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1.3 A Relação Médico-Paciente e a tutela dos direitos fundamentais

1.3.1 Dignidade da Pessoa Humana

A Constituição Federal Brasileira, em seu artigo 1º, III, eleva a dignidade humana à categoria de fundamento da República. Com efeito, os direitos fundamentais do ser humano estão intimamente ligados à ideia de dignidade da pessoa humana. Na realidade, dar proteção aos direitos fundamentais é tornar válida a própria concepção de dignidade da pessoa, já que só se reconhecem direitos fundamentais àquele que é dotado de personalidade, e que, por conseguinte, deve ter assegurada vida digna. Se nasceu com vida, adquiriu personalidade, e, desta forma, deve ser protegido em todos os aspectos que o fazem ser dotado de humanidade. Como bem obtempera o jurista português Paulo Otero, “é a dignidade da pessoa humana viva e concreta e os direitos fundamentais dela decorrentes que justificam o Estado e a Constituição”49, e não o contrário.

No entendimento de George Marmelstein50, a vida digna só pode existir em um ambiente em que não há opressão, razão pela qual os direitos fundamentais ligam-se intimamente à ideia de dignidade da pessoa humana e de limitação do poder.

Para Daniel Sarmiento51, a dignidade da pessoa humana “costura e unifica

todo o sistema pátrio de direitos fundamentais [...], representa o epicentro axiológico da ordem constitucional.” É, portanto, a dignidade humana que baliza os atos estatais e as relações privadas, elevando-a à condição de princípio mais importante da ordem jurídica.

Uma das mais precisas conceituações de dignidade da pessoa humana, forjada em íntima relação com a ideia de direitos fundamentais, é aquela elaborada por

49 OTERO, Paulo, Pessoa humana e constituição: contributo para uma concepção personalista do direito constitucional, in Pessoa humana e direito, coord.: CAMPOS, Diogo Leite et CHINELLATO, Silmara Juny de Abreu. Coimbra: Almedina, 2009, p.355.

50 MARMELSTEIN, George. Curso de direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2008, p.18.

51 SARMIENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2ª edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris,

35 Ingo Sarlet, ao obtemperar que onde não haja respeito pela vida e pela integridade física e moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não houver limitação do poder – ou seja, quando liberdade, autonomia, igualdade em direitos dignidade não forem reconhecidos e assegurados – não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana.

Para o referido autor, dignidade da pessoa humana é “a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade...”.52 Continua o jurista, nessa mesma linha de raciocínio, consignando que a dignidade implica “um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável...”.53

Com base nesse conceito, podem-se definir direitos fundamentais como normas jurídicas ligadas à ideia de dignidade da pessoa humana e de limitação do poder, que, por sua importância axiológica, fundamentam e legitimam o ordenamento jurídico. São, ainda, valores formalmente reconhecidos, positivados no plano constitucional de determinado Estado Democrático de Direito, e que, dada sua importância, merecem uma proteção especial, mesmo que implicitamente.

Os direitos fundamentais são, acima de tudo, resultado de reivindicações geradas por situações de injustiças e agressões a bens fundamentais, elementares e indissociáveis do ser humano, e que, por esses atos hostis, alicerçaram-se na ideia da dignidade humana, no viver com respeito, com saúde, com participação na sociedade.

Estão esses direitos fundamentais – na sua essência – ligados intimamente, direita ou indiretamente, a valores que dizem respeito à vida, à liberdade, à igualdade e à fraternidade ou solidariedade, visando resguardar a dignidade do ser humano.

52 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição federal de 1988. 2ª edição, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p.62.

36 Ocorre que nem sempre sua proteção dar-se-á de forma tranqüila, pois até mesmo em países mais desenvolvidos, como é o caso dos Estados Unidos da América, ainda não há aceitação pacífica da ideia de que direitos sociais são efetivamente direitos fundamentais, apesar do fato de Constituições de vários de seus Estados consagrarem direitos dessa natureza em seus textos.

Nos EUA – até os dias correntes – os direitos sociais são tidos como direitos de "categoria inferior". Tanto que aquele país tem se negado, de maneira sistemática, a ratificar tratados internacionais de proteção de direitos das chamadas segunda e terceira gerações, ao menos até a gestão do Presidente George Bush. Neste sentido, a informação precisa de Fábio Konder Comparato54 de que o último tratado internacional de direitos

humanos integralmente ratificado pelos Estados Unidos foi o Pacto sobre direitos civis e políticos, aprovado pelas Nações Unidas em 1966.

Ainda relata o mesmo jurista que o pacto daquele mesmo ano de 1966 sobre direitos econômicos, sociais e culturais foi rejeitado pelo Congresso norte-americano, bem como diversos tratados posteriores, inclusive de cunho ambiental, como o chamado Protocolo de Kyoto de 1998, que prevê metas para a redução de emissão de gases para a atmosfera.

No Brasil, os direitos fundamentais, e, principalmente, a dignidade da pessoa humana, que serve de base e fundamento para os demais, foram expressamente previstos na Constituição Federal de 1988.

Segundo a lição precisa de Maria Celina Bodin de Moraes55, ao ser erigida a Constituição de 1988, alicerçada no princípio da dignidade da pessoa humana, o que culminou na criação de diversos outros princípios constitucionais de caráter normativo, repletos de valores ético-jurídicos fornecidos pela democracia, foi transformado o Direito Civil, que passou a não mais encontrar nos valores individualistas codificados o seu fundamento axiológico. Abandonou-se, assim, a perspectiva individualista, nos termos em

54 COMPARATO, Fábio Konder, A Afirmação Histórica ... cit, p.531-532.

37 que era garantida pelo Código Civil de 1916, substituindo-a pela concepção da solidariedade social.

Foi o filósofo alemão Emanuel Kant56, por meio de seu imperativo categórico, quem bem definiu a noção de dignidade humana, ao mesmo tempo em que reassentou a questão da moralidade em novas bases. Esse imperativo categórico é composto pela exigência de que o ser humano jamais seja encarado como um meio para se atingir um fim, mas – ao contrário – que seja visto como um fim em si mesmo. Ou seja, a finalidade do legislador deve ser o próprio ser humano. A dignidade humana, portanto, impõe barreiras a todas as ações que não encarem a pessoa como fim, mas como meio. Kant, desta forma, contemplou a dignidade humana como uma exigência de imparcialidade. Se são as pessoas fins em si mesmas, devem ser respeitadas e se respeitar umas às outras, já que deve partir-se do imperativo de que todos têm o mesmo valor, logo, são merecedores do mesmo respeito.

Assim, tem-se que o imperativo categórico baseia-se na dignidade humana. Essa dignidade humana representaria um valor interior e de interesse geral, o qual nunca poderia ser substituído por outro equivalente, diferentemente do que ocorre com o preço de dado bem, que é o quantificador de um valor exterior, atribuído a alguma coisa. Por conseguinte, as coisas teriam preço e as pessoas, diversamente, dignidade.

É o princípio da dignidade humana, sob esta ótica, a base da Constituição de 1988. Tudo aquilo que possa reduzir a pessoa à condição de objeto será desumano e, consequentemente, contrário a ela. Por toda a Constituição Federal Brasileira é possível encontrar uma série de direitos intimamente ligados à dignidade humana, como, por exemplo, no caput do artigo 5º, que trata da proteção à vida, ou ainda no inciso III desse mesmo artigo, no qual se aborda a proteção à integridade física, psíquica e moral, ou mesmo à vedação às penas de morte ou de caráter perpétuo ou cruel, previstas no inciso XLVII do mesmo artigo 5º.

Exatamente por isso, aliás, de tempos em tempos, retomam-se as discussões acerca da eutanásia – que, por sinal, é proibida em quase todos os países – que tem por

56 KANT, Emanuel, Fundamentação da metafísica dos costumes, in Kant Political Writings. Cambridge:

38 escopo assegurar uma morte piedosa, sem sofrimento, àquele que padece de moléstia irreversível e degradante. Nesse caso, a morte digna também estaria diretamente relacionada à dignidade humana, já que morrer dignamente também é um direito de todos, sendo permitido, nesse sentido, pelo ordenamento jurídico brasileiro, a ortotanásia, que consiste no não prolongamento da vida mantida unicamente por aparelhos.

Com efeito, a mesma autora, Maria Celina Bodin de Moraes57, entende que o substrato material da dignidade pode ser desdobrado em quatro postulados, “i) o sujeito moral (ético) reconhece a existência dos outros como sujeitos iguais a ele, ii) merecedores do mesmo respeito à integridade psicofísica de que é titular; iii) é dotado de vontade livre, de autodeterminação; iv) é parte do grupo social, em relação ao qual tem garantia de não vir a ser marginalizado”.

Por esse desdobramento da dignidade, é possível entender que outros princípios, também assegurados pela Constituição, legitimam a proteção desse princípio maior da dignidade da pessoa humana: igualdade, integridade física e moral, liberdade e solidariedade.

O direito à igualdade, como um dos corolários à validação da dignidade, preserva o ser humano do tratamento discriminatório, concedendo direitos iguais a todos. Na realidade, não se trata de conceder direitos iguais a todos, já que não são todos iguais, mas de conceder tratamento desigual aos desiguais, como forma de nivelar as diferenças, aproximando-nos uns dos outros.

Nesse passo, o direito à integridade psicofísica garante aos indivíduos a proteção aos direitos personalíssimos, instituindo, hoje, ainda nas palavras de Maria Celina Bodin de Moraes, “o que se poderia entender como um amplíssimo ‘direito à saúde’, compreendido este como completo bem-estar psicofísico e social”58. O foco de proteção sai

do patrimônio e vai para os bens extrapatrimoniais, que estão diretamente ligados à dignidade humana.

57 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à ... cit., p.85. 58 MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à ... cit., p.94.

39 As violações à integridade física e moral compreenderiam não apenas os direitos relacionados à personalidade, mas também aqueles puramente de caráter psíquico, relacionados, por exemplo, à perda de um ente querido, a um assédio sexual, a um erro de diagnóstico, a uma falha no dever de informação etc.

No que tange à liberdade individual, consubstancia-se essa, cada vez mais, nas perspectivas de privacidade, intimidade, vida privada, na possibilidade de realizar escolhas individuais. Esse direito, no entanto, deve ser sopesado com aquele da solidariedade social. Até onde poderia ir a liberdade, sem se que se ferisse a solidariedade social? A resposta a essa pergunta deve ser sempre a dignidade humana. A medida de aplicação da liberdade ou da solidariedade social será a dignidade humana, pela qual ora se penderá mais por uma, ora por outra. Se, por um lado, a imposição excessiva da solidariedade pode anular a liberdade, a liberdade exagerada também não se compatibiliza com a solidariedade. Se ambas forem ponderadas, no entanto, seus conteúdos tornam-se complementares.

A partir dos crimes praticados no regime nazi-fascista, intensificou-se a proteção da “humanidade”. Como resposta aos crimes contra essa humanidade, começou- se a pensar na sua proteção como coletividade. Mais adiante, passou-se à proteção do patrimônio social, do patrimônio comum à humanidade, contra a exploração inadvertida de recursos naturais.

Foi nessa época, no período do pós-guerra, por meio das Constituições elaboradas no século XX, que se criou o cenário de pessoa humana e dignidade, em detrimento da vontade individual e situações patrimoniais. Esse valor social deriva da consciência racional e coletiva dos interesses partilhados pelas pessoas, e volta-se à noção de garantia de existência digna e comum a todos.

Com efeito, esses quatro principais corolários da dignidade humana permitem encontrar a tutela desse direito, de modo que a inclusão em uma dessas categorias (liberdade, igualdade, integridade e solidariedade) não necessariamente exclui a possibilidade de se encontrar a tutela em alguma outra. Para preservar a dignidade humana,

40 é possível que uma mesma situação encontre tutela em um ou outro corolário, ou mesmo em mais de um ao mesmo tempo.