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Capítulo 2 – AS GUERRAS PELA HISTÓRIA

2.5 Annales, ano 1

2.5.1 Acordos

Observamos que os Annales são o tema principal das cartas. Negociações com o editor, busca por colaboradores, assinantes, discussões relativas aos artigos recebidos, enfim, todos os aspectos da produção de cada número podem ser acompanhados a partir delas. As epístolas foram adotadas como meio privilegiado para discutir assuntos da revista339.

Isso não significa que assuntos de outra ordem não sejam abordados com certa regularidade. Saúde, família, férias, viagens e – o que se tornaria uma polêmica entre os dois – candidaturas universitárias também aparecem em diversos momentos. Em contrapartida, pouco se discute sobre o ambiente político ou econômico da França. Tais assuntos ganham um pouco mais de corpo somente a partir da Segunda Guerra Mundial. O volume das cartas também é bastante representativo no sentido de definir espacialidades. Os endereços de postagem e entrega revelam um pouco da movimentação dos dois em território francês, sempre se locomovendo entre Estrasburgo, Paris e o

112 interior da França, em suas respectivas casas de campo. Além disso, o fluxo aumenta muito entre 1933 e 1935, reflexo da mudança de Febvre para Paris, após a nomeação para o Collège de France. Da mesma forma, quando Bloch torna-se professor da Sorbonne, em 1936, o volume decresce.

As cartas revelam ainda outra questão significativa para a história cultural que inspira algumas de nossas análises: a importância de dar forma material ao projeto historiográfico. Sem um periódico e sem que este ganhasse peso no cenário francês, a recepção de suas mensagens seria extremamente enfraquecida. Bloch e Febvre logo observaram que não bastava colaborar com a Revue de Synthèse; era necessário criar o próprio espaço, autônomo o suficiente para divulgar suas ideias. Febvre deixaria essa preocupação bem clara: “Quanto mais penso, mais concluo que precisamos intervir pessoalmente nos primeiros números, com energia e continuidade. [...] Desejamos uma revista motivada por um certo espírito”340 (grifos meus). Controlar o projeto para que a sua recepção fosse a mais próxima possível do sentido de sua produção mostrou-se uma ambição sempre consciente da dupla341.

Apesar disso, deve-se ressaltar que discussões teórico-metodológicas são raras nas cartas. Suas grandes preocupações sempre foram mais de ordem prática. Desde as primeiras correspondências, observa-se que as questões materiais da revista predominam. Ora, a maneira pela qual a revista se apresentara seria tão determinante quanto o seu conteúdo.

E, nesse sentido, a escolha da editora exerceu papel fundamental. Se hoje a menção ao termo “Annales” é suficiente para identificarmos a empreitada de Bloch e Febvre, isso se deveu à escolha da Armand Colin frente à concorrência da Alcan. Esta publicava a Année Sociologique e a Revue Historique. Haveria, então, certa disputa interna, com duas revistas de história publicadas pela mesma editora. Mas a questão decisiva foi a remuneração oferecida pela Alcan aos dois historiadores, além da proposta de estruturação da revista que não os agradou.

340 Do original: “Plus je vais, plus je me dis qu’il faut que nous intervenions personnellement dans les

premiers números, avec énergie et continuité. [...] nous voulons une revue animée d’un certain esprit” (grifos meus). Ibidem, p. 72.

341 De fato, no primeiro número, além de assinarem juntos o editorial da revista, também assinaram um

artigo em defesa das enquetes coletivas e a seção de novidades científicas, em parceria com outros colaboradores. Febvre assume ainda a autoria de oito resenhas, ao passo que Bloch publicaria treze resenhas e um artigo sobre o Congresso de Olso, em que participou em 1928, e que será mencionado novamente em breve neste capítulo.

113 Feita a decisão, o próximo passo seria o de escolher o nome do impresso. A primeira ideia lançada por Bloch foi de batizá-lo como L’Évolution Économique et

Sociale. Max Leclerc342, o editor, não ficou satisfeito. Julgava ser um bom título para um

livro, não para um periódico. Sugeriu, então, Annales Économiques, pois a Colin publicava outra revista de relativo sucesso, Annales de Géographie. Criaria, assim, um senso de unidade entre as produções que potencialmente poderia atrair alguns assinantes. Prontamente, Bloch e Febvre reagiram. O nome não dava a ideia de que se tratava de uma revista de história. Além disso, ela não seria restrita somente a estudos econômicos. Chegaram, então, ao nome Annales d’Histoire Économique et Sociale. Apesar de ainda não estarem plenamente satisfeitos, decidiram por apresentar a sugestão ao editor após contarem com a benção do amigo Henri Pirenne343. Seu argumento a favor do nome se dava no seguinte sentido: deveriam convencer o editor a inserir especialmente o termo “social”, pois ele é tão vago e polissêmico que combinaria com qualquer ambição teórica que viessem a ter, além de ampliar significativamente as possibilidades de colaboração. Seria o artifício perfeito. Estava nomeada a revista.

Eram questões de mercado se impondo ao projeto desde o seu batismo, já que assim poderiam ampliar o quantitativo de leitores e colaboradores. Os Annales de

Géographie – que, aliás, era dirigido por Albert Demangeon, que atuou como mediador

entre os historiadores e o editor nas primeiras negociações por ser um entusiasta do projeto, colaborando inclusive com alguns artigos após a fundação – seriam o modelo de título e também de tipografia. A semelhança simbólica entre os projetos precisava ser evidente ao primeiro olhar do leitor.

Vencida a barreira inicial, logo se imporiam mais dificuldades. Outra que ainda esteve bem no germe das negociações foi a escolha do comitê de redação. Uma vez mais, o editor discordaria das escolhas dos dois. Leclerc não queria que o nome de Maurice Halbwachs, também professor da Universidade de Estrasburgo e grande amigo de Bloch344, figurasse na lista. Para ele, a sociologia era uma ciência incipiente e sem legitimidade e a associação dos Annales com ela não era bem-vinda. Após algumas reuniões, Lucien Febvre conseguiu manter o nome. O comitê, então, seria composto por

342 Leclerc é o mesmo que viria ao Brasil, na qualidade de jornalista, cobrir a instauração da República em

1889. Da investigação sairia o livro Lettres du Brésil, publicado em 1890, conhecido como um dos primeiros registros sobre o Brasil republicano, dentro de uma acepção moderna. Ver Janete Silva Abrão. “O Brasil de Max Leclerc”. Estudos Ibero-Americanos, PUCRS, v. 38, supl., p. S116-S128, nov. 2012.

343 Ibidem, p. XXIV.

114 Alber Demangeon, geógrafo; Halbwachs; os historiadores Georges Espinas, Henri Hauser, André Pignaniol e Henri Pirenne; o economista Charles Rist; e André Sigfried, sociólogo ligado aos estudos do contemporâneo. Tem-se, portanto, definido o esboço daquela interdisciplinaridade que faria a fama da revista. A geografia humana de Vidal de la Blanche estava ali representada, bem como a sociologia e a economia, auxiliando na construção da história.

A mesma listagem vem representar outra questão que seria um problema aos

Annales. De todos os nomes, apenas André Sigfried não colaborou com artigos na revista,

apesar das constantes promessas. Coincidentemente, o contemporâneo e o tempo recente, a sua especialidade, seriam temas de muito valor para Bloch e a ideia que tinha da revista – e da história –, mas sobre os quais nunca conseguiram muitas contribuições. Quando organizaram a primeira edição, Bloch já sentia essa lacuna, que iria perdurar durante longo tempo: “Ciente de seu aviso concernente ao ‘contemporâneo’. Será difícil. Acabei de escrever a Baumont345. Verei o que posso fazer em Paris”346. Se a memória do legado dos Annales não conta com a história do tempo contemporâneo, não foi por falta de vontade e iniciativa dos seus diretores da primeira geração. Mais um indício das limitações editoriais impondo-se sobre a visão historiográfica.

Em maio de 1928, um primeiro acordo então era selado entre diretores e editora. Escolhido o título, a qualidade do papel (“bouffant blanc”347), a possibilidade de imprimir

esboços para revisão (dentro de um certo limite de moderação não explicitado nas cartas), bem como o preço da assinatura da revista: anuidade de 55 francos na França, 60 e 65 fora do país348. Projetaram o lançamento para outubro ou novembro daquele ano – a primeira edição só sairia em janeiro do seguinte. A árvore organizacional da revista também se estabelecia: Max Leclerc como editor, a cuidar de questões técnicas e comerciais; Marc Bloch e Lucien Febvre como diretores; e Paul Leuilliot como secretário da revista, acumulando funções administrativas, menores do que em outras publicações porque a dupla de diretores queria manter o controle da publicação349. Por fim, o público

345 Marc Bloch pediu a colaboração de Maurice Baumont, especialista em história da Alemanha: um artigo

sobre a influência da crise econômica pós-guerra para a organização social alemã. Ibidem, p. 32, nota 85.

346 Marc Bloch a Lucien Febvre, 4 de julho de 1928. Do original: “Tout à fait de votre avis em ce qui

regarde le ‘contemporain’. C’est sera dur. Je viens d’écrire à Baumont. Je verrai ce que je puis faire”. Ibidem, p. 32.

347 Papel até hoje bastante utilizado na impressão de livros. A gramatura é variável, mas a mais utilizada é

de 80g/m2.

348 A Revue de Synthèse custava 45 francos na França, 50 e 55 fora; os Annales sairiam quatro vezes ao

ano, enquanto a Revue era bimestral.

115 alvo: profissionais de história nacionais e estrangeiros, eruditos em geral e homens de negócio (especialmente banqueiros). Nota-se, portanto, uma abordagem que propunha ultrapassar os limites da especialidade na disciplina.

Faltava discutir a remuneração dos dois. Acordaram em 800 francos para cada por número lançado (mais 4 bilhetes para viajar entre Estrasburgo e Paris), após uma primeira oferta de 500. A título de comparação: os diretores dos Annales de Géographie recebiam 1100 francos cada350. Obviamente, os novos diretores tinham que percorrer longo caminho e justificar o investimento para alcançarem maior retorno financeiro.