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A PROVA DO CUMPRIMENTO DO DEVER DE INFORMAÇÃO

6.1 O consentimento e sua prova

Como já dito, não há em regra no Brasil forma para o cumprimento do dever de informação, pois inexiste legislação a impor que a informação prestada pelo médico ao seu paciente deve ser escrita. O paciente, é obvio, tem o direito de ser devidamente informado e esclarecido a respeito do tratamento que lhe será ministrado para cientificar-se acerca de seus benefícios e riscos e poder, então, decidir autonomamente. Contudo, as informações e os esclarecimentos podem ser ordinariamente efetuados de forma verbal. Como já abordado no capítulo III supra, entende-se que há casos específicos em que a informação deve estar sempre formalizada por escrito, mas, na maioria das vezes, a forma escrita ostenta valor ad probationem.379

O consentimento informado, assim, não possui formalidade específica, e a forma escrita apenas deve ser observada quando expressamente estabelecida em lei.380 O modo de emissão do consentimento, a propósito, já foi tema de discussões nos Conselhos Regionais de Medicina que, invariavelmente, posicionam-se no sentido de que o consentimento por escrito – ressalvadas as hipóteses legais – é facultativo e dispensável.381

379 GALÁN CORTÉS, Julio César. Responsabilidad Civil ... cit., p.386.

380 Como no caso do artigo 15, §4º, da Lei dos Transplantes (Decreto 2.268/97) no qual se exige a

manifestação do doador mediante documento escrito e no caso da Resolução 196/96 (que trata das experiências médicas) cujo consentimento também deve ser manifestado por escrito.

381

Nesse sentido, parecer do Conselho Federal de Medicina: “[...] Quanto ao consentimento informado por escrito, ressalvadas algumas exceções, pouco significado ele tem no campo do ato médico, pois em consentimento não protege nem isenta médicos ou pacientes de resultados desfavoráveis que venham a ocorrer, pois se a parte a quem foi destinado o tratamento sentir-se prejudicada, com ou sem razão, pode atribuir o insucesso à conduta faltosa do médico, que há de responder por ela. O consentimento por escrito deve ser obtido no âmbito da pesquisa, na extirpação de membros, em cirurgias mutiladoras e em outras situações que devem ser avaliadas pelo médico [...]”. (Parecer CFM 22/04, disponível em http://www.portalmedico.org.br/pareceres/CFM/2004/22_2004.htm, acesso em 26/12/2011).

196 Relativamente à necessidade do consentimento e à conveniência de que seja ele outorgado na forma escrita, há indicação, por exemplo, no Código de Ética Médica argentino382 em seu artigo 77, de que o paciente ou seu representante deverá firmar um ‘consentimento informado’ livre, ficando a cargo do profissional determinar os casos em que tal seja necessário. A mesma norma (Código de Ética para el Equipo de Salud, Associação Médica Argentina, 2001) em seu artigo 95 determina rol de procedimentos que exigem consentimento esclarecido do paciente “a) procedimientos, diagnósticos o terapéuticas que impliquen un riesgo para la salud; b) terapéutica convulsionante; c) amputación, castración u otra operación mutilante e d) intervenciones a menores de edad.”, e ainda estatui a utilização de autorização por escrito e uso de protocolo informativo específico.383

Na prática, seria realmente um óbice à atividade médica que toda a troca útil de informações a ser estabelecida entre médico e seu paciente fosse realizada por escrito, especialmente ao enfrentar a realidade do sistema de saúde no Brasil.384 Recomendar que todos os consentimentos obtidos fossem reduzidos a termo seria – a uma só feita – injusto e contraproducente. Contudo, há hipóteses para as quais o termo de consentimento não só é indicado como necessário. Assim, entende-se que os critérios que deveriam ser utilizados para determinar a necessidade de obtenção de autorização prévia do paciente na forma escrita incluem (i) os procedimentos que retiram a consciência do paciente através de anestesia, (ii) aqueles invasivos (mesmo os minimante invasivos, como é o caso das endoscopias), (iii) os que oferecem um maior nível de risco para a saúde do paciente e (iv) pesquisas com seres humanos.

382 Artigo 77: “El paciente tiene derecho a que se le brinde la información que permita obtener su

consentimiento comprensivo del diagnóstico, pronóstico, terapéutica y cuidados preventivos prim arios o secundarios, correspondientes a su estado de salud. Deberá firmar él, la familia o su representante un libre ‘Consentimiento Informado’ cuando los facultativos lo consideren necesario”.

383 Artigo 95: “Las siguientes circunstancias de la actividad médica exigen autorización o

Consentimiento Informado del paciente o persona responsable del mismo:

a) Procedimientos, diagnósticos o terapéuticas que impliquen un riesgo para la salud; b) Terapéutica convulsionante;

c) Amputación, castración u otra operación mutilante; d) Intervenciones a menores de edad.

En cualquier caso dudoso, es aconsejable una autorización por escrito así como la constancia detallada en un protocolo médico o quirúrgico especial, que debe formar parte de la Historia Clínica correspondiente”.

384 Há inclusive posicionamento doutrinário defendo que “La expresíon escrita, deberá reservarse para casos

de mayor envergadura, para no burocratizar todo el ejercicio de la medicina” (HIGHTON, Elena I. et WIERZBA, Sandra M. La relación … cit.. 2ª edição, Buenos Aires: Ad-hoc, 2003, p.182).

197 Destarte, o ato de o paciente firmar um termo (desde que não seja mero ‘formulário genérico’, como antes já discutido neste estudo) permitirá comprovar com maior nível de segurança que houve escolha razoável e independente por parte do paciente, especialmente se deles constarem os riscos e danos potenciais, contribuindo para a formação de um bom conjunto probatório.385

Não se pode descartar, ainda, outros meios probatórios diversos do termo de consentimento livre e esclarecido, como prontuários, fichas clínicas, gravações e testemunhas eventualmente presentes no momento em que a informação é prestada.386

Dada a forma com que o contrato entre profissional e paciente se desenvolve, majoritariamente verbal, poucos serão os documentos passíveis de serem usados para produzir eventual prova judicial que seja necessária. O principal deles será a ficha clínica: daí a importância de que seja ela preenchida de forma legível de tal sorte a propiciar a demonstração do agir do médico naquele caso específico. Maior relevo ainda terá o prontuário médico, preenchido por equipe multidisciplinar composta não apenas por médicos de diferentes especialidades, como também por outros profissionais da saúde; a precisão e completude com que se preenche o prontuário poderão ser fundamentais para eventual caracterização e delimitação de culpa de qualquer dos membros que compõem a equipe de saúde.

Apesar de parecer totalmente estranha – por inocorrente – ao objeto do presente estudo, nada impede, em teoria, seja a confissão utilizada como meio probante da disparidade informativa: informação prestada de maneira insuficiente ou simplesmente não fornecida. Deve ser ela qualificada pela verossimilhança, precisão, e ausência de coação, tal qual prescrito no artigo 214 do Código Civil brasileiro.

385 GARAY, Oscar E. Derechos fundamentales de los pacientes. Buenos Aires: Ad-Hoc, 2003, p.423. 386 Miguel Kfouri Neto refere que o consentimento deve ser expresso e preferencialmente efetuado de forma

escrita, sendo que quando realizado de forma verbal deverá ser testemunhado. Relata, nesse sentido, caso julgado pelo Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul em que uma paciente, em parto cesáreo, teve suas trompas ligadas sem ter consentindo com a esterilização. O médico processado não conseguiu provar que foi autorizado pela paciente a promover a laqueadura e foi condenado ao pagamento de 300 salários mínimos a título de danos morais (KFOURI NETO, Miguel. Culpa médica ... cit., p.300-301).

198 Amiúde não restará ao julgador outra prova a produzir que não a de natureza testemunhal. Deverá ser ela admitida? Inicialmente, importa ressaltar que as pessoas envolvidas serão todas extremamente ligadas às partes. Pela banda do profissional, poderão testemunhar outros médicos também envolvidos no procedimento/tratamento sub judice, além de outros profissionais como enfermeiros ou paramédicos e colaboradores diretos do facultativo (secretária, por exemplo). Já pelo lado do paciente os testemunhos serão dados no mais das vezes por seus familiares e amigos mais próximos, dada a natureza bastante privada que normalmente reveste os cuidados de saúde recebidos.

Serão, por certo, testemunhas portadoras de um viés, por estarem tão próximas às partes envolvidas em litígio, porém também serão as únicas a ter acesso às informações que aqui importam. Muito embora pesará certa suspeita sobre sua imparcialidade, entende-se que será melhor ouvi-las (nem que seja a título de informantes do juízo), pois a argúcia do julgador poderá deles obter algum tipo de informação que lhe agregue algum substrato ao seu futuro julgamento.387

Relativamente ao meio probante mais significativo in casu, a prova documental, importante questionar-se sobre o que ocorrerá caso o profissional ou hospital se recuse a entregá-la ao Juízo. Formar-se-á uma grave presunção contra o profissional, que, entende-se não queira levar os documentos ao processo para não fazer prova contra si mesmo. Contudo, como adiante será abordado, em casos desta natureza frequentemente será determinada a inversão do onus probandi, prevista no CDC. Caberá, assim, ao facultativo produzir a prova e, não o fazendo, não se desincumbirá de provar os fatos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do paciente (CPC, artigo 333, II).388

387 ITURRASPE, Jorge Mosset. Responsabilidad por daños – Tomo VIII – responsabilidad de los professionales. Santa Fe: Rubinzal-Culzoni, 2004, p.436.

388 “Embargos Infringentes. Responsabilidade civil. Erro médico. Teoria da carga probatória dinâmica.

Aplicabilidade diante do peculiar e escasso material probatório. 1. A utilização da técnica de distribuição dinâmica da prova, que se vale de atribuir maior carga àquele litigante que reúne melhores condições para oferecer o meio de prova ao destinatário que é o juiz, não se limita, no caso, apenas às questões documentais, como prontuários e exames, que se alega pertencem ao hospital, mas à prova do fato como um conjunto, ou seja, não se duvida que ao médico é muito mais fácil de comprovar que não agiu negligentemente ou com imperícia, porque aplicou a técnica adequada, do que ao leigo demonstrar que esta mesma técnica não foi convenientemente observada. 2. Quando a aplicação dos contornos tradicionais do ônus probatório na legislação processual civil não socorre a formação de um juízo de convencimento sobre a formação da culpa do médico, a teoria da carga dinâmica da prova, importada da Alemanha e da Argentina, prevê a possibilidade de atribuir ao médico a prova da sua não-culpa, isto é, não incumbe à vítima demonstrar a imperícia, a imprudência ou a negligência do profissional, mas a este, diante das peculiaridades casuísticas, a

199 Caso os documentos tais como a ficha clínica, termo de consentimento livre esclarecido (TCLE) e/ou prontuário venham a ser entregues ao juízo, talvez se faça necessária a realização de perícia de natureza indireta sobre a documentação, não tanto sobre o conteúdo (em especial no que se refere ao TCLE) que deve ser compreensível por leigos em Medicina (in casu, tanto paciente, quanto juiz), mas especialmente para que se verifique se as informações ali presentes não foram acrescidas após a propositura de ação judicial ao invés de se apresentarem na ordem cronológica correta.

Ainda na seara da prova documental, frise-se que nenhum meio é mais eficiente para resguardar a segurança do médico que o termo de consentimento livre e esclarecido. Não obstante seja a exteriorização verbal ou outros documentos escritos unilaterais – como é a ficha clínica, preenchida durante ou após a consulta médica – formas idôneas e aceitas para manifestações e declarações de vontade, o documento escrito no qual restam elencadas as informações, os esclarecimentos e as advertências prestados ao paciente, com a sua ciência, será de fato o único verdadeiramente hábil a melhor demonstrar que o médico cumpriu o seu dever de forma válida.389

Embora não haja exigência explícita quanto à forma escrita, existe orientação jurisprudencial admitindo que a ausência de prova no que toca à obrigação de informar caracteriza a responsabilização civil do médico, posto que configura negligência no exercício profissional a “despreocupação do profissional em obter do paciente seu consentimento informado”.390

sua diligência profissional e o emprego da técnica aprovada pela literatura médica. Destarte, a aplicação de dita teoria não corresponde a uma inversão do ônus da prova, mas avaliação sobre o ônus que competia a cada uma das partes. Incumbe, pois, ao médico especialista o ônus de reconstituir o procedimento adotado, para evidenciar que não deu causa ao ocorrido. [...] Embargos infringentes desacolhidos, por maioria de votos.” (TJ/RS, Embargos Infringentes nº 70017662487, Relator Desembargador Odone Sanguiné, Quinto Grupo de Câmaras Cíveis, julgado em 31/08/2007, in www.tj.rs.jus.br, acesso em 15/12/2011).

389 Jorge Mosset Iturraspe, com precisão, menciona que no campo do Direito as palavras “se levam com o

vento”, sustentando que as manifestações verbais poderão trazer conflitos de “palavra contra palavra” que eventualmente trarão graves prejuízos aos médicos caso as coisas se compliquem.” (ITURRASPE, Jorge Mosset et PIEDECASAS, Miguel A. Derechos del Paciente ... cit., p.68).

390 “RESPONSABILIDADE CIVIL. Médico. Consentimento informado. A despreocupação do facultativo

em obter do paciente seu consentimento informado pode significar - nos casos mais graves - negligência no exercício profissional. As exigências do princípio do consentimento informado devem ser atendidas com maior zelo na medida em que aumenta o risco, ou o dano. Recurso conhecido.” (Superior Tribunal de Justiça,

200 O consentimento por escrito é, pois, meio de prova, mas não requisito para a validade do ato. Todavia, não se pode olvidar que a forma escrita – apta a representar a efetiva exteriorização da autonomia do paciente – é de extrema conveniência, eis que evitará maiores discussões em caso de eventuais ações judiciais, pois será possível ao profissional demonstrar que o seu dever foi cumprido de forma adequada e suficiente. 6.1.1 O prontuário

Além do próprio termo de consentimento já analisado, incumbe estudar-se o prontuário médico que é o documento onde se faz constar todos os acontecimentos principais dos atos médicos e relativos à saúde do paciente391. O prontuário (assim como

também a ficha clínica, preenchida em consultório) corresponde à instrumentalização do dever de informação que liga o profissional a seu paciente e a contrapartida do paciente é justamente seu direito a ter acesso irrestrito às suas informações ali contidas.392 Ao médico é vedado “deixar de elaborar prontuário legível para cada paciente”.393

Devem constar do prontuário394 o diagnóstico do mal que aflige o paciente, a terapia recomendada e a evolução da enfermidade. Sendo um prontuário hospitalar, todos

Resp nº 436827/SP, Relator Ministro Ruy Rosado de Aguiar, Quarta Turma, julgado em 01/10/2002, in www.stj.jus.br, acesso em 27/12/2011).

391 LORENZETTI, Luis Ricardo, Responsbilidad ... cit. Tomo II, p.243.

392 Código de Ética Médica, Resolução nº 1931/2009, artigo 88 “Negar, ao paciente, acesso a seu prontuário,

deixar de lhe fornecer cópia quando solicitada, bem como deixar de lhe dar explicações necessárias à sua compreensão, salvo quando ocasionarem riscos ao próprio paciente ou a terceiros.”.

393 Código de Ética Médica, Resolução nº 1931/2009, artigo 87: “Deixar de elaborar prontuário legível para

cada paciente.

§ 1º O prontuário deve conter os dados clínicos necessários para a boa condução do caso, sendo preenchido, em cada avaliação, em ordem cronológica com data, hora, assinatura e número de registro do médico no Conselho Regional de Medicina.

§ 2º O prontuário estará sob a guarda do médico ou da instituição que assiste o paciente.”

394 RESOLUÇÃO CFM nº 1.638/2002:

O CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, no uso das atribuições que lhe confere a Lei nº 3.268, de 30 de setembro de 1957, regulamentada pelo Decreto nº 44.045, de 19 de julho de 1958, e

CONSIDERANDO que o médico tem o dever de elaborar o prontuário para cada paciente a que assiste, conforme previsto no art. 69 do Código de Ética Médica; [Revogado, atual artigo 87] (anotou-se)