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OS PRINCÍPIOS DA CONFIANÇA E DA BOA-FÉ OBJETIVA NA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE

2.7 A boa-fé objetiva na relação médico-paciente

2.7.2 O dever de lealdade e cooperação

O agir com lealdade deve ultrapassar o agir egoístico da defesa dos interesses individuais e levar em consideração o outro (a alteridade), ademais dos interesses sociais, em consonância com os valores da dignidade da pessoa humana da ‘nova’ liberdade (contraposta à solidariedade social), e da eticidade, como antes já dito.

É o dever de lealdade, segundo Menezes Cordeiro, que impede os contraentes da obrigação de agir falseando o objetivo do negócio ou desequilibrando prestações e contraprestações por eles assumidas.166

No sentir de Fernando Noronha, ao se expandir excessivamente o dever de lealdade para deveres de atuação tanto positiva quanto negativa, como quer Menezes Cordeiro, corre-se o risco de vê-lo confundido com o próprio dever geral de conduzir-se com boa fé.

Esse dever evidentemente ilumina todas as relações que terão por base a confiança, como é claramente a relação que envolve médicos e seus pacientes. Sua aplicação estende-se também para o âmbito das relações entre empresas, tomando ali as

primeiro réu, seu preposto.” (TJ/MG, Apelação Cível nº 1.0479.02.044956-3/001, 17ª Câmara Cível, Relator Desembargador Eduardo Mariné da Cunha, julgado 09/11/2006, in www.tjmg.jus.br, acesso em 13/07/2010). Destacou-se.

“Responsabilidade civil - Ação indenizatória fundada na alegação de inadequação de atendimento médico - Procedência em parte - Danos morais fixados em R$ 35.000,00 - Inconformismo das partes - Desacolhimento - Admissibilidade do recurso da autora, a fim de buscar a majoração da condenação - Conjunto probatório que demonstra a culpa da ré, por negligência do atendimento dispensado à criança que, posteriormente, veio óbito - Antecedentes médicos não observados (má formação cerebral congênita e pneumonia), que recomendavam cuidado especial - Dever de reparação configurado - Danos morais arbitrado com ponderação, à luz das peculiaridades do caso - Sentença mantida - Recursos desprovidos.” (TJ/SP, Apelação Cível nº 994071125700, Relator Desembargador Grava Brazil, 9ª Câmara de Direito Privado, julgado em 04/08/2009, in www.tj.sp.gov.br , acesso em 13/07/2010)

94 feições de impedir a concorrência desleal ou mesmo do venire contra factum proprium, já antes analisado.

Nesse sentido, um médico que deixa de esclarecer a seu paciente todas as alternativas possíveis para o tratamento da moléstia que o acomete, favorecendo um dos possíveis tratamentos, por exemplo, por interesse próprio, certamente está faltando com a lealdade que dele se espera.

Ilustra essa questão o artigo do jornal “Folha de São Paulo”, de 30 de junho de 2010, publicado à página C9, a respeito das relações entre laboratórios farmacêuticos e médicos, analisando os casos em que estas podem tornar-se espúrias. Um profissional que indica medicação produzida por determinado laboratório, sabendo haver outras opções mais baratas e igualmente eficazes, guiado por eventuais ‘vantagens’ que aquele produtor lhe oferece, também rompe com a lealdade que dele se espera.

Fato é que as fronteiras entre os deveres anexos nem sempre são estanques e claramente identificáveis, sendo que a falta de lealdade nos exemplos antes mencionados poderia também ser interpretada como falha do dever de informação, segundo o entendimento assinalado por Menezes Cordeiro, em suas próprias palavras “um ponderar integrado dos diversos aspectos da boa fé”.167

Todos os deveres anexos vão encontrar seu alicerce no valor fundamental da pessoa humana nas relações extrapatrimoniais de que venha a participar. Este valor deve ser especialmente tutelado, uma vez que, ao lado da soberania e cidadania é princípio fundamental estabelecido constitucionalmente, nas palavras de Maria Celina Bodin de Moraes.168

Do dever de lealdade nasce dever específico que vai informar de maneira especial a relação médico-paciente: o do sigilo relativo às informações obtidas em função da relação entre ambos desenvolvida. Este dever é conditio sine qua non para o bom

167 MENEZES CORDEIRO, António Manuel da Rocha e. Da boa-fé ... cit., p.583. 168 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à ... cit, p.120.

95 desenvolvimento da relação médico-paciente, dada a natureza sensível das informações trocadas entre os contraentes.

O dever de sigilo169, que se desenvolve forte na fidúcia que o agir de cada parte deve despertar e exercer sobre a outra, visa proteger as informações trocadas em função desta especial relação. Caso seja ele rompido por qualquer das partes, estar-se-á causando um dano ao valor da personalidade, assim entendido como sendo mais que um mero direito, mas fundamento para uma série de situações existenciais que exigem tutela, como bem preleciona Maria Celina Bodin de Moraes.170 E isto porque as informações trocadas num consultório médico ou hospital são as mais íntimas de cada pessoa, e têm reflexos em muitas, senão todas, as esferas de relações de cada indivíduo: sua família, seu trabalho e suas relações sociais.

Exemplos são os casos da adolescente que tem vida sexual ativa, mas não deseja que seus pais tenham disso conhecimento, ou o do funcionário de empresa que é portador do vírus HIV, mas não quer que tal condição chegue aos ouvidos de seu empregador e colegas, por medo de atitudes preconceituosas ou até de demissão.171

Há legislação internacional que versa sobre essa especial proteção. Apenas a título exemplificativo cite-se a Convenção sobre os direitos do homem e a Biomedicina172,

169

ADMINISTRATIVO - SIGILO PROFISSIONAL. 1. É dever do profissional preservar a intimidade do seu cliente, silenciando quanto a informações que lhe chegaram por força da profissão. 2. O sigilo profissional sofre exceções, como as previstas para o profissional médico, no Código de Ética Médica (art. 102). 3. Hipótese dos autos em que o pedido da Justiça não enseja quebra de sigilo profissional, porque pedido o prontuário para saber da internação de um paciente e do período. 4. Recurso ordinário improvido.” (STJ, RMS 14134/CE, Relatora Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 25/06/2002, in www.stj.jus.br, acesso em 13/07/2010)

170 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à ... cit., p.121 “A tutela da pessoa humana não pode ser

fracionada em isoladas hipóteses, microssistemas, em autônomas fattispecie não-intercomunicáveis entre si, mas deve ser apresentada como um problema unitário, dado o seu fundamento, representado pela unidade do

valor da pessoa. Esse fundamento não pode ser dividido em tantos interesses, em tantos bens, como é feito nas teorias atomistas.”

171 Código de Ética Médica, art. 76 – “Revelar informações confidenciais obtidas quando do exame médico

de trabalhadores, inclusive por exigência dos dirigentes de empresa ou de instituições, salvo se o silêncio puser em risco a saúde dos empregados ou da comunidade.”

172 Convenção para a proteção dos direitos do homem e da dignidade do ser humano face às aplicações da

biologia e da medicina: Convenção sobre os direitos do homem e a biomedicina (aberta à assinaturas em 4 de abril de 1997).

96 que trata da matéria em seu Artigo 10º, intitulado ‘vida privada e direito à informação’. A convenção determina ali que a pessoa tenha direito ao respeito de sua vida privada, especialmente no que diz respeito às informações relacionadas com sua saúde.173

Também, por essa mesma trilha vai o Protocolo Adicional à Convenção dos Direitos do Homem e a Biomedicina sobre o Transplante de Órgãos e Tecidos de Origem Humana, que fazz clara referência à quebra de sigilo dos dados pessoais, afirmando que essa se justifica apenas para possibilitar seja o órgão transplantado com sucesso (razões técnicas), assim como para permitir que o transplante seja posteriormente rastreado.174

A exceção ao dever de sigilo dá-se quando a não revelação de informações obtidas no âmbito da relação médico-paciente implique risco à saúde de outras pessoas do ambiente de trabalho ou da comunidade do paciente. Assim ocorre, por exemplo, quando o paciente está padecendo de enfermidade altamente contagiosa, como são as rotaviroses, doenças meningocócicas e pneumocócicas. A autonomia do indivíduo não pode ser entendida como absoluta, seu limite encontra-se no bem comum e na proteção da coletividade (solidarismo).

A violação do dever de sigilo configura inclusive tipo penal, devidamente tutelado no Código Penal Brasileiro (Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940).175

173 CAPÍTULO III - VIDA PRIVADA E DIREITO À INFORMAÇÃO

“Artigo 10º (vida privada e direito à informação)

1 - Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada no que toca a informações relacionadas com a sua saúde.

2- Qualquer pessoa tem direito de conhecer toda a informação recolhida sobre a sua saúde. Todavia, a vontade expressa por uma pessoa de não ser informada deve ser respeitada.

3 - A título excepcional , a lei pode prever, no interesse do paciente, restrições ao exercício dos direitos mencionados no nº 2.”

174 Chapter VII – Confidentiality

“Article 23 – Confidentiality

1 - All personal data relating to the person from whom organs or tissues have been removed and those relating to the recipient shall be considered to be confidential. Such data may only be collected, processed and communicated according to the rules relating to professional confidentiality and personal data protection. 2 - The provisions of paragraph 1 shall be interpreted without prejudice to the provisions making possible, subject to appropriate safeguards, the collection, processing and communication of the necessary information about the person from whom organs or tissues have been removed or the recipient(s) of organs and tissues in so far as this is required for medical purposes, including traceability, as provided for in Article 3 of this Protocol.”

175 Seção IV – DOS CRIMES CONTRA A INVIOLABILIDADE DOS SEGREDOS

97 Cabe, aqui, a interpretação do que seria a ‘justa causa’ a que se refere o artigo 154 daquela norma. Celso Delmanto aponta como justa causa as excludentes previstas no artigo 23 do Código Penal brasileiro e, ainda, a comunicação de doenças de notificação compulsória (proteção do interesse público que, nesse caso, suplanta o dever de sigilo). 176 Ainda de se acrescer duas outras hipóteses justificadoras da violação do segredo profissional: defesa de direito próprio e denunciação de crime.

O Código de Ética Médica brasileiro traz todo um capítulo dedicado à matéria do sigilo, o de número IX. Inicia-se tal seção pela proibição de que o médico revele fatos de que tenha tido conhecimento em razão de seu exercício profissional, “salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, por parte do paciente”.

Cumpre analisar, ainda que brevemente, cada uma dessas exceções, começando pela última delas. Por vezes, o próprio paciente tem interesse em que certas informações sensíveis presentes em sua ficha clínica ou prontuário sejam reveladas, como é o caso em que ele necessita fazer uso dos dados para poder receber valor relativo a contrato de seguro, ou então quanto está discutindo sua aposentadoria com base em doença.

O fato de ter ingressado com demanda judicial implica ter ele aberto mão de seu sigilo, havendo assim consentimento tácito para a divulgação de informações? Parece ser negativa a resposta: a forma escrita para a autorização do uso dos dados é necessária, ao menos para garantir que o profissional não veja aberto contra si processo ético profissional.

O dever de sigilo deve estender-se para além da morte do paciente, porquanto seus direitos de personalidade, relativos à honra, sobrevivem ao fim de sua

“Revelar alguém, sem justa causa, segredo, de que tem ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão, e cuja revelação possa produzir dano a outrem:

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, ou multa. Parágrafo Único – Somente se procede mediante representação.”

98 vida177. De acordo com a visão de Alfredo Domingues Barbosa Migliore, também o direito à intimidade sobrevive à morte do indivíduo.178

Segundo o entendimento esposado pelo Conselho Federal de Medicina, “o prontuário médico de paciente falecido não deve ser liberado diretamente aos parentes do de cujus, sucessores ou não.” Esse órgão baseia sua determinação na ideia de que “o direito ao sigilo, garantido por lei ao paciente vivo, tem efeitos projetados para além da morte. A liberação do prontuário só deve ocorrer ante decisão judicial ou requisição do CFM ou de CRM”.179

O Código de Ética Médica estatui que o médico, ao ser convocado a testemunhar acerca de dados sobre os quais deva manter sigilo, deve comparecer em juízo e declarar seu impedimento. Embora exista controvérsia a respeito de dever a determinação do Judiciário ser considerada como “dever legal” ou não, parece ser negativa a resposta, pois a previsão deve constar expressamente de lei ou norma infra-legal.

Aliás, o próprio Código Civil, em seu artigo 229, dispõe que ninguém pode ser obrigado a depor sobre fato a cujo respeito deva guardar sigilo por razões profissionais, sendo que o Código de Processo Penal contém disposição nesse mesmo sentido, ao estatuir em seu artigo 207 que “São proibidas de depor as pessoas que, em razão de função, ministério, ofício ou profissão, devam guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte interessada, quiserem dar seu depoimento”.

O código deontológico médico argentino, de 2001, também determina que o segredo profissional é uma obrigação180 e, sua norma antecessora (dos anos 50) advertia que revelá-lo sem justo motivo, causando, mesmo que potencialmente, danos a terceiros configuraria delito penal. Acrescia ainda que bastava a confidência a uma única pessoa

177 BITTAR, Carlos Alberto. Os direitos da personalidade (revista, atualizada e ampliada por Eduardo C.

Bianca Bittar). 7ª edição, São Paulo: Forense Universitária, 2007, p.12.

178 MIGLIORE, Alfredo Domingues Barbosa. Direito além da vida. São Paulo: LTr, 2009, p.275. 179 Processo-Consulta CFM Nº 4.384/07 – Parecer CFM Nº 6/10

180 Artigo 78: “El paciente tiene derecho a que se guarde secreto de su estado de salud en relación a terceros,

99 para que se configurasse a quebra do sigilo, não sendo necessário que a informação tivesse sido amplamente divulgada.181

Também no que tange o tema do ‘termo de consentimento livre e esclarecido’, que será objeto de fundamental discussão em capítulo posterior (capítulo V infra), cabe neste momento antecipar aspectos ligados ao sigilo das informações ali contidas. Além de manifestar a autorização do paciente para que se realize determinado procedimento em seu corpo, em última instância, o documento será utilizado pelo médico, para eventual necessidade de produção de prova em processo judicial quanto (i) à concordância do paciente com os atos praticados e (ii) de seu conhecimento quanto aos riscos ali ínsitos.

Nessa hipótese, o profissional deverá ter o cuidado de requerer ao juiz que os dados (por serem sensíveis) sejam preservados, sendo o acesso de terceiros a eles vedado, por exemplo, com a determinação de que seja o documento colocado em envelope aos cuidados do cartório judicial.

Com efeito, a manutenção do sigilo está diretamente relacionada à dignidade da pessoa do paciente, sob a rubrica do direito à intimidade, integrando, portanto, o agir leal do médico. O dever de guardar sigilo estende-se por todas as atividades relacionadas à manipulação das informações: sua obtenção, utilização, arquivamento, custódia e transmissão.

No mesmo sentido do dever de sigilo, o dever de cooperação encontra-se intimamente associado ao de lealdade, sendo certo que também pode ser visto sob o enfoque do dever de informar, encontrando-se na intersecção entre ambos. Assim é que o paciente deve colaborar com o profissional para o bom desenvolvimento de seu tratamento, sempre com vistas à sua cura ou à preservação de sua saúde.

181 Artigo 67: “El secreto profesional es una obligación. Revelarlo sin justa causa, causando o pudiendo

causar daño a terceros, es un delito previsto por el art. 156 del Código Penal. No es necesario publicar el hecho para que exista revelación, basta la confidencia a una persona aislada.”

100 Desta maneira, o médico que, por omissão, não atuar juntamente com seu paciente deixando, por exemplo, de lhe fornecer informações imprescindíveis para o sucesso do tratamento ou intervenção, descumpre a uma só vez seu dever de lealdade, informação e cooperação. Isto porque – repise-se – os deveres anexos não possuem uma fronteira imutável e impermeável entre si.

Por fim, resta ainda a ser analisado, dentre os deveres anexos ao princípio da boa-fé, o dever de informar. Contudo, dada a sua importância no contexto deste trabalho, o dever de informar merecerá capítulo próprio, no qual serão analisados os seus desdobramentos e características.

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CAPÍTULO III

A RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE