• Nenhum resultado encontrado

A boa-fé objetiva: brevíssimo histórico no Direito Brasileiro

OS PRINCÍPIOS DA CONFIANÇA E DA BOA-FÉ OBJETIVA NA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE

2.5 A boa-fé objetiva: brevíssimo histórico no Direito Brasileiro

Como já destacado acima, é importante distinguir-se a boa-fé crença da boa- fé objetiva, que é regra de conduta e modelo de comportamento social134 externos ao sujeito e que determinam a forma de agir de um indivíduo, conforme standards de honestidade socialmente reconhecidos.

Este princípio, antes mesmo de figurar no Código Civil alemão (que data de 1900), já havia sido objeto de desenvolvimento, no que tange aos chamados direitos anexos, na figura da culpa in contrahendo, teoria desenvolvida por Von Jhering em meados do século XIX (1861), como anteriormente noticiado.

A boa-fé objetiva, como regra que é de conduta nas relações intersubjetivas, determina que os contratantes tenham seu comportamento baseado na lealdade e que seus interesses sejam reciprocamente respeitados, já que visam um objetivo comum, qual seja, o adimplemento da obrigação. No caso do presente trabalho, o objetivo comum é a saúde do paciente, seja sua manutenção, em ação preventiva, seja sua recuperação curativa, seja ainda a manutenção da vida do paciente em caso de impossibilidade de cura em face de doença de natureza grave.

A regra da boa-fé objetiva tem sua aplicação em todo o sistema jurídico, e não está adstrita apenas às relações contratuais, na medida em que estabelece um padrão de conduta para todas as relações intersubjetivas, independentemente de apresentarem elas hipossuficiência de alguma das partes (como é o caso, aliás, do paciente em relação ao médico, no que diz respeito à questão técnica) ou desequilíbrio entre os pólos da relação (in casu, o detentor do conhecimento é o médico, o que cria uma relação desequilibrada com seu paciente, sempre sujeita à modulação casuística).

134 GOMES, Orlando, Contratos, atualizado por Antonio Junqueira de Azevedo e Francisco Paulo de

82 O instituto da boa-fé objetiva foi especialmente difundido no mundo jurídico a partir de sua inserção no BGB (Código Civil alemão), em seu § 242, apesar de já haver menção à boa-fé no Direito Romano, enquanto paradigma de conduta para o patrício, o paterfamilias.135

Importante ressaltar, porém, que a boa-fé romana guardava relação com a ideia subjetiva do paterfamilias em relação ao que havia sido pactuado, ao passo que no Direito alemão está ela ligada à lealdade (Treu und Glauben). Menezes Cordeiro defende, assim, que a Treu und Glauben deve compreendida à luz das tradições dos juramentos de honra de cavalheiros medievais, e que esta difere por completo da boa-fé possessória que, em idioma alemão, está contida na expressão guter Glauben.136

A imagem do cavalheiro medieval remete à ideia de regra de conduta social que, ao jurar por honra, faz surgir a confiança da coletividade, como reação à sua atuação cavalheiresca. Por tratar-se da confiança depositada em certos comportamentos, o agir honrado também obriga o outro, ficando assim patente seu reflexo na questão obrigacional. No Direito pátrio, a boa-fé foi primeiramente mencionada no artigo 131, inciso I, do Código Comercial brasileiro (lei 556/1850)137, tendo sido interpretada pelos Tribunais como sendo norma de natureza subjetiva, sendo que foi pouco aplicada ao longo de sua vigência.

A Constituição Federal de 1988, como se sabe, promoveu enorme giro paradigmático, deixando de centrar-se na proteção do patrimônio para privilegiar a tutela da pessoa, sua existência e dignidade, princípio apontado no Direito alemão como “princípio do livre desenvolvimento da personalidade”. De fato, a Carta Política de 1988138

135 MARTINS-COSTA, Judith, A boa-fé ... cit., São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p.111. 136 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e, Da boa-fé ... cit., p.170.

137 Artigo 131, I: “A inteligência simples e adequada, que for mais conforme à boa-fé, e ao verdadeiro

espírito e natureza do contrato, deverá sempre prevalecer à rigorosa e restrita significação das palavras”.

83 tem forte embasamento na solidariedade139, e determina que as relações se travem com base na probidade e eticidade, inspiração humanista que contrasta com o forte viés individualista presente, por exemplo, no Código Civil de 1916, que bem refletia o pensamento da época em que veio a lume.

No contexto da nova ordem constitucional, perdem importância as concepções de direitos subjetivos enquanto realização de seus exclusivos interesses, de forma egoística, sem levar em conta a alteridade e os interesses da comunidade, como bem aponta Maria Celina Bodin de Moraes.140

Ainda na lição da mesma jurista, a ordem pública, a moral e os bons costumes deixaram de ser os únicos princípios fundantes do ordenamento jurídico, ou pelo menos tiveram seu desenho alterado. Exemplifica com o conceito de ‘ordem publica’, que passa a tutelar a dignidade humana, ao invés de meramente impor limites ao livre atuar do indivíduo. Assim, os direitos subjetivos receberão tutela do ordenamento jurídico quando, além de estarem em conformidade com a vontade do titular, estiverem também de acordo com o interesse social, esse diretamente ligado à lealdade, à boa-fé e à solidariedade.

Coube, entretanto, ao Código de Defesa do Consumidor (lei 8078/1980) papel preponderante – por meio de seus artigos 4º, inciso III e 51, inciso IV – para incorporar em caráter definitivo a noção de boa-fé objetiva no sistema legal brasileiro.

A seguir, já no ano de 2002, o ordenamento jurídico brasileiro introduziu a boa-fé objetiva por meio dos artigos 113 e 422 do Código Civil. Este último, aliás, encontra seu espelho no artigo 762º do Código Civil português141, sendo que ambos tiveram seus nascedouros inspirados no § 242 do BGB, que, por seu turno, teve como fonte

139 “Embora a construção inicial da boa-fé objetiva - como um princípio geral de cooperação e lealdade

recíproca entre as partes - tenha prescindido de fundamentações axiológicas precisas, não há, hoje, dúvida de que ela representa expressão da solidariedade social no campo das relações privadas.” in SCHREIBER, Anderson, A proibição de comportamento contraditório - tutela da confiança e venire contra factum proprium. 2ª edição, Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p.84.

140 MORAES, Maria Celina Bodin de, Danos à ... cit., p.105.

141 “No cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes

84 o Código Civil francês de 1804, como informa Philippe Le Tourneau, fazendo menção ao artigo 1134 de seu Código Civil (Code Napoléon) 142.

Portanto, é inegável que a boa-fé objetiva deve, sempre, pautar a conduta do médico ao expor os prognósticos, alternativas de tratamento e seus riscos em relação à doença apresentada por seu paciente (conforme será melhor tratado adiante). Por outro lado, cabe também ao paciente expor com clareza todos os sintomas que consegue identificar, assim como seu histórico de doenças, franqueando ao médico anteriores exames que hajam sido realizados. Essa informação – prestada pelo paciente – também perfaz uma parcela de seu dever de cumprimento da boa-fé objetiva nessa relação mantida com o profissional.