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OS LIMITES DO DEVER DE INFORMAR

4.4 O privilégio terapêutico

O privilégio terapêutico, na lição de Octávio Luiz Motta Ferraz, corresponde a “um direito” pertencente ao médico no sentido de se permitir omitir – ou mesmo distorcer – informações do seu paciente quando tem a convicção de que a ciência de tais informações pode trazer riscos à sua saúde.248 A questão, por si só, é controvertida.

Trata-se de uma exceção ao direito/dever de informação derivada das condutas paternalistas que ainda circundam a medicina, com fundamento na chamada tese do predomínio, pela qual “em determinadas circunstâncias, avaliadas e consideradas pelo

248 FERRAZ, Octávio Luiz Motta. Responsabilidade civil da atividade médica no código de defesa do consumidor. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009, p.178.

142 próprio médico, do princípio de não causar dano [não maleficência], que em casos específicos sobrepuja e pode mesmo se opor ao princípio da autonomia do indivíduo”.249

Os autores clássicos da bioética americana, Tom L. Beauchamp e James F. Childress, vaticinam que a exceção do privilégio terapêutico à regra do consentimento informado é controversa, visto que o profissional pode legitimamente reter informações baseado em uma análise técnica-médica profunda do paciente sob o argumento de que tais informações “poderiam ser potencialmente prejudiciais para um paciente deprimido, emocionalmente exaurido ou instável” e ainda asseveram que “vários cenários prejudiciais serão possíveis e incluem a periclitação da vida, a tomada de decisões irracionais e a produção de ansiedade ou stress”.250

O atual Código de Ética Médica brasileiro, em que pese tutelar em diversos dispositivos o direito à informação e à autonomia do paciente (artigos 22, 24 e 31), estatui expressamente o uso pelo profissional do privilegio terapêutico, no artigo 34, que estabelece: “É vedado ao médico – deixar de informar ao paciente o diagnostico, prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal.

Segundo Carlos Emmanuel Jopert Ragazzo, o uso do privilégio terapêutico estará restrito às hipóteses em que o profissional pode razoavelmente prever que as informações a serem transmitidas ao paciente poderão ocasionar prejuízos à sua saúde e obstar a consecução do tratamento necessário. Esse autor adverte, todavia, que a opção desenfreada dessa verdadeira exceção ao dever de informar pode acarretar desvios que, em última instância, poderiam extirpar a autonomia do paciente.251

249 MUÑOZ, Daniel Romero et FORTES, Paulo Antonio Carvalho. O princípio da autonomia e o consentimento livre e esclarecido in Iniciação à bioética, Coord.: FERREIRA, Sergio Ibiapina et alii. Brasília: CFM, 1998, p.61.

250 Principles ... cit., p.84. Tradução livre. No original: “However, a controversial exception appears in the

therapeutic privilege, according to which a physician may legitimately withhold information, based on a sound medical judgment that divulging the information would be potentially harmful to a depressed, emotionally drained, or unstable patient. Several harmful outcomes are possible, including endangering life, causing irrational decisions, and producing anxiety or stress.”

251 RAGAZZO, Carlos Emmanuel Joppert. O dever de informar dos médicos e o consentimento informado.

143 Importa ressalvar que ao sopesar a ausência (diminuição ou suavização) da informação e os danos, o profissional deve ter em mente que os prejuízos que eventualmente impingirão ao paciente deverão ser graves, sérios, a ponto de agravar sensivelmente o seu estado de saúde (físico ou psíquico). Nesse contexto, sutis reações psicossomáticas adversas, aumento de pulsação, agitação, respiração ofegante e outras reações “leves” – do ponto de vista médico – não justificarão a opção pelo privilégio terapêutico.252

Como bem assinala João Vaz Rodrigues, o privilégio terapêutico (por ele chamado de “privilégio médico”) transcende a proteção da liberdade e da autonomia do paciente em razão de uma preferência pela tutela da saúde e da vida, quando há entre esses valores uma colisão253. No ordenamento jurídico português, há previsão específica do privilégio terapêutico no artigo 157º, in fine, do Código Penal.254

O Código deontológico em França dispõe a respeito da modulação da informação em virtude do estado de saúde do paciente, sempre em seu interesse e salvaguardando o interesse de terceiros (v.g.¸doença com potencial de contágio).255 Seu congênere italiano contempla a prestação da informação cautelosa e sugere evitar

252 HIGHTON, Elena I. et WIERZBA, Sandra M. La relación … cit., p.601.

253 RODRIGUES, João Vaz. O consentimento informado ... cit., p.281-282.

254 Artigo 157 - Dever de esclarecimento: “Para efeito do disposto no artigo anterior, o consentimento só é

eficaz quando o paciente tiver sido devidamente esclarecido sobre o diagnóstico e a índole, alcance, envergadura e possíveis consequências da intervenção ou do tratamento, salvo se isso implicar a comunicação de circunstâncias que, a serem conhecidas pelo paciente, poriam em perigo a sua vida ou seriam susceptíveis de lhe causar grave dano à saúde, física ou psíquica.”

255 Código de deontologia, Artigo 35 (artigo R.4127-35 do Código de Saúde Pública):

“Le médecin doit à la personne qu'il examine, qu'il soigne ou qu'il conseille une information loyale, claire et appropriée sur son état, les investigations et les soins qu'il lui propose. Tout au long de la maladie, il tient compte de la personnalité du patient dans ses explications et veille à leur compréhension.

Toutefois, sous réserve des dispositions de l'article L. 1111-7, dans l'intérêt du malade et pour des raisons légitimes que le praticien apprécie en conscience, un malade peut être tenu dans l'ignorance d'un diagnostic ou d'un pronostic graves, sauf dans les cas où l'affection dont il est atteint expose les tiers à un risque de contamination.

Un pronostic fatal ne doit être révélé qu'avec circonspection, mais les proches doivent en être prévenus, sauf exception ou si le malade a préalablement interdit cette révélation ou désigné les tiers auxquels elle doit être faite.” (destacou-se)

144 “terminologia traumatizante”.256 Existe na jurisprudência americana caso paradigmático relativo à presente questão (Canterbury versus Spence, Columbia, de 1972), na qual restou consignado que “só ocasionalmente os pacientes estão tão doentes ou emocionalmente perturbados, que as revelações possam obstaculizar a possibilidade de uma decisão racional”.257 Há, ainda, menção à decisão exarada pela Corte de Cassação Francesa, de

23/05/2000, que decidiu que um profissional que ocultou uma informação ao paciente na perspectiva do privilégio terapêutico, não cometeu ato ilícito.258

O presente trabalho, em todo seu conteúdo, tem como norte a autonomia do paciente como forma de tutelar o efetivo direito fundamental à liberdade e à dignidade da pessoa humana. Contudo, mesmo nessa perspectiva, há que se admitir que em certos casos a informação poderá implicar em danos à saúde de um indivíduo. Pode-se citar o caso de um paciente com câncer, já em estado de depressão, cuja doença, em razão de metástases, espalhou-se por diversos órgãos. Nesse caso, prestar essa informação ao paciente trar-lhe-á mais vantagens considerando-se que sua autonomia tenha sido respeitada ou, de outra sorte, apenas lhe agravará o estado de saúde tanto do ponto de vista físico quanto psíquico? Não há, com efeito, uma resposta absoluta. A concepção prática de um nível de autonomia total e irrestrito do paciente – inserta no atual cenário da relação médico- paciente e da saúde como um todo no Brasil – seria fictícia, quase ingênua. Entende-se, aliás, que autonomia absoluta, inexiste. De outro prisma, o denominado privilégio terapêutico não pode substituir a vontade do paciente e ser utilizado de modo

256 Artigo 33 - Informazione al cittadino: “Il medico deve fornire al paziente la più idonea informazione sulla

diagnosi, sulla prognosi, sulle prospettive e le eventuali alternative diagnostico-terapeutiche e sulle prevedibili conseguenze delle scelte operate. Il medico dovrà comunicare con il soggetto tenendo conto delle sue capacità di comprensione, al fine di promuoverne la massima partecipazione alle scelte decisionali e l’adesione alle proposte diagnostico-terapeutiche. Ogni ulteriore richiesta di informazione da parte del paziente deve essere soddisfatta. Il medico deve, altresì, soddisfare le richieste di informazione del cittadino in tema di prevenzione. Le informazioni riguardanti prognosi gravi o infauste o tali da poter procurare preoccupazione e sofferenza alla persona, devono essere fornite con prudenza, usando terminologie non traumatizzanti e senza escludere elementi di speranza. La documentata volontà della persona assistita di non essere informata o di delegare ad altro soggetto l’informazione deve essere rispettata.” (salientou-se)

257 Citado por André Gonçalo Dias Pereira. O consentimento ... cit., p.462.

258 Tratava-se de caso em que um paciente estava acometido de quadro psicótico maníaco-depressivo, cuja

evolução deveria ser objeto de análise durante vários anos. Em vista das fases de alternância e excitação típicas da moléstia em comento, o interesse do paciente justificava a limitação da informação a respeito do diagnóstico e seu processo, que deveria ser prestada de forma prudente. (in PEREIRA, André Gonçalo Dias.

145 exclusivamente discricionário, sem qualquer critério, tornando a atuação médica arbitrária e contrapondo-se a toda a evolução histórica positiva atinente à autodeterminação do paciente.

A solução, como de hábito, será casuística, e deverá ser sempre temperada por uma boa dose de bom senso, tendo como parâmetros os valores e os princípios que emanam da Constituição Federal e que irradiam sobre todo o ordenamento jurídico. Ao mesmo tempo, os critérios inerentes à ciência médica – avaliados pelo profissional e relacionados à saúde do paciente (em cada caso) – não poderão, por razões óbvias, ser ignorados.

4.5 Limites do dever de informar em outros ordenamentos e a solução brasileira