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Capítulo 1 – MARC BLOCH E A GRANDE GUERRA (1914-1918)

1.3 A guerra de Marc Bloch

1.3.1 A Batalha do Marne

Seja por uma estranha coincidência ou pelas dificuldades de acesso a determinados materiais impostos pela vida militar, foi no momento do batismo de fogo de Marc Bloch que os registros deixam de ser à tinta, dando lugar ao lápis. O último registro à caneta não deixa claro quais seriam as suas expectativas para o confronto, agora certamente inevitável: “[...] fomos a Larzicourt onde assumimos nossa posição nas trincheiras”66.

Após a revelação de um superior de que o regimento a que pertencia seria enviadoao front, foram três dias ao som de tiros de canhão ao longe. Clarões e fumaça.

65 Do original: “Elle m’a laissé un souvenir vague et uniformément pénible, pareil à cette courbature qui

suit les mauvaises nuits. […] tout cela eût été peu de chose si nous n’avions constament tourné le dos à la frontière, reculant d’un mouvement continu, sans nous battre. Que se passait-il? Nous n’en savions rien. Je souffrais atrocement de cette ignorance. Je supporte moins bien l’incertitude que les mauvais nouvelles, et rien m’énerve comme le sentiment que l’on me cache la vérité. Oh, jours cruels de la retraite, jours de lassitude, d’ennui et d’angoisses! ”. Ibidem, p. 122 (grifos meus, tradução livre).

35 Finalmente, a marcha em direção à frente do Marne. Na noite de 9 de setembro, os homens foram postos em formação defensiva contra a artilharia inimiga. Começava uma forte chuva. Algumas horas depois com o amanhecer, a chuva foi outra: de balas de obuses e metralhadoras67. Era enfim a primeira experiência de batalhade Bloch. Ele relatava que, apesar de ter a certeza de que jamais esqueceria o dia 10 de setembro de 1914, suas recordações daquele momento não eram precisas. Lembrava-se apenas de flashes que pouco se interligavam. Devido à intensidade da experiência, registrou em sua mente apenas uma série descontínua de imagens. Descreveu a sensação: era como observar a projeção de um filme, mas no qual tivesse papel ativo em alguns momentos68. Em meio a perdas até então inacreditáveis, o trauma mostrou-se forte a ponto de tirar do historiador aquilo que torna o seu ofício tão peculiar: a intimidade com o tempo.

Nossas perdas foram muito fortes; elas chegaram a mais de um terço do efetivo de minha companhia, que não foi a mais posta à prova. Não sei se a minha

memória me engana, mas não me parece que o tempo tenha sido tão longo.

Essas terríveis horas sem dúvida passaram bastante rápido.69 (grifos meus)

As anotações no diário de 1914 dão conta de 89 perdas da companhia, entre mortos e feridos, incluindo a de alguns sargentos e capitães. A lembrança do primeiro contato com um colega ferido, aliás, foi marcante. Estava passando por uma cerca viva quando interpelou rudemente um homem que havia parado sua marcha, ao que o mesmo respondeu ter sido atingido. Bloch então reparou que uma bala ou estilhaço, de fato, havia impactado seu companheiro. Logo em seguida vislumbrou o primeiro cadáver:

Era um cabo que não pertencia ao nosso regimento. Estava deitado em um declive, rígido, com a face virada para baixo. De sua marmita, aberta com a queda, tombaram algumas batatas, que ficaram espalhadas no solo ao seu redor.70

Apesar desses pequenos momentos de consciência, nos quais registrousituações chocantes, a perturbação com a situação-limite experimentada parecia torná-los - ele e os

67 “[…] pluie d’obus percutants et fusants, et de mitraille (50 mitrailleuses !)”. Ibidem, p. 43. 68 Ibidem, p. 123.

69 Do original: “Nos pertes furent très fortes; eles montèrent pour ma compagnie, qui ne fut pas la plus

éprouvée, à plus du tiers de l’effectif. Je ne sais si ma mémoire me trompe, mais il ne me semble pas que le temps m’ait paru très long. Ces effoyables heures ont sans doute passé assez vite.” Ibidem, p. 123 (grifos meus; tradução livre).

70 Do original: “C’était un caporal qui n’appartenait pas à notre régiment. Il gisait sur une pente, tout crispé,

la tête en contrebas ; et de sa marmite de campement, qui s’était ouverte dans la chute, des pommes de terre s’étaient échappées, s’égrenant sur le sol au-dessous de lui”. Ibidem, pp. 123-124.

36 demais - autômatos. Sabiam deitar a cada “alto!” que ouviam, atirar quando ordenados e seguir em frente, se fosse o desejo daquela voz que parecia vir do além. Assim, suportava- se viver no horror. Mesmo com a sinfonia de explosões e o barulho das metralhadoras, que mais pareciam enxames de vespas71, ia-se adiante. Porque qualquer reflexão sobre a situação só parecia apresentar a morte como opção: “E quando retomei a lucidez esperei que viesse o silêncio, e talvez com ele o golpe mortal”72.

Se tal golpe não veio, outro não letal o atingiu. Na tentativa de dar os primeiros socorros a um cabo ferido, Bloch e um sargento da companhia foram atingidos, este na coxa e o autor de Souvenirs no braço direito. Por sorte, “a bala teve o bom-gosto de não se alojar e apenas queimou a pele”73. Somente no dia seguinte se deu conta de que havia,

em suas vestimentas, três buracos de bala74. Houve, então, momentos que puseram em xeque a sua integridade física que nem sequer foram percebidos.

A batalha seguia, no entanto. Por muito pouco, o grupo não sucumbiu a um dos mais fatais problemas coletivos: a queda do moral das tropas pelo medo. Se todo o contexto era favorável à irrupção de uma histeria geral, a faísca definitiva, pode-se dizer, foi a chegada, do lado alemão, de cavalos com metralhadoras como carga75. Essa visão desesperou muitos homens. Foi nesse momento que Bloch demonstrou bravura e certo tino para liderança. Segundo o seu relato, repetia sem cessar “nada de pânico!” na tentativa desesperada de acalmar os que estavam próximos. A despeito do medo e da desconfiança, a única chance de sobrevivência estava em seguir as ordens dos comandantes e buscar proteção em buracos e tocas. Só que o terror, mais uma vez, pareceu paralisar os seus sentidos:

Por quanto tempo permanecemos naquela dobra de terreno? Quantos minutos? Quantas horas? Não tenho a mínima ideia. Estávamos apertados uns contra os outros, amontoados uns sobre os outros. Como a artilharia inimiga nos atacou pelo flanco, à direita, o monte de terra que se elevava à nossa frente nos oferecia nada além do que um abrigo ilusório.76

71 Ibidem, p. 43 e p. 124.

72 Do original: “Je rentrais la tête dans les épaules et j’attendais que vînt le silence, et peut-être avec lui le

Coup meurtrier”. Ibidem, p. 124.

73 Do original: “La balle [...] eut le bon goût d’en ressortir tout de suit et ne fit que me brûler la peau”.

Ibidem, p. 124.

74 Ibidem, p. 43.

75 Ibidem, p. 43 e p. 124.

76 “Combien de temps sommes-nous restés dans ce repli de terrain ? Combien de minutes ou combien

d’heures? Je n’en sais rien. Nou étions serrés les uns contre les autres, entassés les un sur les autres. Comme l’artillerie ennemie nous prenait de flanc, par la droite, le talus qui s’élevait devant nous ne nous offrait qu’un abri illusoire.” Ibidem, p. 124.

37 Nesse momento Bloch relatava, com certo humor, uma situação em que havia desejado mal a um concidadão, seu “vizinho de esquerda” na confusão das trincheiras, quando precisou se apoiar em seus ombros para escapar dos tiros:

Creio que jamais detestei tanto alguém como a este indivíduo, que nunca tinha visto até aquele dia e nunca mais revi desde então, e creio não ser capaz de reconhecer caso o reencontre. Ele estava com cãibras nas pernas por conta do meu peso e, a fim de se aliviar, insistiu que eu me levantasse, o que faria com que eu me expusesse estupidamente à morte. Ainda hoje sinto-me satisfeito de tê-lo recusado, e espero que esse egoísta sofra frequentemente de reumatismo.77

A nobreza de espírito não era suficiente naquele contexto. Ora, esse episódio e a reação irritada de Bloch no relato são reflexos de uma questão recorrente em relatos de guerra: a camaradagem entre os soldados. No caso citado, faltou ao colega aquela dose de sacrifício individual em prol dos companheiros, tão marcante em todo o período da Grande Guerra. O incógnito literalmente não suportou o peso da vida de um companheiro de trincheira – comportamento que era, em todo caso, severamente criticado entre os demais.

Esse foi, em linhas bastante gerais, o microcosmos do historiador-soldado na Batalha do Marne, evento de extrema relevância que merece o levantamento de algumas questões. Seu impacto extrapola a conquista territorial (até porque ela foi mínima, em termos relativos) para atingir o campo das representações. Para a propaganda e para a memória construída sobre o evento, aquele foi o primeiro momento referencial francês da Grande Guerra e, ao mesmo tempo, uma guinada importante no horizonte de expectativas dos soldados franceses face ao conflito.

Ainda que tenha ocorrido um erro de estratégia por parte dos alemães – que ao invés de concentrar forças em certos pontos-chave, distribuíram homens e artilharia uniformemente ao longo do rio Marne –, o evento ficou mais conhecido pela consagração da cooperação entre franceses e ingleses. Os primeiros, mais fracos em relação ao inimigo, foram hábeis para evitar a capitulação até a chegada do apoio britânico, além de explorar com maestria as falhas alemãs.

77 Do original: “Je crois que je n’ai jamais détesté personne autant que cet individu, que je n’avais jamais

vu jusqu’à ce jour, que jan’ai jamais revu depuis et que je ne reconnaîtrais pas si je le rencontrais. Il avait des crampes dans ces jambes, sur lesquelles je pesais et il voulait absolument qu’afin de le soulager je me levasse, ce qui eût été m’exposer bêtement à la mort. Je suis encore heureux aujourd’hui d’avoir refusé et j’espere que cet égoïste souffre souvent de rhumatismes.” Ibidem, p. 124.

38 Foi também o evento que consolidou a chamada União Sagrada entre os franceses, bem como o ponto de partida da construção de símbolos do heroísmo e cooperação nacional. Antes da guerra (e dessa batalha simbólica), pensava-se na França como um país dividido, graças a todo o contexto conturbado da Terceira República, e, especialmente, pela reverberação do Caso Dreyfus.

Digno de destaque também foi o intenso debate devido à Lei dos Três Anos (1913), que tornava o serviço militar obrigatório durante o período que a nomeia. Apesar da discordância inicial, ela provou-se fundamental para a vitória no Marne, porque possibilitou o preparo militar indispensável aos franceses em uma batalha daquele porte e num território com aquelas características. Ao menos momentaneamente, apaziguavam- se os espíritos dissonantes78.

Na batalha do Marne, foi também a primeira vez que a propaganda militar pôde utilizar o termo “vitória”79. Durante o enfrentamento, também surgiu um dos episódios

mais explorados pela memória da guerra como signo do nacionalismo: a colaboração dos táxis do Marne. Como o balanço era desfavorável aos francesesem termos de indústria militar, não havia como realizar o transporte dos soldados ao front em tempo hábil. Por isso que Joseph Simon Gallieni, chefe militar de Paris, fez um apelo e convocou os taxistas da cidade para apoiarem as tropas necessitadas, que responderam imediatamente e realizaram o duro trabalho. Graças a esse suporte foi possível estar à altura dos alemães quando os enfrentamentos se iniciaram e o inimigo foi mantido longe de Paris. O Plano Schlieffen falhou e o mesmo general Joffre, que ordenara a retirada em Ardenas dias antes, comandou uma das campanhas mais memoráveis da França.

Por outro lado, essa batalha, além de vir a ser conhecida como uma grande conquista do comando francês, inaugurou a fase mais penosa da guerra em termos de perdas humanas, nas trincheiras. A partir dela, as frentes alemãs e francesas ficaram praticamente imobilizadas. A trincheira, mola mestra do sistema defensivo da Grande Guerra, proporcionou um espetáculo de mutilações e mortes, especialmente dos atacantes. O horror era a rotina. Não ter “nada de novo no front”80 era garantir a

sobrevivência em meio a corpos de colegas de tropa, conviver com ratos e pulgas, sentir frio, fome e dor, além de ser atormentado constantemente por tiros e bombardeios

78 Cf. Jean-Jacques Becker. “La bataille de la Marne, ou la fin des illusions”. In: 14-18 : Mourir pour la

patrie. Paris: Seuil, 1992, pp. 124-136.

79 Ibidem, p. 130.

80Título de um dos mais famosos livros sobre a Grande Guerra, escrito por Erich Maria Remarque (Porto

39 inimigos. Tudo isso dentro de um mesmo – e pequeno – espaço81. Para a França, o pior:

o cenário dessa destruição era o território nacional. Reconstruir o país custaria muito caro; esse seria mais um duro golpe desferido pelos alemães. Sobre esta questão, Marc Ferro diz que “[...] ao imobilizar a guerra por mais de quatro anos no seu solo, a Alemanha iria infligir à França profundas feridas, ameaçar sua existência e paralisá-la por muito tempo”82.

Restava, ainda, outro elemento de virada. A vitória do Marne representou, de fato, o que Jean-Jacques Becker chamou de “o fim das ilusões” sobre aquele conflito entre as potências. Nesse primeiro momento, a opinião pública não explodiu de felicidade com o triunfo83. Parecia claro, a partir do entrincheiramento do conflito, que não se podia mais acreditar em uma guerra curta e – o que era ainda mais decepcionante – vitoriosa contra a Alemanha84. A França sentia-se forçada a levar à frente agora uma guerra longa. Saía- se da guerra das ilusões para ingressar na guerra das realidades85.

De sua parte, Marc Bloch exprimia apenas o alívio pela vitória, numa extensa passagem que merece ser reproduzida:

Apesar do cruel espetáculo, não me sentia triste naquela manhã de 11 de setembro. É desnecessário dizer que eu não sentia vontade de rir. Eu estava sério, mas a minha solenidade foi sem melancolia, como convinha a uma alma satisfeita; acredito que meus companheiros sentiram o mesmo. Lembro-me de seus rostos sombrios, mas contentes. Contentes com o quê? Bom, contentes, em primeiro lugar, por estarem vivos. Não foi sem um prazer secreto que eu contemplava o corte grande no meu cantil, três buracos no meu casaco feito por balas que não haviam me machucado, e meu braço dolorido, que ainda estava intacto, como provado na inspeção. Em dias após grande carnificina, exceto quando há algum doloroso sofrimento pessoal, a vida parece doce. Deixe aqueles que condenam esse prazer egocêntrico. Tais sentimentos são ainda mais solidamente enraizados em indivíduos que normalmente são semi- conscienciosos de suas existências. Nosso bom humor, no entanto, possuía acima de tudo as fontes mais nobres. A vitória que nos fora anunciada brevemente pelo coronel, ao passar de cavalo, me sublimou. Talvez, se eu parasse para pensar um pouco, tivesse algumas inquietudes. Os alemães recuaram na nossa frente. E se tivessem avançado em outro lugar? Felizmente, meus pensamentos eram vagos. A falta de uma noite de sono, os esforços da marcha e do combate, as emoções fatigaram a minha mente. Mas eu sentia intensamente. Eu compreendia mal a batalha. Era a vitória do Marne. Eu não sabia nomeá-la. Mas o que importava? Era a vitória. A má sorte que parecia pesar sobre nós desde o início da campanha havia partido. A alegria fazia bater

81 Uma descrição bastante competente sobre todos esses elementos que compõem a realidade e as

dificuldades nas trincheiras pode ser encontrado em Modris Eksteins. Op.cit., 1997.

82 Marc Ferro. Op. cit., 1990, p. 88.

83 Jean-Jacques Becker. Op. cit., 1992, p. 131. 84 Ibidem, p. 124.

40 o meu coração, naquela manhã, naquele pequeno vale da Champagne, árido e devastado.86