com pretei 10 ano o meu pai rezoveu ligar para minha mãe e a minha mãe fi a te Poto Cegoro mi buscar e a cabou e Eu vim morar com a minha mãe // mas Eu sovim porque ela mi prome teu que Ee ia vim para escola.
Chegande em São José dos Campos a minha mãe foi me matricula mais a escola nao quis mi maticola porque Eu muca tinha estudado a minha mãe fei a te nocomcho tutela e concegeu uma vaga na Escola Rosa Tomita.
No primeiro texto de Ely podemos visualizar o plano geral, marcado por meio de barras, da seguinte forma:
I – A identificação e os dados de nascimento.
II – A constituição de sua família e a ausência da mãe. III – A vida com o pai.
IV – A procura pela avó.
V – O trabalho para ajudar o pai.
VI – A mudança de cidade para morar com a mãe. VII – A promessa da mãe para matriculá-la na escola.
O plano geral do texto de Ely é marcado, principalmente, por organizadores temporais: quando, foi aí (expressões da oralidade).
Em relação ao tipo de discurso predominante, a aluna tem capacidade de configurar uma ordem temporal adequada, com uso de organizadores e coesão nesse texto. Apresenta a predominância da primeira pessoa e dos verbos no pretérito perfeito e imperfeito que caracterizam um narrar implicado, disjunto em relação à situação de comunicação, próprio do discurso de relato interativo (BRONCKART, 2003).
O uso de marcas da primeira pessoa do singular mostra a presença da enunciadora no texto. Em todas as ocorrências, o uso da primeira pessoa indica quem escreveu o texto em uma relação de implicação com o contexto de produção, em que Ely relata os acontecimentos de sua vida, marcas relacionadas com as características indicadas por Lejeune (1975, 2008):
[...] eu e meu pai fomos para um o teu que ficava do lade de uma padaria la na baia não eu acordei bem cedinho e [eu] fiquei na janela cegurando a foto da vovo que cichama india quando derepente o padeiro falou o nome da
minha vo eu cori para chama o meu pai mais ele estava muito cansado ue
sair corendo para vê ceconcegia encom tralamais foi tarde dimais ela já tinha des zaparecido foi air que eu tivi aideia de ir ate a padaria e pergunta
paro padero e ele falou quer sabia eu voltei para o oteu muito triste mas
ainda restava um pouco de esparansasi...
Observamos também segmentos de discurso interativo iniciando o relato, que remetem à própria interação verbal, de caráter conjunto ao mundo implicado, como notamos em: meu nome: E... sou do dia 7 de junho de 1996[.] Sou da Baía[.] Eu sou de uma família separada.
O texto apresenta uma sequência narrativa que prende a atenção do leitor. A enunciadora dá um suspense ao relato encaixando a sequência narrativa. Há conflito, clímax e resolução, como podemos observar no segmento abaixo:
[...] foi a ir que eu me alembrei que eu tinha uma avo que mora aqui eu e meu pai fomos proucorar a minha avo passamo o Dia interinho na rua qua do estava a noitecendo eu e meu pai fomos para um o teu que ficava do lado de uma padaria la na baia não eu acordei bem cedinho e fiquei na janela cegurando a foto da vovo que cichama india quando derepente o padeiro falou o nome da minha vo eu cori para chama o meu pai mais ele estava
muito cansado ue sair corendo para vê ceconcegia encom tralamais foi tarde dimais ela já tinha des zaparecido foi air que eu tivi aideia de ir ate a padaria e pergunta paro padero e ele falou quer sabia eu voltei para o oteu muito triste mas ainda restava um pouco de esparansasi que meu pai a cordou eu falei tudo para ele então meu pai teve uma idéia de sair pelo pario e logo a diante eu emcontrei a minha vo.
No segmento acima observamos o conflito, uma das fases da sequência narrativa em passamos o dia inteirinho na rua até ela já tinha desaparecido; o clímax em foi aí que eu tive a ideia até meu pai teve uma ideia de sair pelo bairro; a resolução em logo adiante eu encontrei a minha avó.
Há inserção de sequência dialogal representada por discurso indireto em ela já tinha desaparecido, foi aí que eu tive a ideia de ir até a padaria e perguntar para o padeiro e ele falou que sabia.
Podemos, também, observar scripts predominando o relato, que é a forma de organização global, segmentos que representam uma ordem dos acontecimentos na vida de Ely, como em:
Chegande em São José dos Campos a minha mãe foi me matricula mais a escola nao quis mi maticola porque Eu muca tinha estudado a minha mãe fei a te nocomcho tutela e concegeu uma vaga na Escola Rosa Tomita”.
Em relação aos mecanismos de conexão, podemos notar que no texto de Ely existem organizadores temporais, próprios dos discursos da ordem do narrar, como podemos observar nos trechos a seguir:
[...] o meu pai mais ele cenpre fei um home muito sonhador quando meu avo
faliceu eli deichou uma parto da fazenda pumeu pai mas pasado o tenpo
meu pai pegou a parte dele e vendeu.
[...] eu voltei para o oteu muito triste mas ainda restava um pouco de
esparansasi que meu pai a cordou eu falei tudo para ele então meu pai teve
uma idéia de sair pelo pario e logo a diante eu emcontrei a minha vo.
Como vimos anteriormente, os organizadores temporais são marcas características da autobiografia e marcam a temporalidade no relato.
Quanto aos mecanismos de coesão nominal, a enunciadora faz a sua introdução no texto a partir do pronome eu e o retoma sempre repetindo o pronome, portanto, sem apagamento. Em seguida retoma o sintagma meu pai, novo elemento no texto, pelo pronome ele e pelo sintagma homem muito sonhador; retoma, ainda, meu avô, novo elemento, por ele;
repete o sintagma meu pai e o retoma com o mesmo sintagma, para em seguida o retomá-lo pelo pronome ele, como podemos observar em:
[...] eu morei uito tnepo lonje da minha mãe eu morava com o meu pai mais ele
cenpre fei um home muito sonhador quando meu avo faliceu eli deichou uma
parto da fazenda pumeu pai mas pasado o tenpo meu pai pegou a parte dele e
vendeu ele queria da para mi uma vida melho meu pai no ajentavamais mi ver cei
ir para escola fei ai que ele me levou para porto ceuro mais ele não pinha muito
dieiro para com pra um casa para nos dois morar.
A repetição de pronomes e sintagmas indica que a aluna apresenta dificuldade de conferir coesão nominal a seu texto.
Os mecanismos de coesão verbal, que asseguram a temporalidade no texto de Ely, são apresentados, predominantemente, por meio do tempo pretérito perfeito, e, com menos frequência, por meio de pretérito imperfeito:
[...] eu acordei bem cedinho e fiquei na janela cegurando a foto da vovo que
cichama india quando derepente o padeiro falou o nome da minha vo eu
cori para chama o meu pai mais ele estava muito cansado ue sair corendo
para vê ceconcegia encom tralamais foi tarde dimais ela já tinha des
zaparecido
A predominância do pretérito perfeito e com menos incidência o pretérito imperfeito no texto, marcam a relação de temporalidade no relato e o aspecto principal dos textos da ordem do narrar.
Destacamos nesse texto a voz da enunciadora, que também é autora, narradora e personagem principal (LEJEUNE, 1975, 2008) durante todo o relato:
Eu sou de uma família separada eu morei muito tempo longe da minha mãe. Além da voz da enunciadora, podemos destacar as vozes de personagens que fizeram parte de sua trajetória, como a do padeiro: o padeiro falou o nome da minha vó; do pai: meu pai teve uma ideia de sair pelo bairro e logo adiante eu encontrei a minha vó. E, por último, temos a voz da mãe em: eu só vim porque ela me prometeu que eu ia vir para a escola.
A voz da autora é predominante por se tratar do gênero autobiografia, em que o autor conta a sua própria vida.
Notamos, também, em discurso indireto, a voz do padeiro em e ele falou quer sabia, resposta à pergunta de Ely quando lhe perguntou se conhecia sua avó.
Observamos, também, marca de subjetividade da autora, de ordem afetiva, no trecho, eu voltei para o hotel muito triste. Percebemos a ânsia da autora em encontrar sua avó, pois não tinha seu endereço, apenas sabia que ela morava na cidade e se chamava índia.
A partir dos elementos analisados, podemos dizer que a aluna mobilizou características do gênero autobiografia e as disponibilizou em seu texto: predominância da voz da autora, sequência cronológica dos fatos, organizadores temporais e marcas do gênero autobiografia levantadas no modelo didático, no entanto, a coesão nominal, que também é uma marca desse gênero, foi comprometida, tendo em vista, o não apagamento do pronome.
Na Tabela 5.1 indicamos as capacidades de linguagem adquiridas pela aluna.
Capacidades de linguagem19 Produção inicial Capacidade de ação Contexto de produção Suporte: Coletânea Contexto físico: Produtora: Ely Receptores gerais Lugar possível: uma sala Contexto social:
Enunciadora: aluna
Destinatários: professores, pais, coordenadores, comunidade Lugar social: sala de aula da escola Rosa Tomita
Objetivo: produzir uma autobiografia para compor uma coletânea Gênero: autobiografia
Capacidade discursiva
Plano geral do texto
O plano geral do texto: ordem cronológica dos fatos. O texto foi escrito com 416 palavras
Tipos de discurso
Discurso predominante: relato interativo Discurso interativo Planificação (tipo de sequência) Sequência narrativa Sequência dialogal Segmentos de scripts Capacidade Conexão 5 organizadores temporais
linguístico-
discursiva Coesão nominal
Anáforas: por apagamento do pronome 04; pronominais, 10; Nominais, 05 (coesão prejudicada pela falta de apagamento do pronome eu).
Coesão verbal
Tempos verbais no pretérito perfeito: 41 ocorrências Tempos verbais no pretérito imperfeito: 14 ocorrências Tempos verbais no presente: 6
Vozes Presença da voz da enunciadora Voz do padeiro
Voz do pai Voz da mãe. Marcas de
subjetividade
2 marcas representadas por adjetivos uma de ordem afetiva e 1 de ordem axiológica
TABELA 5.1. Capacidades de linguagem adquiridas por Ely. Fonte: elaborada pela autora.