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Capítulo 1 – MARC BLOCH E A GRANDE GUERRA (1914-1918)

1.3 A guerra de Marc Bloch

1.3.4 Ruínas

No último mês de 1914, Marc Bloch encontrava-se em Vienne-le-Château, local mais recuado em relação aos combates em Argonne. A cidade, no entanto, havia sido fortemente bombardeada. Uma vez mais, o seu discurso marca bem a incrível capacidade humana de adaptação a situações extremas. O que chamou sua atenção foi que as ruínas deixadas como marcas de conflitos dotaram a cidade de um “pitoresco inesperado”115.

Muros caídos, escombros esfumaçados, buracos em paredes de casas revelando “lamentáveis pinturas internas” conferiam tal característica ao local. No entanto, um olhar mais cuidadoso revelou que poucas casas de fato tinham vindo abaixo e que, à exceção de uma ocasião, não chegou a se deparar com pessoas feridas. Acreditava ser uma prova de que as bombas faziam mais barulho do que estragos efetivos.

Apesar do impacto moral inicial ser bastante intenso, para ele não havia nada mais fácil com que se acostumar do que com um bombardeio, mesmo que houvesse alguns senões nessa situação. O momento era de recuperar as forças, e era isso que ele e os outros tentavam fazer:

Não creio que estilhaços e torpedos aéreos116 tenham nos impedido de dormir

em algum momento, ou de fazer caminhadas, ou mesmo de nos entreter, quando havia ocasião. Ainda assim, preferíamos descansar mais distante do

114 Do original: “J’avais lu que les coups mortes sont souvent peu douloureux et je savais par ailleurs que

les blessures à la tête sont d’ordinaire ou très graves ou insignifiantes. Je pensais : ‘Si je ne suis pas mort dans deux minutes, tou va bien.’ Ayant survécu aux deux minutes fatales, j’estimai que tout allait bien. Je me fis mettre un pansement provisoire et je partis trouver le major.” Ibidem, p. 142.

115 Ibidem, p. 143.

116 Marc Bloch usa o termo “marmites”, que era recorrente entre os soldados franceses no contexto da

Grande Guerra para designar os projéteis alemães, talvez pelo seu formato parecido com uma jarra. Informação retirada do Collectif de Recherche International et de Débat sur la Guerre de 1914-1918 – CRID. Disponível em <http://crid1418.org/espace_pedagogique/lexique/lexique_kp.htm#06>. Acesso em: 29 dez. 2014.

49 front. Éramos indiferentes aos disparos que ouvíamos; mas escutar, mesmo estando acantonados, os assobios dos obuses nos soava abusivo; essa música deveria ser reservada às trincheiras.117

Havia portanto um quê de ordinário nos sons de guerra após quase cinco meses de conflito. A sinfonia da batalha era o som ambiente, que naquela ocasião embalava noites raras de sono – numa delas, ele pôde dormir em um quarto, numa cama de verdade! E sua regente, a morte, fazia questão de provar a onipresença que lhe era característica. Dessa vez, levaria outro amigo de Bloch, “F.”. Numa madrugada, ele fora acordado por gritos de socorro. Uma cabana ruíra e soterrara alguns soldados franceses. O chão, enlodado pela quantidade de água que caía, fizera toda a estrutura ruir, causando o acidente e dificultando o resgate dos sobreviventes. Mais um espetáculo de horror. Após grande esforço, “F.” foi encontrado, com a “[...] face pálida, marcada pela sujeira e sofrimento, com os seus grandes olhos negros abertos”118.

O curioso sobre o relato dessa morte é que novamente em seu discurso há ecos da manobra psíquica de diminuição da sensibilidade frente à constante vivência com o terror. Apesar confessar que, intimamente, seu pesar ter sido menor por saber que o amigo não se perdera devido à uma ação do inimigo, o relato dá conta da grande sensibilização dos homens com aquelas mortes (além de “F.”, dois outros soldados desapareceram). O capitão, abalado, não conseguiu pronunciar palavras de despedida quando os corpos foram enterrados. Ora, não seria essa comoção causada porque perecimentos como esses não eram “naturais” como aqueles promovidos pela luta contra os alemães? Mesmo com a morte como companheira, perdas assim eram imprevistas. Nesse contexto, um rosto enlameado chocava mais do que um rosto esfacelado.

Essa morte, aliás, marcou o início do que chamou “a era de lama”, o período das chuvas de dezembro, que só faziam trazer/traziam mais dificuldades para a vida do entrincheirado. O solo da região, impermeável, favorecia o alagamento das trincheiras e todas as dificuldades que daí advinham. O trabalho dobrava, triplicava. Era necessário sempre fazer a água escorrer, evitar a perda do espaço. Bloch relatava que ele mesmo escapou, por pouco, de um soterramento. O barro tomou conta das roupas, calçados, alimentos e emperrava os equipamentos. Se havia um consolo aos franceses, era que a

117 Do original: “Je ne crois pas que shrapnells ou marmites nous aient jamais empêché de dormir, ou de

nous promener, ou de prendre du bon temps, quand nous en trouvions l’occasion. Tout de même, nous aurions mieux aimé nous repouser plus loin du front. Entendre le roulement du canon nous était bien égal; mais entendre, même au cantonnement, les coups de sifflet des obus nous paraissait abusif ; cette musique- là eût dû être réservée aux tranchées.” Ibidem, p. 143.

50 mesma água caía do lado alemão119. A equidade se dava, então, através do sofrimento ao

longo desse período.

Do outro lado da trincheira, o filósofo alemão Ernest Jünger escrevia: “[...] nenhum fogo de artilharia podia quebrar a resistência de um homem de forma tão cabal quanto a umidade e o frio”120.