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Capítulo 2 – AS GUERRAS PELA HISTÓRIA

2.6 As rusgas

2.6.2 Lucie Varga

A segunda rusga entre os historiadores tem a ver com suas vidas privadas afetando o andamento da revista. Desde que assumira a vaga no Collège, Lucien Febvre ficava cada vez mais atribulado com as várias atividades que desenvolvia. Ao perceber que não estava conseguindo assimilar todas elas, decidiu contratar um assistente. A escolhida foi Lucie Varga (cujo nome original era Rosa Stern), de origem austríaca, refugiada em Paris graças aos eventos de 1933. Datilografar textos, revisá-los, organizar a sua agenda eram as tarefas que lhe foram incumbidas inicialmente390. Poderia, assim, dedicar-se devidamente à escrita de um livro sobre as religiões do século XVI:

Meus trabalhos... aqui, novamente, eu lhe asseguro. Trabalho ativamente nas Religiões do século XVI. Contratei um “treinador”, melhor dizendo uma treinadora391: uma austríaca aluna de Dopsch, sobre o qual creio já ter falado

com você, madame Varga-Borkenau – que três manhãs por semana vem trabalhar comigo392.

Gradualmente, a relevância da atuação da aprendiz para o trabalho de Febvre ia aumentando, ao ponto de ela fichar livros e fornecer, assim, material para que Febvre pudesse publicar na Revue de Synthèse e nos Annales resenhas de obras que não tinha tempo de ler393. O passo seguinte foi o de começar a assinar as resenhas nas duas

388 Carole Fink. Op. cit., p. 178.

389 O `Collège de France e a Sorbonne estão localizados na mesma rua em Paris. 390 Bloch, por sua vez, contava sempre com a ajuda da esposa.

391 O termo em francês é “entraîneuse”. Bertrand Müller destaca a triste escolha do emprego da palavra

(Op. cit.¸2003, p. XLIV), pois em francês ele pode significar “treinadora” ou, pejorativamente, “garota de programa”.

392 Carta de Febvre a Bloch, início de março de 1934. Do original: “Mes travaux... Mais, ici encore, que je

vous rassure. Je travaille activement aux Réligions du xvie siècle. J’ai pris un “entraîneur”, une

entraîneuse plutôt, en la personne d’une Autrichienne élève de Dopsch, dont je vous parlé, je crois, Mme

Varga-Borkenau ”. Marc Bloch, Lucien Febvre, Op. cit., 2003, p. 40.

393 Quem levanta esta hipótese é Peter Schöttler, no livro Lucie Varga: les autorités invisibles. Une

129 publicações. Varga se tornava a primeira mulher a publicar regularmente nos Annales. Sua relevância foi além: a edição mais ligada à política da revista naquele período Febvre/Bloch, tratada no próximo tópico rapidamente, foi por ela organizada.

Nas correspondências, a menção à sua figura torna-se recorrente, sinal de que ela se tornava peça cada vez mais relevante para as engrenagens da revista. Sabe-se que Bloch, que não a conhecera pessoalmente até se instalar em Paris em 1936, sempre tivera uma postura austera em relação a ela394, enquanto o parceiro sempre demonstrou admiração pelo talento e pela postura da historiadora.

A relação pessoal entre Febvre e Varga também aumentava. Ela passou a frequentar a casa dos Febvre mais frequentemente. Chegou a dar aulas de alemão e a levar o filho Henri para conhecer a Áustria395. Sob a sua orientação, Febvre programou uma viagem de férias a Viena e Praga, e estabeleceu contatos profissionais com o antigo professor, Alfons Dopsch. Ao fim, envolveram-se em um relacionamento amoroso que, obviamente, não fora sequer uma vez mencionado nas cartas, mesmo que sugerido implicitamente396.

Em 1937, o relacionamento pessoal e profissional entre Febvre e Varga encontrou a ruptura397. Constrangido e enfrentando uma grave crise, então, Febvre aceitava uma missão de trabalho de três meses na Argentina naquele verão398.

Curiosamente, foi em um cruzeiro que fez durante essa viagem que reencontrou Fernand Braudel – que, sabemos, futuramente viria a ser o novo diretor da revista –, que havia sido aluno dele e de Bloch em Estrasburgo, e com quem se encontraram em eventos episódicos ao longo da década de 1930. Braudel estava tomando a embarcação para retornar a Paris depois de uma temporada como professor na Universidade de São Paulo, para assumir uma vaga na EPHES.

Nessa ocasião a intimidade do historiador esbarrou nos destinos da revista e gerou nova tensão. Febvre abandonou o projeto durante todo esse tempo, enquanto Bloch

394 Bertand Müller, Op. cit., 2003, p. XLV. A título de exemplo: há uma carta, escrita em maio de 1937, na

qual Bloch se queixa de que Varga “o reteve na mesa”, por conta de uma tradução malfeita de um artigo de R. Koebner sobre mercados escravos e vilas alemãs, que seria publicado na próxima edição daquele ano. Ibidem, p. 441.

395 Ibidem, p. XLV.

396 Müller narra, em carta não publicada na coleção, que Febvre, teria mencionado os sonhos “de Tyrol, de

Dolomitas” frente à proposta da esposa de ir ao Franco-Condado, de que tanto gostava. Ibidem, p. XLV.

397 Peter Schöttler afirma que a ruptura se deu por exigência da esposa de Febvre, Sozanne Dognon,

enquanto Müller indica não saber das circunstâncias para o rompimento.

398 Lucie Varga faleceria em 1941, aos 36 anos, em decorrência de uma crise de diabetes, bastante agravada

130 ficou encarregado, sozinho, de organizar um número inteiro do periódico399. O peso desse

problema vinha sendo carregado desde as primeiras edições: é recorrente a insinuação de que faltava equilíbrio na divisão de tarefas entre os dois para a revista. Especialmente depois de 1933, tornava-se bastante comum Febvre pedir desculpas pelo relativo abandono do projeto. Ainda em 1929400 haviam tido uma discussão sobre a prioridade do periódico em relação às demais atividades. Mas houve casos, também, em que Febvre pressionava Bloch a cumprir prazos cada vez mais curtos401.