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Capítulo 1 – MARC BLOCH E A GRANDE GUERRA (1914-1918)

1.4 Sobre escrever no trauma

Findados os cinco meses iniciais da campanha, Marc Bloch fez um balanço de sua trajetória até ali. Escreveu em Souvenirs sobre a excepcionalidade de sua experiência:

Assim, de 10 de agosto de 1914 a 5 de janeiro de 1915, levei uma vida tão diferente quanto possível de meu curso ordinário, uma vida bárbara, violenta, frequentemente pitoresca, também frequentemente carregada de uma morna monotonia, com elementos de comédia e momentos cruelmente trágicos. Em cinco meses de campanha, quem não acumularia uma rica experiência?152

O relato resume bem traços frequentemente mencionados. A carência material para estar à altura dos alemães é reforçada: em La Gruerie presenciou a instalação na “terra de ninguém”153 arames lisos ao invés dos farpados; era comum ele e os demais

terem que responder a bombardeios com tiros de fuzil; cavou trincheiras com equipamentos portáteis para emergências, totalmente inadequados e ineficientes; o sistema telefônico impossibilitava a comunicação com a artilharia. Em Larzicourt, os

150 Cf Marc Ferro. “Recordações amargas”. In: _______. Op.cit., 1990, pp. 289-294. 151 Carole Fink. Marc Bloch: uma vida na história. Lisboa: Oeiras, 1995, p. 76.

152 Do original: “Ainsi, du 10 août 1914 au 5 janvier 1915, j’ai mené une vie aussi différente que possible

de mon train ordinaire, une vie barbare, violente, souvent pittoresque, souvent aussi d’une morne monotonie, avec des parties de comédie et des moments cruellements tragiques. En cinq mois de campagne, qui n’amasserait une riche moisson d’experiénce?” Marc Bloch. Op. cit., 1997, p. 147.

58 oficiais, escondidos em uma plantação, garantiam a segurança no momento em que se tornavam incomunicáveis e por isso incapazes de comandar as companhias. Tornaram-se meros espectadores da luta que deveriam liderar. Se houve progressos nesses primeiros momentos, foram desenhados de forma extremamente lenta e custosa aos franceses, tonificada sobretudo pela negligência do alto comando154.

Para o autor, aliás, essa questão do distanciamento e da indiferença dos comandantes em relação aos comandados era uma das coisas que mais o incomodava. Se no fim do século anterior a nação passou por uma derrota traumática para o inimigo que mais uma vez se fazia presente, a lição aparentemente não fora aprendida:

Por vezes, os encontrava [os comandantes] mediocremente preocupados com o bem-estar dos seus soldados, demasiadamente ignorantes da vida material dos homens e minimamente desejosos de a conhecerem. As palavras: “que se virem” – palavras sinistras que desde [18]70 não deviam ser pronunciadas – são ainda frequentes em seus lábios.155

No entanto, Marc Bloch sabia da importância de relativizar essas impressões. Apesar de lembrar-se de um capitão “rude” e “covarde”, que só conseguia o respeito dos seus homens através de ameaças e punições, escrevia também sobre o fato de ter convivido com homens memoráveis, que possuíam um “magnetismo bem próprio aos verdadeiros chefes” e cujas palavras, por menos esperançosas que fossem, eram capazes de movimentar as tropas em direção a um objetivo comum. Ainda assim, a falta de efetividade dos grandes generais era algo que lhe incomodou ao longo de toda a campanha – e esse incômodo iria retornar 21 anos mais tarde.

Em relação ao soldado comum, as impressões que ficaram foram bem mais agradáveis. Não eram raras demonstrações de honra e bravura. Bloch lembra com admiração da positividade do colega “M.”, que ao ouvir a notícia de que os alemães estavam a trinta metros deles, respondeu prontamente: “Ora, nós é que estamos a 30 metros dos alemães!”. Apesar dessas boas recordações, ele procurava não se deixar levar pela clara admiração que possuía pelos seus homens, e lembrava que em uma companhia não se pode contar somente com indivíduos uniformemente inteligentes e bravos como “M.”: nem todos os que ele comandou eram pessoas confiáveis e íntegras156.

154 Marc Bloch. Op. cit., 1997, p. 147.

155 Do original: “ Je n’ai pas toujours été content de tous les officiers. Je les ai trouvés parfois médiocrement

attentifs au bien-être de leurs soldats, trop ignorants de la vie matérielle des hommes et trop peu désireux de la connaître. Les mots : « Qu’ils se débrouillent » - mots sinistres que depuis 70 on ne devrait plus oser prononcer – sont encore trop souvent sur leurs lèvres.” Ibidem, p. 147.

59 Ainda assim, o que parecia reger o comportamento da grande maioria para Bloch era a coragem. Ainda que tenha visto a expressão do medo em alguns, a energia moral parecia generalizada157. A onipresença da morte era uma espécie de turning point para

que tal comportamento prevalecesse. Era notável que

[...] por um feliz reflexo, a morte deixa de ser temível a partir do momento em que ela parece próxima: é isso que, no fundo, explica a coragem. A maioria dos homens temem ir ao fogo e sobretudo de retornar a ele; uma vez que lá estão, não tremem mais. Acredito que poucos soldados, salvo os mais inteligentes e aqueles com o coração mais nobre, são guiados corajosamente pela defesa da pátria; eles são muito mais frequentemente guiados pela honra individual, que é muito forte entre eles desde que seja estimulada pelo grupo: porque se em uma tropa a maioria é covarde, o ponto de honra será o de sofrer o menor dano possível. Sempre mantive a política de manifestar abertamente um sincero desgosto que me causavam determinados covardes de minha seção.158

Nesse trecho conjugam-se diversos elementos trabalhados ao longo do capítulo. Inicialmente, Bloch descreve sentimento análogo à já mencionada atitude blasé. O que chama de coragem é o não pensar na morte, que paralisaria a ação daqueles homens. Mais forte que evitar o fim individual é a honra pessoal, que necessariamente está atrelada a um comportamento social. Nessa disputa, “honra” tem mais força do que “pátria” para a maioria. Esta, aliás, estaria reservadas às almas mais nobres.

O interessante é notar que nesse trecho os soldados são “eles”. Bloch, de certa forma, se vê diferente em relação aos homens com os quais convive, em sua grande maioria camponeses e trabalhadores da França. Nas páginas seguintes levantaremos uma hipótese que procura explicar esse discurso. Mas, por ora, vale perceber: logo após anunciar que o nacionalismo é um diferencial dos espíritos mais elevados, Bloch se apropria das palavras de um companheiro, que lhe escreveu em carta, para finalizar o seu tópico: “Viva a França, e uma vigorosa vitória!”159

157 Ibidem, p. 149.

158 Do original: “J’ai toujours remarqué que, par un heureux réflexe, la mort cesse de sembler très

redoutable du moment qu’elle semble proche : c’est au fond ce qui explique le courage. La plupart des hommes craignent d’aller au feu, et surtout d’y retourner ; une fois qu’ils y sont, ils ne tremblent plus. Je crois que peu de soldats, sauf parmi le plus intelligents et ceux qui ont le cœur le plus noble, lorsqu’ils se conduisent bravement pensent à la patrie; ils sont beaucoup plus souvent guidés par le point d’honneur individuel, qui est très fort chez eux à condition qu’il soit entretenu par le milieu: car si dans une troupe il y avait une majorité de lâches, le point d’honneur ce serait bientôt de se tirer d’affaire avec le moins de mal possible. J’ai toujours estimé d’une bonne politique de manifester ouvertement le dégoût très sincère que m’inspiraient les quelques froussards de ma section.” Ibidem, p. 150.

159 O trocadilho não faz tanto sentido em português: “Vive la France, et vivement la victoire!” Ibidem, p.

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