• Nenhum resultado encontrado

Capítulo 2 – AS GUERRAS PELA HISTÓRIA

2.6 As rusgas

2.6.3 Reformulações

O terceiro momento de discussões mais exacerbadas entre os dois annalistes ocorreu no mesmo ano de 1937. Poderíamos, inclusive, tratá-lo como um prolongamento das indisposições surgidas naquele verão. Ao longo do ano, haviam discutido com Phillipon, o editor, por se recusarem a publicar nos Annales um artigo pró-nazismo. Além da questão política, existia um pano de fundo de desgaste nas relações entre a editora e os historiadores.

A questão torna-se ainda mais compreensível se observarmos que organizavam uma edição que abordaria como tema central a Alemanha. Dentro do espírito da história- problema e da busca pela compreensão do presente que faria o renome da publicação, tentavam contribuir para o entendimento do nazismo a partir da especificidade histórica alemã. Como já sabemos, Lucie Varga encabeçou a organização do dossiê e escreveu o seu editorial: “Perto de nós um mundo terminou. Um novo surgiu, trazendo consigo fenômenos até então desconhecidos. Não temos que tentar compreendê-lo?”402. A revista seria composta por uma série de artigos que abordavam diversos aspectos daquela terrível novidade que lhes causava tanta preocupação e que, no entanto, só podia possuir raízes antigas.

399 Olivier Dumoulin, Op. cit., 2000, p. 101. Durante aquele período, trocaram poucas correspondências.

Febvre envia a Bloch uma carta do mar, com um certo pedido de desculpas e com um final emblemático, no qual reforçava a necessidade da luta pela história que empreendiam. Bloch o respondia, também pedindo desculpas pelo longo silêncio e informando que, ao retornar, Febvre encontraria ainda algum trabalho da edição dos Annales que estava no prelo. Ibidem, pp. 442-449.

400 Marc Bloch, Lucien Febvre, Op. cit., 1997, pp 210-211. 401 Ibidem, p. 298.

402 Lucie Varga. “La Genèse Du National-socialisme Notes D'analyse Sociale”. Annales D'histoire

Économique Et Sociale , 9 (48), 1937. EHESS: 529–46. http://www.jstor.org/stable/27574562. Na mesma edição, Varga assinou, ainda, um artigo sobre a juventude hitlerista.

131 É factível enxergar essa edição como divisora de águas. Se foi a mais política até ali, também marcaria dois rompimentos importantes: acabou sendo a última participação de Varga na revista e o derradeiro fruto da relação Armand Colin/Annales. Dos novos caminhos pelos quais a publicação forçosamente teria que passar, emergiram mais uma vez as diferentes visões que editora e organizadores tinham do empreendimento. A revista, então rebatizada de Annales d’histoire sociale, transformou- se – e não somente pela mudança de nome.

Diante da percepção de que deveriam promover um “resgate urgente” da revista, Febvre destacou a perda de sua relevância especialmente por conta do excesso de artigos demasiado “eruditos e pedagógicos”, muito centrados na Idade Média. Propunha que atinassem para o fato de que se tratava de “uma revista de ideias”, que não poderia adotar o conformismo “centro-esquerdista” que tomava conta dos ambientes universitários403. Bloch sentiu-se pessoalmente ofendido pelas alegações: “não me trate como um vil erudito, muito menos de chato conformista”404. Sobre o conformismo:

“permita-me sorrir [...] você fez uma resenha do livro de Baumont que me deixou pasmo pelo caráter quase uniformemente elogioso”405. Chegaria mesmo a sugerir o fim da

parceria: “você deseja prosseguir, comigo, dentro daquele espírito que é nosso, com a publicação dos nossos Annales? [...] [ou] deseja dirigi-la sozinho?”406. A fim de evitar

maiores ruídos, Bloch convidou Febvre para uma conversa tête-à-tête, deixando-nos órfãos de traços escritos sobre o acordo a que chegaram:

Um último pedido, caro amigo, antes que eu termine esta carta. Não me responda por escrito. Depois de me ler, marque comigo um encontro por telefone. Que essa conversa, da qual tantas coisas dependem, seja ao menos uma verdadeira conversa, não privada da presença humana407.

A rusga ainda teria ruídos após essa feroz troca de acusações. Bloch, ao fim daquele ano, relataria a dificuldade de criar uma conta em nome de uma sociedade que oficialmente não existia. Sem consultar Febvre, pediu aos assinantes para que renovassem

403 Carta de Febvre a Bloch, 18 de junho de 1938. Marc Bloch, Lucien Febvre, Op. cit., 2003, pp. 22-25. 404 Carta de Bloch a Febvre, 22 de junho de 1938. Ibidem, p. 26.

405 Ibidem, p. 26.

406 Do original: “Voulez-vous poursuivre avec moi, dans l’esprit que est nôtre, la publication de nos

Annales? [...] Voulez-vous prendre seul la direction? ”. Ibidem, p. 31.

407 Do original: “Une dernière prière, mon cher ami, avant que je ne ferme cette lettre. Ne me répondez

point par écrit. Après m’avoir lu, fixez-moi un rendez-vous par téléphone. Que cette conversation, dont tant des choses dependente, soit du moins une vraie conversation, non privée de la présence humaine”. Ibidem, p. 31.

132 as anualidades, enviando um cheque postal para a sua conta pessoal408. Dois anos depois,

o assunto viria à tona em mais uma discussão. Também divergiam sobre os papéis dos novos colaboradores e proprietários da revista, Paul Leuilliot e Fernand Braudel409, ao

longo de quase um ano.

***

A revista sobreviveu ao ano de 1938, mas a eclosão da Segunda Guerra Mundial geraria novo ponto de conflito. Sob pressão do Estatuto dos Judeus410 e correndo o risco de a revista ser proibida, Febvre sugeriu a Bloch que se retirasse dos Annales. Sobre esta desavença, basta por ora mencioná-la. Nas páginas que seguirão ela retornará, pois, ao mesmo tempo que remete a uma nova etapa (dramática) da trajetória de Bloch, envolve diretamente a questão da postura dos diretores dos Annales frente ao nazismo, tão cara aos esforços de memória que serão tema do último capítulo desta tese.

Os esforços realizados neste momento vieram, então, no mesmo sentido dos demais, de relativizar uma memória construída posteriormente aos fatos. Observar o estabelecimento do campo pré-Annales é crucial para entendermos o ambiente no qual suas projeções historiográficas puderam se desenvolver. As heranças intelectuais, tão repetidas, mostram a sua relevância. Da mesma forma, foi importante determinar quem eram seus adversários, os metódicos. Entretanto, para além do que se diz sobre a quebra de barreiras da história nacional promovida por Bloch e Febvre, podemos perceber igualmente projetos em comum. Defender a história como uma ciência é uma delas. Assim como o estabelecimento de uma revista que se postaria como uma novidade e um guia do bom fazer historiográfico. Nesse sentido, os Annales de 1929 não diferem muito da Revue Historique de 1876.

E se nas resenhas temos a alma dos Annales, nos artigos percebemos a fragilidade da memória que vende tanta solidez e comunhão de ideias para a prática

408 Marc Bloch. “À nos lecteurs”. Annales HES, 10, 1938, p. 482. 409 Ambos entrariam como sócios minoritários da revista.

410 Que trataremos no próximo capítulo. Proibia que judeus exercessem atividade docente e publicassem

133 historiográfica. Os próprios diretores estão constantemente insatisfeitos com discursos que a revista deveria aceitar para garantir a sua circulação regular. Dentro do contexto aqui proposto, com essa insatisfação temos também um pouco da medida da inovação proposta pelos dois. Entre o que gostariam de receber como colaboração e o que de fato receberam percebemos, então, rastros da novidade da publicação como projeto historiográfico. Junto ao convite para novas reflexões para a história vem a necessidade de manter o fluxo da revista.

Da mesma forma, refletir sobre o ano em que o projeto ganhou forma importa. A materialidade da revista, raramente levada em conta, apresenta-se como traço fundamental de sua constituição. Se o processo de editoração é o que torna possível a existência de uma revista como Annales ser compreendida posteriormente como movimento historiográfico, é ela também o que limita a liberdade criativa dos seus diretores. Também foi por meio dela que percebemos a importância das sociabilidades para que o projeto sobrevivesse às primeiras edições. Não fossem os amigos de Estrasburgo, dificilmente a revista tomaria forma por falta de colaboradores. Na mesma toada, a carência de laços com historiadores do contemporâneo fez com que a revista sempre contasse com escassos estudos históricos sobre o tempo recente, considerado inicialmente um dos baluartes da renovação que tentariam promover. Reforçamos, então, a ideia que acabamos de lançar. A abordagem que propunham era inovadora, a ponto de não conseguirem correspondentes na historiografia à qual tinham acesso.

Finalmente, contra a noção de uma parceria inabalável e frutífera, surgem as trocas de desaforos, discussões e disputas que só as correspondências poderiam nos mostrar, passados tantos anos. Os desentendimentos entre Bloch e Febvre vêm não para quebrar com uma ideia da forte amizade entre os dois, mas para torná-la mais humana, como não poderia deixar de ser.

134