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Princípios da confiança e da boa-fé: complementaridade, continência ou exclusão recíproca?

OS PRINCÍPIOS DA CONFIANÇA E DA BOA-FÉ OBJETIVA NA RELAÇÃO MÉDICO-PACIENTE

2.3 Princípios da confiança e da boa-fé: complementaridade, continência ou exclusão recíproca?

Como dito acima, a maior parte da doutrina entende o princípio da confiança como sendo derivado ou decorrente do principio da boa-fé objetiva, hesitando em reconhecer-lhe autonomia científica, embora reconheça a sua importância no cenário doutrinário. Para outros, ainda, o princípio da confiança é que serve de base, de fundamentação ao princípio da boa-fé objetiva.

Nada obstante, é quase unânime o entendimento de haver íntima e até mesmo indissociável ligação ontológica entre ambos, o que, em verdade, dificulta definições mais efetivas sobre a significação e o alcance de cada um deles e gerando, muitas vezes, certa perplexidade para os operadores do direito.

71 Valter Shuenquener reporta que, para parte da doutrina alemã, o princípio da proteção da confiança vem apoiado em dois pilares fundamentais, quais sejam: o princípio da segurança jurídica e o princípio da boa-fé objetiva. Esclarece ele, ainda, que o princípio da boa-fé objetiva pressupõe a existência de relações individuais, de modo que ele consistiria na “raiz individualista” do princípio da confiança.122

Partindo desse pressuposto, e prosseguindo na análise da doutrina alemã, especialmente Ossenbühl e Peter Haas, Shuenquener traça algumas diferenças entre o princípio da boa-fé e o da confiança, como, por exemplo, a de ser aquele aplicável somente nas hipóteses em que haja a existência de uma relação jurídica concreta, sendo que o da confiança, por seu turno, teria cabimento tanto nas hipóteses de relações jurídicas concretas como nas hipóteses de relações jurídicas abstratas.

Para os juristas que perfilham deste entendimento, essa diferença fundamental entre ambos os princípios implicaria a conclusão de que seria impossível derivar o princípio da confiança do da boa-fé, sendo mais acertada, para eles, a conclusão de que o princípio da boa-fé é que deriva do princípio da confiança, exatamente pelo fato de ter, este último, um campo de incidência mais alargado.

Outras diferenças substanciais entre os dois princípios em tela são, ainda, apontadas por Shuenquener, a reforçar a impossibilidade de fundamentação do princípio da boa-fé no da confiança. Diz-se, por exemplo, que o princípio da confiança somente poderia ser invocado em favor do particular que se relaciona com o Estado, ao passo que o princípio da boa-fé poderia ser invocado tanto pelo Estado quanto pelos particulares.

Como já referido acima, esses entendimentos integram uma visão “constitucionalista” do princípio da confiança, e não uma visão “civilista”, como convém a este trabalho. Servem, contudo, ao propósito de demonstrar a imprecisão de conceitos e até mesmo uma certa confusão terminológica que ainda impera sobre o tema.

Partindo-se para uma visão mais “civilista” da matéria, cumpre abordar, ainda que de modo sucinto, a doutrina portuguesa, que muito tem se dedicado, nos últimos

72 anos, a compreender ambos esses princípios – e, mais do que isso, a relação entre eles – a partir de um enfoque mais privatista (e é preciso dizer, contudo, que fez isso partindo das premissas que já haviam sido alcançadas, quanto à matéria, pela doutrina alemã).

Para Antonio Manoel da Rocha e Menezes Cordeiro, o princípio da confiança consistiria em verdadeira ponte entre a boa-fé subjetiva (protegida por meio de disposições explícitas e específicas, normalmente relacionadas às questões possessórias) e boa-fé objetiva (protegida de forma genérica e implícita a partir de um padrão geral de conduta que deve pautar as relações humanas).123

Nesse sentido, entendem os juristas portugueses acima referidos que “nas suas manifestações subjectiva e objectiva, a boa-fé está ligada à confiança: à primeira dá, desta, o momento essencial: a segunda confere-lhe a base juspositiva necessária quando, para tanto, falte uma disposição legal específica. Ambas, por fim, carreiam razões sistemáticas que se realizam na confiança e justificam, explicando a sua dignidade jurídica e cuja projecção transcende o campo civil”.124

Como se vê, muito embora assumam ser, a confiança, “um dos fatores materiais da boa-fé” – tal como o faz grande parte da doutrina brasileira – esforçam-se os autores portugueses ora comentados em construir ou pelo menos delinear pressupostos de aplicabilidade e extensão da confiança, atribuindo-lhe certa autonomia em relação à boa-fé. Nesse sentido é a afirmação de que “a aproximação entre confiança e boa-fé constitui um

123 Como explica Judith Martins-Costa, “a boa-fé subjetiva denota, portanto, primariamente, a idéia de

ignorância, de crença errônea, ainda que excusável, acerca da existência de uma situação regular, crença (e ignorância excusável) que repousam seja no próprio estado subjetivo da ignorância (as hipóteses do casamento putativo, da aquisição de propriedade alheia mediante a usucapião), seja numa errônea aparência de certo ato (mandato aparente, herdeiro aparente, etc.) [...] Diversamente, ao conceito de boa-fé objetiva estão subjacentes as idéias e ideais que animaram a boa-fé germânica: a boa-fé como regra de conduta fundada na honestidade, na retidão, na lealdade e, principalmente, na consideração para com os interesses do

“alter”, visto como um membro do conjunto social que é juridicamente tutelado. Aí se insere a consideração para com as expectativas legitimamente geradas, pela própria conduta, com os demais membros da comunidade, especialmente no outro pólo da relação obrigacional ”. (Boa-fé ... cit., p.411-412). A boa-fé subjetiva é também chamada de boa-fé crença, a guter Glauben do Direito alemão. Nela, importa a percepção (interna, psicológica) do sujeito que ignora o caráter ilícito de suas condutas, e, consequentemente, tem uma crença errônea, devendo-se aqui considerar suas intenções.

124 Nessa mesma direção, afirmam ainda que “A consagração dos dispositivos gerais, implícitos no dever de

actuar de boa fé e no exercício inadmissível de posições jurídicas, capazes de, nalgumas de suas facetas mais significativas, proteger a confiança, demonstram, nesta, um vetor genérico. Mas dão, também, o tom da generalização possível: a confiança, fora das normas particulares a tanto dirigidas, é protegida quando, da sua preterição, resulte atentado ao dever de actuar de boa fé ou se concretize um ‘abuso de direito’ ”. MENEZES CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e. Da Boa-fé ... cit., p.1247-1248.

73 passo da Ciência Jurídica que não mais se pode perder. Mas ele só se torna produtivo quando, à confiança, se empreste um alcance material que ela, por seu turno, comunique à boa-fé”.125

Carneiro da Frada, entretanto, embora reconheça forte orientação doutrinária no sentido de “amalgamar a proteção das expectativas com violação de deveres, nomeadamente decorrentes da boa-fé”126, trabalha bem mais incisivamente no sentido de construir o que chama de uma “tutela da confiança dogmaticamente autônoma”. Para tanto, busca construir um sistema de “responsabilidade pela confiança”, depurando-a, na medida do possível, daquela que emerge da violação dos deveres de agir integrantes da boa-fé objetiva.

O civilista português admite que há, realmente – ou deve haver – uma proteção das expectativas de cumprimento de determinados deveres de comportamento a que os sujeitos devem se ater no seu relacionamento. Mas isso, diz ele, não seria propriamente uma responsabilidade pela confiança, e sim uma “inobservância comum de normas de comportamento, geradora, consoante os casos, de uma responsabilidade contratual ou delitual (sem que a confiança desempenhe então qualquer papel efectivo na justificação da obrigação de ressarcir os prejuízos)”.127

125 Por isso, afirmam os autores que “Em regra, o Direito português exprime a tutela da confiança através da

manutenção das vantagens que assistiriam ao confiante, caso a sua posição fosse real. Nesse sentido depõe a maioria das disposições especificas referentes à boa-fé subjectiva, na parte em que esta se reporta à confiança: (...). No campo da confiança, tutelada pela boa-fé objectiva, observa-se o mesmo princípio. (...). Quando, porém, a confiança incorporada em situações mais vastas, se manifeste no momento de sua violação, em conjunturas próprias do dever de actuar de boa-fé, a saída a observar será a indemnização, nos termos gerais”. MENEZES CORDEIRO, Antonio Manuel da Rocha e. Da Boa-fé ... cit., p. 1249-.250.

126 “Importa com efeito sublinhar, por um lado, que a responsabilidade pela confiança, mesmo onde é aceite

como realidade dogmática autônoma, se encontra enfeudada, segundo uma forte orientação doutrinária, aos deveres decorrentes da boa-fé: a ampla simbiose por muitos sugerida entre a tutela da confiança e a regra da conduta de boa-fé resulta da preocupação em realizar a primeira através desta e dos deveres em que ela se concretiza”. CARNEIRO DA FRADA, Manuel Antônio de Castro Portugal. Teoria da Confiança e

Responsabilidade Civil. Coimbra: Almedina, 2004, p.382.

127 CARNEIRO DA FRADA, Manuel Antônio de Castro Portugal. Teoria da ... cit., p.80. E “Por outras

palavras: a tutela das expectativas mediante a regra da boa fé é apenas reflexa. Releva somente no quadro das exigências de probidade e equilíbrio de conduta que aquela veicula. São estas que conferem o fundamento da protecção concedida. E, como é evidente, a esperança que o sujeito deposite na sua observância não tem qualquer relevo dogmático autônomo como confiança no simples acatamento de normas que é.” CARNEIRO DA FRADA, Manuel Antônio de Castro Portugal. Teoria da ... cit., p.454.

74 Por isso entende que deve haver autonomização entre responsabilidade pela confiança e regra da conduta segundo a boa-fé, pois, para ele, o sistema de proteção da confiança “propriamente dito” consiste precisamente na prevenção de expectativas infundadas ou no ato de evitar que elas perdurem, configurando assim uma “responsabilidade pela frustração de uma intencionada coordenação do comportamento de alguém por outrem”.128 (salientou-se)

Diante dessas premissas, conclui Carneiro da Frada que “rigorosamente falando, responsabilidade pela confiança e regra da conduta de boa fé não se confundem e se excluem até mutuamente”, admitindo, entretanto, que esse seu pensamento “colide naturalmente com concepções e discursos muito difundidos que misturam essas realidades e não destrinçam a tutela da confiança da violação de normas de correção, razoabilidade e lealdade”129.

De qualquer forma, não se pode perder de vista que, mesmo para ele, que insiste em destrinçar tais situações, existe sim – ou deve existir – um sistema de proteção das expectativas legitimamente geradas no âmbito das relações sociais. Para ele, portanto, o que a maior parte da doutrina entende como sendo proteção da confiança configuraria, em verdade, uma responsabilidade pela frustração de expectativas, decorrente de um desatendimento ao padrão de boa-fé, mas, nem por isso, carente de proteção jurídica.

Como se vê, por qualquer ângulo que se analise a questão, o fato é que há sim uma indissociável ligação entre ambos os princípios, mesmo para aqueles que admitem

128 CARNEIRO DA FRADA, Manuel Antônio de Castro Portugal. Teoria da ... cit., p.903. Nessa mesma

direção, aduz ainda que: “Existe uma responsabilidade pela confiança quando a criação-defraudação da confiança constitua o vero fundamento da obrigação de indemnizar. Na sua extrema singeleza, esta percepção permite traçar com rigor o âmbito possível e legítimo da responsabilidade pela confiança. (...) Na linha recta da sua lógica própria, a responsabilidade pela confiança apresenta-se por isso como forma de protecção da confiança que é realmente experimentada pelo sujeito”. E idem, p.902.

129 O autor português aponta, ainda, consequências concretas dessa diferenciação, como, por exemplo, o fato

de a ausência de prova quanto à falta de confiança apenas afetaria a tutela da confiança, mas não a proteção que a regra de conduta de boa-fé confere. Aponta ainda a diferença consistente no fato de que uma reserva contra a formação de uma expectativa da contraparte é perfeitamente possível e em nada contraria os ditames da boa fé, ao passo que esse mesmo sujeito já não poderia eximir-se unilateralmente de comportar-se segundo as exigências de correção, lisura e razoabilidade. Em outras palavras, não parece ser possível que as partes renunciem à conduta de boa fé, ao passo que a proteção da confiança – tal como concebida pelo jurista português – poderia ser, em alguns casos, dispensada pelas partes. CARNEIRO DA FRADA, Manuel Antônio de Castro Portugal. Teoria da ... cit., p.464-465.

75 uma autonomia da confiança em relação à boa-fé, como é o caso de Carneiro da Frada (que reconhece, de todo modo, a necessidade de proteção de legítimas expectativas).

Perfilha-se, aqui, do entendimento da maior parte da doutrina brasileira no sentido de que há intrínseca relação entre ambos, sendo bastante plausível também o entendimento segundo o qual o princípio da confiança deriva do da boa-fé. Não há como negar, afinal, que o vetor da confiança tem forte componente ético.130

Nesse sentido, Teresa Ancona Lopez, ao analisar os limites e aplicações do abuso do direito no ordenamento pátrio, afirma, com muita percuciência que “a teoria da confiança, que tem como fundamento a boa-fé entre as partes, encontrou na cláusula geral do abuso do direito um abrigo seguro na defesa e efetivação dessa relação de confiança”.131

Também é nessa direção que aponta Cláudio Luiz Bueno de Godoy ao comentar o art. 113 do Código Civil de 2002, afirmando, sobre a boa-fé ali consagrada: “significa que o contrato deve ser interpretado de forma a preservar a confiança, a justa expectativa dos contratantes.”132

130 Segundo Karl Larenz “o princípio da confiança apresenta um componente de ética jurídica e outro

elemento que visa a segurança no tráfego jurídico. Um e outro não se podem separar. O componente de ética jurídica repercute somente na medida em que a criação da aparência jurídica tenha que ser imputada àquele em cuja desvantagem se produz a proteção daquele que confiou. Entretanto, o componente ético-jurídico encontra-se em primeiro plano no princípio da boa-fé. Tal princípio consagra que uma confiança despertada de modo imputável deve ser mantida quando efetivamente nela tenham acreditado. O suscitar da confiança será “imputável” quando aquele que a suscita sabia ou deveria saber que o outro iria confiar.” No original: “El principio de la confianza tiene un elemento componente de Ética jurídica y otro que se orienta hacia la seguridad del trafico. Uno y otro no se pueden separar. El componente de Ética jurídica resuena solo en la medida en que la creación de la apariencia tiene que ser imputable a aquel en cuya desventaja se produce la protección Del que confió. En cambio, el componente ético-jurídico está en primer plano en el principio de buena fe. Dicho principio consagra que una confianza despertada de un modo imputable debe ser mantenida cuando efectivamente se ha creído en ella. La suscitación de la confianza es ‘imputable’ cuando el que la suscita sabía o tenia de saber que el otro iba a confiar.” LARENZ, Karl. Derecho justo - fundamentos de ética

jurídica, tradução de Luiz Díez-Picazo. Madrid: Civitas, 2001, p.95-96

131 LOPEZ, Teresa Ancona. Exercício do Direito e suas limitações: abuso do direito, in Doutrinas Essenciais, responsabilidade civil: estudos em homenagem ao prof. Rui Geraldo Camargo Viana, coord,: NERY, Rosa Maria de Andrade et DONNINI, Rogério. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p.551. Ainda ponderando sobre a importância da confiança, afirma a professora que “o novo Código Civil consagrou a teoria da confiança como base das relações intersubjetivas” e que “o abuso do direito como fruto da teoria da confiança tem como finalidade a proteção das pessoas que dele possam ser vítimas”, concluindo, assim, que “a tutela da confiança também se exerce por meio do art. 187 do CC/2002”. Idem, p.551-552.

76 Não se pode deixar de reconhecer, contudo, que mesmo a situação descrita por Carneiro da Frada como sendo de “confiança pura” é também passível de proteção e configura, salvo engano, algo muito próximo da doutrina do venire contra factum proprium antes analisada. Ademais, o fato de haver intenção prévia de defraudar expectativas alheias (ou mesmo omissão proposital no que tange à prevenção da contraparte quanto à expectativas irreais) só agrava ainda mais a situação, caracterizando de forma mais incisiva o desatendimento ao padrão de correção, lisura e lealdade imposto pela boa-fé.

De qualquer modo, o que se entende, de forma geral, como sendo o princípio da confiança é a proteção das expectativas legitimamente geradas e que mereçam tutela, proteção essa alicerçada no standard de conduta, no padrão de correção e lisura, ponto em relação ao qual não há discordância doutrinária. Por isso, reconhece-se, aqui, haver certa relação de continência entre ambos, uma vez que a proteção das expectativas legítimas se dá a partir de um princípio mais amplo e abrangente – o da boa-fé objetiva.

Seja como for, exatamente por se tratarem de princípios, a sua coexistência é viável e possível, mesmo para aqueles que não reconhecem haver relação de continência ou complementaridade entre ambos. Isso porque, como já ressalvado, a colisão de princípios se resolve pelo sopesamento entre eles, de modo que sejam aplicáveis simultaneamente ao mesmo caso, ainda que em proporções distintas.133