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Capítulo 1 – MARC BLOCH E A GRANDE GUERRA (1914-1918)

1.7 O homem, a memória e o tempo

Atualmente, uma das poucas afirmações que um historiador pode fazer sem ser questionado pelos seus pares é a máxima de que não podemos desvincular os documentos de seu contexto de produção. Ora, Souvenirs é, certamente, um testemunho particular, pertencente a um indivíduo que viveu uma experiência única. Mas, ao mesmo tempo, essa experiência, mesmo que não tenha sido vivida da mesma maneira pelos milhões de franceses que estavam no front, foi compartilhada entre eles. Se observarmos somente pelo prisma cronológico, percebemos que, à exceção da não-participação em Verdun e o intermédio em terras argelinas, a trajetória de Marc Bloch no conflito foi “banal”: esteve presente em momentos-chave vividos pela grande maioria dos soldados franceses. Assim como muitos, também fora ferido por diversas vezes (embora, no seu caso, nenhuma delas tenha tido demasiada gravidade). Não era em vão a sua certeza de conhecer os dramas pessoais dos “simples combatentes”, principalmente porque aqueles também eram os dele. Podemos, então, concluir que o testemunho de Bloch claramente o situa em seu tempo, uma vez que buscou, assim como muitas outras memórias sobre o mesmo evento, honrar os mortos e valorizar o esforço de guerra.

Outra máxima (que, aliás, foi anunciada por Bloch em seus trabalhos acadêmicos182) a qual o historiador pode anunciar com segurança é a de que o problema do presente orienta a visão sobre o passado. Funciona assim com os trabalhos de memória.

180 Stéphane Audoin-Rouzeau. “Introduction”. In: Marc Bloch. Op. cit., 1997, p. 22. 181 Ibidem, p. 21 (nota 44).

67 Memórias silenciadas, memórias emergentes, disputas de memória, são constitutivas de disputas políticas do presente, invariavelmente. Esta é, segundo Yosef Yerushalmi, a essência da memória coletiva: um movimento dual de recepção e transmissão, que continua alternadamente em direção ao futuro183.

Nesse sentido, é interessante retomar uma informação anunciada anteriormente neste texto: o diário de Bloch foi publicado pela primeira vez em 1969 – 25 anos após a morte do historiador. A partir desse dado, temos uma pista interessante que pode nos conduzir ao possível entendimento de um importante problema: por que apenas nesse momento foi interessante que Bloch fosse “ouvido” pelos franceses?

Em linhas muito gerais, aquele foi o período de outro trauma se abater sobre a sociedade francesa: a derrota para a Alemanha e a experiência colaboracionista de Vichy durante a Segunda Guerra. Era o início de tempos difíceis nos quais os franceses teriam finalmente que lidar com suas próprias responsabilidades sobre a morte de seus concidadãos. A identidade nacional francesa parecia arrasada. Nesse espaço, quase como uma estratégia para recuperar um pouco do orgulho nacional ferido, a Grande Guerra de 1914-1918 tornava-se a prova maior da força do nacionalismo entre os franceses. Nada mais coerente, então, do que recuperar a memória de alguém que fora um herói naquele evento. E, no caso de Bloch, era ainda mais do que isso: um herói aparentemente incontestável do segundo conflito mundial, mesmo após o início do debate sobre Vichy.

Concomitantemente a isso, havia o recente cinquentenário do fim da guerra, ocorrido no ano anterior, e certamente espaço de comemoração que eleva a guerra àquela categoria de temas a serem revisitados184. Se determinadas atitudes ao longo da Segunda Guerra passaram a ser questionadas, aquelas da Grande Guerra foram potencializadas como fontes importantes de construções simbólicas do nacionalismo francês. “Jamais esquecer, jamais repetir” tornou-se o lema, ainda mais forte, do conflito do início do século XX185 numa sociedade que, por ver seus valores individuais em xeque, passava a apostar então no soldado desconhecido - lugar de memória bastante difundido referente ao soldado anônimo que se perdeu em batalhas na Grande Guerra – como guia moral.

183 Yosef Hayim Yerushalmi. “Reflexiones sobre el olvido”. In: YERUSHALMI et all. Usos del olvido.

Buenos Aires: Nueva Vision, 2006, p. 6.

184 Sobre comemorações, ver Pierre Nora. Les lieux de mémoire (t1 – La République). Paris: Gallimard,

1984.

185 Jean-Noël Jeanneney. La Grande Guerre si loin, si proche: réflexions sur un centenaire. Paris: Seuil,

68 Marc Bloch, portanto, tornou-se mais do que um nome. Foi um homem de seu tempo, mas cuja trajetória atravessou a própria existência física para ser enquadrada nos embates da memória nacional.

E hoje? Qual seria a relevância da retomada de seu testemunho?

Testemunhos como os de Bloch trazem aos estudos acadêmicos aquela dimensão que por vezes falta em pesquisas da disciplina. Não se pode deixar escapar o forte traço do métier, explicitado justamente pelo indivíduo que norteia os estudos e tantas vezes repetido: nós, historiadores, tal como “o ogro da lenda”, temos faro para a carne humana186. E a questão da violência que o seu testemunho apresenta com maestria deveria aguçar os sentidos dessas criaturas que habitam os campus universitários. Afinal, se tomarmos a analogia de Bloch como certa, a guerra é um verdadeiro banquete para elas. Nesse sentido, estamos seguindo os apelos de alguns historiadores, quando chamam a atenção para a carência de análises sobre esse tema ao longo do primeiro centenário do conflito: a violência, quando tratada, é “desencarnada”, muitas vezes reduzidas a cifras e estatísticas187. Foram oito milhões de franceses mortos, a maior cifra entre as potências beligerantes, vidas perdidas mais pela violência do que por doenças no front188. Definitivamente, este é um aspecto que não pode ser deixado de lado. Marc Bloch, simultaneamente agente e observador da bestialidade humana naqueles quatro anos, é apenas um dos inúmeros casos que devem ser trabalhados por nós189 para que sejamos

capazes de reparar esse meio-silêncio. Deixemo-nos levar pelas correntes, que entre 1914 e 1918 foram tingidas pelo sangue de milhões.

186 Cf. Marc Bloch. Op. cit., 2001, p. 54.

187 Stéphane Audoin-Touzeau, Anette Becker. 14-18, retrouver la guerre. Paris: Gallimard, 2014. Ver

também Nicolas Beaupré. Op. cit., 2006.

188 Stéphane Audoin-Rouzeau. “L’enfer, c’est la boue!”. In : 14-18 : mourir pour la patrie (l’Histoire, nº

107, janvier 1998). Paris: Points, 2007.

189 Sobre a relação entre o singular e o coletivo, ver Carlo Ginzburg. “Micro-história: duas ou três coisas

que sei a respeito”. In: _____. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Cia das Letras, 2007.

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