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Capítulo 2 – AS GUERRAS PELA HISTÓRIA

2.5 Annales, ano 1

2.5.3 Passos curtos para uma história possível

“Espero que, quando a revista for lançada, o trabalho seja mais simples. No momento, ele me parece bastante pesado”359. As cartas mostram que, apesar de as

demandas do periódico terem se mantido grandes, de fato a organização da primeira edição envolveu mais questões. Embora novos problemas sempre fossem se apresentar, muito estava em jogo no primeiro número.

Por isso, para ela houve um certo investimento em propaganda. Muito cuidado devia ser dispensado para que o público-alvo tomasse conhecimento da entrada dos

Annales d’Histoire Économique et Sociale no mercado. Nos meses que antecederam o

lançamento, a divulgação da revista seria prioridade. Imprimiram e distribuíram circulares de lançamento360, nas quais clamavam por apoio em assinaturas, divulgação e

críticas. Pouco depois, lançaram um panfleto com maiores informações sobre a estrutura da revista, a periodicidade, os colaboradores e os valores da assinatura anual ou da edição única (15 francos). Às vésperas da primeira edição, mais um panfleto foi impresso, dessa vez com os títulos dos artigos que seriam publicados nas primeiras edições, bem como os seus objetivos.

Neste, vendia-se a ideia de que a história econômica seria protagonista. “Em nossos dias, mais do que nunca, os espíritos se apaixonam pelos problemas econômicos”. No panfleto, argumentava-se que a curiosidade pelos temas relativos à economia seria satisfeita a partir de dois tipos de revista: de um lado, por aquelas escritas por historiadores; de outro, pelas escritas por economistas, técnicos e homens de negócio. Ora, a proposta da nova revista não poderia ser mais simples para ajustar essa fórmula: “estabelecer essa aproximação, unir ao invés de dividir, esse é o objetivo, essa é a ambição dos Annales d’Histoire Économique et Sociale”.

359 Carta de Febvre a Bloch de 23 de setembro de 1928. Do original: “J’espère qu’une fois la revue lancée,

le travail sera plus simple. Pour l’instant, il me paraît assez lourd”. Ibidem, p. 79.

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Figuras 1 e 2: Carta de lançamento e primeira página do panfleto de propaganda dos Annales (Fonte: Fonds Paul Leuilliot, Bibliothèque minicipale, Colmar, retirado de Marc Bloch, Lucien Febvre.

Op. cit., 1994, p. 35, 110)

Fixavam-se as barras do espírito colaborativo, apostava-se na história econômica em nome de atender os anseios do presente: “aqui, ajudaremos os homens de ação oferecendo-lhes os meios de melhor compreender o seu tempo: acredita-se que isso já é o bastante”361 (grifos meus). O conjunto de pensamentos que guiaria a prática de Marc Bloch – mais do que dos Annales propriamente dito – parece estar naquelas poucas linhas da propaganda da revista. De qualquer forma, deixavam clara a ambição de não separar a história da vida ordinária dos indivíduos.

Marc Bloch, durante o processo de “campanha” para a revista, participaria de um congresso na Noruega, o Congrès de sciences historiques de Oslo. Para ele e Febvre, essa era a oportunidade-chave para estabelecer contatos importantes com o objetivo de ampliar os horizontes nacionais da revista. Com panfletos na mala e o discurso afinado de que lançaria uma “revista nacional de espírito internacional”362, Bloch viajou. De

passagem em Estocolmo, após o evento, relataria ao amigo que acreditava que a iniciativa seria bem recebida: “Como testemunham diversas cartas que recebi, encontraremos no

361 Ibidem, p. 108. Reprodução de panfleto disponível em Fonds Paul Leuilliot, na Biblioteca Municipal de

Colmar.

119 estrangeiro importantes simpatias”363. Simpatias que, ao fim, não resultariam em tantas

colaborações quanto fora esperado.

A questão dos artigos, aliás, era o grande desafio dos Annales no que se refere à visão de história que queriam divulgar. Faziam projeções bastante animadoras sobre o que seria a revista: “estou, assim como você, animado pelos títulos e temas dos artigos que nos foram generosamente prometidos por tantos ilustres colaboradores”364. Em pouco tempo, tal sentimento seria aplacado. Não é raro questionarem a qualidade dos artigos recebidos, tampouco enviarem um ao outro relatos de promessas de colaboração não cumpridas ou atrasadas. O sarcasmo com o qual tratavam Leclerc nas cartas apareceria também nos comentários sobre alguns artigos que recebiam. Bloch escrevia aborrecido com o trabalho de tradução de um artigo: “Li todo o [artigo de] Espinas e cortei diversas partes sem piedade. Quase tenho remorso de ter contribuído a solicitar aos Annales essa terrível peça de literatura. Não que ele seja estúpido, longe disso. Mas que língua!”365. A

réplica de Febvre comenta sobre outro artigo, mas mantém o tom ácido:

Madame Bloch me enviou o manuscrito de Glotz. Brrrou! Senti um arrepio na espinha. Isso poderia ser engraçado, mas não é. [...] Admito que desejo que esse papiro vá ao diabo, ao invés de encabeçar nosso número 1. [...] Acusei o recebimento e (hipocrisia notória) o agradeci366!

Ambos os artigos fizeram parte do primeiro número da revista. Apesar de todo o desgosto de Febvre, o artigo sobre os preços dos papiros gregos foi o que abriu a revista que tanto estimavam367. A falta de tempo, a escassez de colaborações e a necessidade de manter as relações sociais com os colaboradores constrangiam qualquer possibilidade de recusar uma colaboração àquela altura. “O verdadeiro problema está aí: precisamos de mais colaboradores”368. As pressões editoriais, mais uma vez, se impunham.

363 Carta de Bloch a Febvre, 31 de agosto de 1928. Do original: “Comme em témoignent par ailleurs diverses

lettres que j’ai reçues, nous recontrerons à l’étranger des sérieuses sympathies”. Ibidem, p. 50.

364 Carta de Febvre a Bloch, 23 de setembro de 1928. Do original: “je suis, d’autre part, comme vous sans

doute, un peu ému par les titres et sujets des articles qui nous sont généreusement primis par tant d’illustres collaborateurs”. Ibidem, p. 72.

365Carta de Bloch a Febvre, 31 de outubro de 1928. Do original: “j’ai lu tout Espinas et y ai donné des forts

coups de sabre. J’ai presque des remords d’avoir contribué à attirer aux Annales ce terrible morceau de littérature. Non que cela soit sot, tant s’em faut. Mais quelle langue!”. Ibidem, p. 104.

366 Carte de Febvre a Bloch, início de novembro de 1928. Do original: “que Madame Bloch m’a transmis

le manuscrit de Glotz. Brrrou! J’en ai um peu froid dans les dos. Ça aurait pu être assez drôle. Ça ne l’est pas.[...]. Je voudrais bien ce papyrus au diable, plutôt qu’em tête de notre numero 1, je l’avoue. [...] J’accuse réception et (hypocrisie notoire!) je remercie!”. Ibidem, p. 105.

367 Gustave Glotz. “Le prix du papyrus dans l’Antiquité grecque”. In: Annales d’Histoire Économique et

Sociale, 1e année, 1929, pp. 3-12.

368 Febvre a Bloch, 26 de agosto de 1929. Do original: “Le vrai problème c’est celiu-ci: nous manquons de

120 É por isso que tanto se defende que o verdadeiro espírito dos Annales esteja nas suas resenhas. Sem muito controle sobre os artigos que recebiam – não podiam simplesmente “forçar” um ponto de vista dos colegas de trabalho –, deixavam para aplicar suas visões da história nos comentários que faziam dos livros havia pouco lançados. Nas resenhas percebe-se igualmente quem seriam os seus “homens de confiança”, que comungavam de suas perspectivas sobre a disciplina. Entre outros, Georges Lefebvre, Maurice Baumont, Albert Demangeon, Charles Edmond-Perrin, Maurice Halbwachs eram nomes recorrentes nessa espécie de contribuição. Mas, obviamente, Marc Bloch e Lucien Febvre eram de longe as assinaturas mais recorrentes dessas seções críticas369.

Todo o esforço para publicar e divulgar os Annales não teve bons resultados ao longo do primeiro ano. Precisavam de 800 assinantes para considerar a iniciativa um sucesso comercial. Em setembro de 1929, próximo ao fechamento da última edição daquele ano, contavam com uma base de 300 a 350 assinantes.

No ano seguinte, promoveriam uma grande reformulação da revista. Entre as mudanças, a que mais se destaca é a criação da seção de enquetes, mais uma tentativa para dar corpo ao projeto historiográfico que tinham idealizado. Nelas, realizavam um esforço de colaboração coletiva e internacional, além de buscar reforçar as bases científicas da história, bem aos moldes daquilo que propôs Bloch em seu discurso de 1921.

Os números de tiragens impressas também refletem o problema. A edição 1 teve 2.500 exemplares lançados no mercado. Os números 2, 3 e 4 contaram com uma grande queda, para 1.300 exemplares. O ajuste aqui realizado mostra que o impacto da revista não foi o esperado. De 1930 a 1933 cada edição contaria com 1.100 exemplares e, a partir daquele último ano, seriam impressos 1.000 exemplares por número370. O público leitor não aumentou significativamente ao longo dos anos; ficou mais ou menos estável. Bloch e Febvre contaram mais com o apoio do círculo construído ao longo de uma década de carreira universitária do que propriamente com o sucesso do esforço propagandístico. Mais um ponto que relativizava o peso da afirmação de uma “revolução historiográfica”.

369 As resenhas eram normalmente divididas dentro de pequenas seções temáticas. 370 Ver Bertand Müller, Op. cit., 1997, p. XLV.

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