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OS PRINCÍPIOS DA CONFIANÇA E DA BOA-FÉ OBJETIVA NA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE

2.7 A boa-fé objetiva na relação médico-paciente

2.7.1 O dever de cuidado ou segurança

O primeiro dos deveres anexos é o de cuidado, também nomeado de segurança ou proteção. Relativamente aos deveres dos médicos, este dever pode também ser compreendido em seu sentido negativo, sendo-lhes defeso negar assistência a doente e abandonar seu tratamento, a não ser quando seja devidamente substituído por colega, desde que este não tenha nível de experiência e conhecimentos inferiores aos daquele a quem toma o lugar.

Segundo lição de Menezes de Cordeiro, os deveres anexos de proteção tem por objetivo mais do que simplesmente a fiel execução da obrigação pelas partes; sua função seria a de impedir que, quando do efetivo cumprimento das prestações, as partes venham a se infligir danos mútuos156, funcionando como uma rede de proteção que

extrapola os limites contratuais, e que também ilumina as fases pré e pós contratuais. Desse modo, v.g., o cirurgião que viaja no pós operatório, e deixa o seu paciente ainda em recuperação, pode ter-se valido da técnica mais moderna, com perfeição,

90 sem ter incorrido em qualquer das modalidades da culpa no ato operatório, e, inobstante tenha a cirurgia transcorrido sem qualquer intercorrência, descumpre o médico, na hipótese, o seu dever de cuidado para com seu paciente.

Por outro lado, apenas para citar situações simétricas e complementares, também o paciente que se submete à uma cirurgia e deixa de observar os cuidados que lhes foram repassados para a fase pós-operatória, descumpre seu dever de cuidado para consigo mesmo (que é reflexo), ficando sujeito, por exemplo, ao não fazer o correto uso de antibióticoterapia prescrita, a ver-se vítima de infecção, que pode não somente comprometer seu organismo, como também o resultado obtido cirurgicamente.157

Vale destacar, porém, que o dever de cuidado também está ligado – obviamente – ao agir sem negligência: o cirurgião, que, após realizar apendicectomia, esquece na cavidade abdominal uma gaze, será responsabilizado por falta do dever de cuidado (res ipsa loquitur), por seu agir negligente. Ou seja, nesse tipo de situação, o próprio dano corresponde à negligência, que não precisa ser demonstrada.158

157 “ADMINISTRATIVO – RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO – PRETENSÃO DE

INDENIZAÇÃO CONTRA A FAZENDA NACIONAL – ERRO MÉDICO – REEXAME DE PROVAS – PROCEDIMENTO ESTÉTICO – RESPONSABILIDADE DO MÉDICO PELO RESULTADO – NEGLIGÊNCIA DO PACIENTE.

1. A responsabilidade do agravado em indenizar apenas existiria se fosse reconhecido, pelas instâncias responsáveis pela análise das circunstâncias fáticas da causa, a existência de nexo causal, o que não ocorreu. O Tribunal de origem reconheceu claramente a inexistência de nexo causal entre a cirurgia realizada e as seqüelas da embargante.

2. Quanto ao "caráter de contrato de resultado" da cirurgia estética realizada pela embargante, verifica-se que tal afirmativa em nada influencia no fato reconhecido pelo Tribunal de origem de que a necrose ocorreu em razão de que a autora não teria retornado ao hospital na data marcada para a consulta, nem procurou o serviço médico tão logo apresentou necrose no lóbulo da orelha direita.

3. Assim, ainda que se pudesse considerar que o médico teria obrigação em apresentar o resultado estético pretendido, a paciente teria que se responsabilizar pelos cuidados médicos prescritos, o que não ocorreu, como verificado no acórdão recorrido. Rever tal afirmação também demandaria reexame do material fático-probatório dos autos, o que encontra óbice na Súmula 7 do STJ.

4. Quanto à inversão do ônus da prova, esta Corte vem entendendo que "não é automática, tornando-se, entretanto, possível num contexto da facilitação da defesa dos direitos do consumidor, ficando subordinada ao 'critério do juiz, quando for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências." (STJ, AgRg nos EDcl no REsp 994978/SP, Relator Ministro Humberto Martins, Segunda Turma, julgado em 05/02/2009, in www.stj.jus.br, acesso em 13/07/2010) (grifou-se).

158

“Erro médico - O esquecimento de compressa cirúrgica na região intra- uterina de parturiente configura negligência da equipe cirúrgica nos termos do art. 14, da Lei 8078/90 - Dever de indenizar os danos morais provocados pela desídia - Valor fixado em R$ 41.500,00, consentâneo com o que se espera da responsabilidade civil e artigo 944 do CC - Juros devidos desde a citação e correção monetária incidente a partir da decisão condenatória - Não provimento ao recurso da autora e provimento, em parte, ao recurso da ré.” (TJ/SP, Apelação Cível nº 994080595206, Relator Desembargador Enio Zuliani, 4ª Câmara de Direito Privado, julgado em 13/08/2009, in www.tj.sp.gov.br, acesso em 13/07/2010) Destacou o Relator em seu

91 O próprio Código de Ética Médica brasileiro159, que passou por significativa revisão e tem sua atual versão em vigor desde 13 de abril de 2010, traz em seu bojo várias regras que apontam para o dever de cuidado, tais como o princípio ali contido de que em benefício da saúde do paciente deve o médico deve atuar com o “máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional”160, bem como a regra do artigo 1º do Capitulo III,

espelho àquela do artigo 186 do Código Civil, que veda ao médico o agir eivado de culpa e que cause dano ao paciente.161

Também ali se encontram proibições quanto ao não atendimento em serviços de urgência ou emergência, de modo a expor a risco a vida de pacientes; bem como deixar de utilizar todos os meios disponíveis para o diagnóstico e tratamento, ou abandonar paciente, sem que outro profissional tenha assumido o caso.162 Dessa maneira, o

voto: “A pesquisa sobre casos análogos permitiu conhecer que não são somente os brasileiros que padecem

desse inexplicável erro profissional. O Advogado português DIAMANTINO MARQUES LOPES enumerou, entre os casos práticos que mencionou [Responsabilidade civil dos médicos, obra coletiva da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Coimbra editora, 2005, p. 285], esquecimento de gaze na cavidade abdominal de paciente que passou por extirpação da trompa de falópio. RICARDO LUIZ LORENZETTI coletou diversos julgados de responsabilidade por "olvido cirúrgico", concluindo que a jurisprudência argentina considera que esquecimento de material caracteriza atividade negligente [Responsabilidad civil de los médicos, Rubinzal-Culzone, Buenos Aires, 1997, tomo II, p. 297]”.

159 Resolução CFM nº 1931, de 17/09/2009.

160 Código de Ética Médica, Capítulo I, Princípios Fundamentais, em seu inciso II, estabelece que “O alvo de

toda atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício do qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional”.

161 O artigo 1º do Código de Ética Médica estabelece que é vedado ao médico “Causar dano ao paciente, por

ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência”.

162 PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS

“II - O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo zelo e o melhor de sua capacidade profissional.

[...]

RESPONSABILIDADE PROFISSIONAL É vedado ao médico:

Art. 1º - Causar dano ao paciente, por ação ou omissão, caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência.

Art. 7º - Deixar de atender em setores de urgência e emergência, quando for de sua obrigação fazê-lo, expondo a risco a vida de pacientes [...]

Art. 8º - Afastar-se de suas atividades profissionais, mesmo temporariamente, sem deixar outro médico encarregado do atendimento de seus pacientes internados ou em estado grave.

[...]

RELAÇÃO COM PACIENTES E FAMILIARES É vedado ao médico:

Art. 32 - Deixar de usar todos os meios disponíveis de diagnóstico e tratamento, cientificamente reconhecidos e a seu alcance, em favor do paciente.

92 dever de segurança guarda relação com a incolumidade do paciente, que deve ser um dos objetivos primários da atividade profissional dos médicos.

A bioética, por sua feita, traz como dever de conduta para o profissional o aforismo hipocrático Primum non nocere, também conhecido como Princípio da Não- Maleficência, que impõe ao médico a obrigação de não infligir dano intencional e não arriscar-se à prática de conduta que possa resultar em mais malefício que vantagens para o paciente. O Juramento Hipocrático traz em seu bojo obrigações de Não-Maleficência e Beneficência para o facultativo:“Usarei meu poder para ajudar os doentes com o melhor de minha habilidade e julgamento; abster-me-ei de causar danos ou de enganar a qualquer homem com ele.

Tom Beauchamp e James Childress, em obra clássica da Bioética163, apontam que a moralidade requer não apenas que as pessoas sejam tratadas de forma autônoma, mas que os médicos também se abstenham de lhes causar mal (primum non nocere), além de dever colaborar para o seu bem-estar.164

O microssistema do direito consumerista brasileiro prevê que o cuidado e a segurança em relação ao paciente devem perpassar toda a relação entre fornecedor de serviços, in casu, o médico e seu paciente.165 A ideia central é impedir que uma parte

Art. 36 - Abandonar paciente sob seus cuidados.”

163 BEAUCHAMP, Tom L. et CHILDRESS, James F.. Principles of biomedical ethics. 5ª edição, New

York: Oxford University Press, 2001, p.165.

164 No original: “Morality requires not only that we treat persons autonomously and refrain from harming

them, but also that we contribute to their welfare. Such beneficial actions fall under the heading of ‘beneficence’. No sharp breaks exist on the continuum from not inflicting harm to providing benefit, but principles of beneficence potentially demand more than the principle of nonmalificence because agents must take positive steps to help others, not merely refrain from harmful acts.”

165

“AÇÃO DE INDENIZAÇÃO - RELAÇÃO DE CONSUMO - CIRURGIA PLÁSTICA DE REDUÇÃO DE MAMAS DE CUNHO REPARADOR - CULPA DO MÉDICO DEMONSTRADA- HOSPITAL - SOLIDARIEDADE - DANO MORAL - OCORRÊNCIA. Versando a lide sobre responsabilidade civil do médico, por fato do serviço prestado, deve se observar o disposto no art. 14, § 4º, da Lei nº 8.078/90, o qual estabelece que ""a responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa."" Verificando-se que não foram observados, pelo médico primeiro réu, os devidos cuidados na cirurgia de redução de mamas, quanto ao retalho dos mamilos da autora e à quantidade de ressecção no local, de forma a evitar a necrose da região e conseqüente deformidade, impõe-se a sua condenação ao pagamento dos danos morais e materiais por ela sofridos. Os hospitais, nos termos do CDC, respondem, objetivamente, por fatos danosos decorrentes de sua prestação de serviços, sendo evidente que, in

93 imponha à outra riscos exagerados, o que – como é simples perceber – pode facilmente ocorrer na relação médico-paciente, caso aquele não aja com boa-fé, como, por exemplo, quando o médico utiliza medicamento com conhecidos efeitos colaterais adversos, quando poderia ter receitado outro menos danoso, capaz de surtir igual efeito.