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PARTE II: O SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

2.1 ORIGEM DO SISTEMA INTERAMERICANO

2.1.2 A carta da organização dos estados americanos e seus protocolos

A Carta da OEA de 1948, também conhecida como Pacto de Bogotá, proclama os “direitos fundamentais da pessoa humana”423 em 18 capítulos e 112

artigos, tornando-os princípios que norteiam a Organização e que, mais tarde, representariam o eixo também para o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos424.

A Carta está dividida em quatro partes principais: a primeira diz respeito aos objetivos, natureza e princípios que norteiam a Organização; a segunda trata das obrigações decorrentes dos Estados-membros diante dos seus nacionais e entre si, referindo-se às formas pacíficas de solução de conflitos e segurança, decorrentes do

Tratado do Rio, diretrizes econômicas, políticas e sociais, assim como direitos

fundamentais; a terceira está relacionada à sua estrutura; e a última parte, às disposições finais, como vigência, ratificação, relação com a ONU e etc.

Os princípios que orientam as relações dos Estados-membros, previstos na

Carta da OEA, demonstram que o Direito Internacional Público, mediante a boa fé, a

solidariedade e o exercício da democracia representativa, formam a base do presente instrumento425. Entretanto, durante os travaux preparatoires, houve

423 Artigo 3º: Os Estados americanos reafirmam os seguintes princípios:

[...]

‘L’ Os Estados americanos proclamam os direitos fundamentais da pessoa humana, sem fazer distinção de raça, nacionalidade, credo ou sexo.

424 De acordo com o disposto no próprio texto internacional, a OEA somente poderia iniciar seu

funcionamento com adesão de dois terços do total de 21 países que aprovaram o mencionado texto (artigo 140 da Carta); no caso em 1951, quando a Colômbia a ratificou em 31 de dezembro daquele ano, tornando-se o 14º Estado-membro. Contudo, imediatamente após a Conferência de Bogotá, ainda em 1948, a OEA substitui a União Internacional das Repúblicas Americanas, mesmo que precariamente, conforme o disposto em Resolução aprovada na aludida Conferência. Ressalte-se que o último país dos 21 presentes na Conferência de Bogotá, a ratificar a Carta, foi a Argentina em 1952.

425 Artigo 3º: Os Estados americanos reafirmam os seguintes princípios:

‘A’ O direito internacional é a norma de conduta dos Estados em suas relações recíprocas; ‘B’ A ordem internacional é constituída essencialmente pelo respeito à personalidade, soberania e independência dos Estados e pelo cumprimento fiel das obrigações emanadas dos tratados e de outras fontes do direito internacional;

‘C’ A boa fé deve reger as relações dos Estados entre si;

‘D’ A solidariedade dos Estados americanos e os altos fins a que ela visa requerem a organização política dos mesmos, com base no exercício efetivo da democracia representativa; ‘E’ Todo Estado tem o direito de escolher, sem ingerências externas, seu sistema político, econômico e social, bem como de organizar-se da maneira que mais lhe convenha, e tem o dever de não intervir nos assuntos de outro Estado. Sujeitos ao acima disposto, os Estados americanos cooperarão amplamente entre si, independentemente da natureza de seus sistemas políticos, econômicos e sociais;

‘F’ A eliminação da pobreza crítica é parte essencial da promoção e consolidação da democracia representativa e constitui responsabilidade comum e compartilhada dos Estados americanos;

discussão quanto à natureza jurídica dos princípios que seriam elencados pela Carta, se seriam ou não vinculativos, ou mesmo seriam considerados meras diretrizes, o que resultou na divisão do capítulo em dois, sendo: o primeiro correspondente ao tão somente denominados “princípios” (atual capítulo 2º), portanto, diretrizes; e o segundo, “direitos e deveres fundamentais dos Estados” (atual capítulo 4º), os quais seriam vinculativos426, em que pese os direitos fundamentais também fazerem parte do rol de princípios, na medida em que se entendia ser oportuno que os Estados reafirmassem seu compromisso diante de tal questão. Reafirmar, pois, mesmo não congregados em um organismo internacional, os Estados do continente americano já tinham aprovado várias Resoluções acerca de temas afetos aos Direitos Humanos.

A Carta refere-se à autodeterminação dos povos e à proibição de qualquer interferência de um Estado perante outro em vários artigos, restando explícita o desejo dos países latinoamericanos quanto à preocupação da política expansionista dos Estados Unidos427.

No tocante às questões econômicas, sociais e culturais, a Carta da OEA, de 1948, trata da legislação trabalhista e social que deve vigorar entre os Estados- membros, beneficiando a todos, sendo qualquer discriminação de nacionalidade, sexo, crença ou condição social e da cooperação econômica como algo essencial para a prosperidade do continente e da população que nele habita. O respeito à

‘G’ Os Estados americanos condenam a guerra de agressão: a vitória não dá direitos;

‘H' A agressão a um Estado americano constitui uma agressão a todos os demais Estados americanos;

‘I’ As controvérsias de caráter internacional, que surgirem entre dois ou mais Estados americanos, deverão ser resolvidas por meio de processos pacíficos;

‘J’ A justiça e a segurança sociais são bases de uma paz duradoura;

‘K’ A cooperação econômica é essencial para o bem estar e para a prosperidade comuns dos povos do Continente;

‘L’ Os Estados americanos proclamam os direitos fundamentais da pessoa humana, sem fazer distinção de raça, nacionalidade, credo ou sexo;

‘M’ A unidade espiritual do Continente baseia-se no respeito à personalidade cultural dos países americanos e exige a sua estreita colaboração para as altas finalidades da cultura humana;

‘N’ A educação dos povos deve orientar-se para a justiça, a liberdade e a paz.

426 Cf. DAVIDSON, op. cit., p. 9.

427 Artigo 19: Nenhum Estado ou grupo de Estados tem o direito de intervir, direta ou indiretamente,

seja qual for o motivo, nos assuntos internos ou externos de qualquer outro. Este princípio exclui não somente a força armada, mas também qualquer outra forma de interferência ou de tendência atentatória à personalidade do Estado e dos elementos políticos, econômicos e culturais que o constituem.

Artigo 21: O território de um Estado é inviolável; não pode ser objeto de ocupação militar, nem de outras medidas de força tomadas por outro Estado, direta ou indiretamente, qualquer que seja o motivo, embora de maneira temporária. Não se reconhecerão as aquisições territoriais ou as vantagens especiais obtidas pela força ou por qualquer outro meio de coação.

diversidade cultural existente nas Américas também é referido pela Carta, a qual o relaciona com o direito de cada indivíduo à educação, primordialmente ao seu acesso e o Ensino Básico, que deve ser garantido pelo Estado-membro.

A já mencionada terceira parte da Carta da OEA, que dispõe da sua estrutura, estabelece seus órgãos principais: Assembleia Geral, Reunião de Consulta dos Ministros das Relações Exteriores, Conselho Permanente, Conselho Interamericano de Desenvolvimento Integral, Comissão Jurídica Interamericana, Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Secretaria Geral, Conferências Especializadas, Organismos Especializados. Os três primeiros órgãos são considerados de decisão política, cabendo aos demais fornecer elementos técnicos e administrativos que viabilizassem as deliberações dos Estados-membros nas três primeiras instâncias já referidas.

Cumpre esclarecer que diferentemente do Conselho de Segurança da ONU, que é chefiado por uma pentarquia de países, o Conselho Permanente é composto por todos os Estados-membros da OEA, não sendo atribuído qualquer poder de veto a determinados Estados, como queriam as nações latinoamericanas428. Uma das atribuições atuais do Conselho Permanente, que são afeitas ao Sistema Interamericano, refere-se à sua atribuição de analisar os Relatórios Anuais tanto da Comissão Interamericana quanto da Corte, antes de serem submetidos à Assembleia Geral, por força do Protocolo de Cartágenas das Índias.

Assim, o Conselho Permanente da OEA funciona como um órgão que prepara a sessão da Assembleia Geral, debatendo vários assuntos como as prioridades da Organização, orçamentos e ainda Direitos Humanos. À Assembleia Geral compete deliberar sobre estrutura e funcionamento dos seus órgãos, sendo, assim, também considerada importante para a atuação do Sistema Interamericano, ressaltando, por exemplo, que mediante Resolução, criou a Comissão Interamericana.

Com a instabilidade político-econômica que afetava muitos países da Américas e a necessária inserção dos latinoamericanos no conflito entre capitalistas e socialistas, em 1967, a Carta da OEA teve sua primeira alteração, sendo considerada a mais importante para a seara dos Direitos Humanos, durante a III Conferência Internacional Especial dos Estados Americanos, ocorrida em Buenos

428 Artigo 80: O Conselho Permanente da Organização compõe-se de um representante de cada

Estado membro, nomeado especialmente pelo respectivo governo, com a categoria de embaixador. Cada governo poderá acreditar um representante interino, bem como os suplentes e assessores que julgar conveniente.

Aires, cuja emenda aprovada, somente entraria em vigor em 1970 quando dois terços de assinaturas foram recebidas pela Secretaria Geral da OEA.

O Protocolo de Buenos Aires, como ficou conhecido o documento que alterou a Carta da OEA, apresentou as principais mudanças na Organização no que tange à sua estrutura e respectivo funcionamento, o que permanece até hoje, sendo responsável, por exemplo, por tornar a Comissão Interamericana de Direitos Humanos um órgão importante no âmbito da OEA, não mais classificada no rol geral dos Organismos Especializados; atribuiu status à Secretaria Geral como órgão da mais alta hierarquia, ampliando o mandato, proibindo a eleição de novo Secretário Geral da mesma nacionalidade do seu antecessor e extinguindo as Conferências Internacionais dos Estados Americanos, que ocupavam posição privilegiada; e o Conselho da OEA dá lugar ao Conselho Permanente, a Comissão Jurídica Interamericana é ampliada, mas não ocupa destaque na hierarquia da Organização, como previa o esboço do Protocolo inicialmente429.

No tocante aos Direitos Humanos, o Protocolo de Buenos Aires previu a absorção dos direitos previstos na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do

Homem pela Carta, na medida em que tais documentos foram aprovados como

instrumentos apartados, em que pese tenham sido aprovados na mesma Conferência. Além disso, reconheceu que tais dispositivos gozam de valor normativo430, alterando alguns direitos previstos na segunda parte da Carta, tendo

as questões econômicas ‘sofrido’ ampliações, com base nos princípios de solidariedade e de cooperação431, com a inclusão de apoio tecnológico e científico432, e criou os Conselhos Interamericanos Econômico e Social e para

Educação, Ciência e Cultura. Ainda referindo-se aos direitos econômicos, sociais e culturais, o Protocolo os consagra de maneira explícita no artigo 45 ao tratar das liberdades materiais e do direito ao trabalho e a relação entre empregador e

429 Cf. STOETZER, op. cit., p. 146-147.

430 Cf. LIMA JUNIOR, Jayme Benvenuto (Org.). Manual de direitos humanos internacionais. 2. ed.

São Paulo: Loyola, 2002.p. 81.

431 Artigo 30: Os Estados-membros, inspirados nos princípios de solidariedade e cooperação

interamericanas, comprometem-se a unir seus esforços no sentido de que impere a justiça social internacional em suas relações e de que seus povos alcancem um desenvolvimento integral, condições indispensáveis para a paz e a segurança. O desenvolvimento integral abrange os campos econômico, social, educacional, cultural, científico e tecnológico, nos quais devem ser atingidas as metas que cada país definir para alcançá-lo.

432 Artigo 38: Os Estados-membros difundirão entre si os benefícios da ciência e da tecnologia,

promovendo, de acordo com os tratados vigentes e as leis nacionais, o intercâmbio e o aproveitamento dos conhecimentos científicos e técnicos.

empregado433, assim como pode ser vislumbrado nos artigos 49 e 50 o direito à

educação434.

Ainda em 1973, na III Sessão Regular da Assembleia Geral, uma comissão especial foi constituída para revisar a Carta da OEA, na medida em que diversos Estados-membros demonstravam-se insatisfeitos com as mudanças, advindas com o primeiro Protocolo e com a atuação da OEA diante de acontecimentos, como a intervenção dos Estados Unidos na Guatemala, na República Dominicana, com a crise proveniente da Revolução Cubana e das ditaduras militares em países da América Latina. A Comissão encarregada de tal tarefa redigiu um segundo Protocolo denominado de Cartágena das Índias, aprovado em 1985, mas com vigência apenas em 1988435.

O novo Protocolo também contempla os anseios dos países da América do Sul de não permitir a interferência dos Estados Unidos nas suas políticas internas, o que fica claro na modificação aos artigos 1º, 3º (E) da Carta436, pois fortalece

433 Artigo 45:

[...]

‘B’ O trabalho é um direito e um dever social; confere dignidade a quem o realiza e deve ser exercido em condições que, compreendendo um regime de salários justos, assegurem a vida, a saúde e um nível econômico digno ao trabalhador e sua família, tanto durante os anos de atividade como na velhice, ou quando qualquer circunstância o prive da possibilidade de trabalhar;

‘C’ Os empregadores e os trabalhadores, tanto rurais como urbanos, têm o direito de se associarem livremente para a defesa e promoção de seus interesses, inclusive o direito de negociação coletiva e o de greve por parte dos trabalhadores, o reconhecimento da personalidade jurídica das associações e a proteção de sua liberdade e independência, tudo de acordo com a respectiva legislação.

434 Artigo 49: Os Estados-membros empreenderão os maiores esforços para assegurar, de acordo

com suas normas constitucionais, o exercício efetivo do direito à educação, observados os seguintes princípios:

‘A’ O ensino primário, obrigatório para a população em idade escolar, será estendido também a todas as outras pessoas a quem possa aproveitar. Quando ministrado pelo Estado, será gratuito; ‘B’ O ensino médio deverá ser estendido progressivamente, com critério de promoção social, à maior parte possível da população. Será diversificado de maneira que, sem prejuízo da formação geral dos educandos, atenda às necessidades do desenvolvimento de cada país; e

‘C’ A educação de grau superior será acessível a todos, desde que, a fim de manter seu alto nível, se cumpram as normas regulamentares ou acadêmicas respectivas.

Artigo 50: Os Estados-membros dispensarão especial atenção à erradicação do analfabetismo, fortalecerão os sistemas de educação de adultos e de habilitação para o trabalho, assegurarão a toda a população o gozo dos bens da cultura e promoverão o emprego de todos os meios de divulgação para o cumprimento de tais propósitos.

435 Aprovado em Cartágena das Índias na Colômbia em 05 de dezembro de 1985 na XIV Sessão

Especial da Assembleia Geral.

436Artigo 1º: […]

A Organização dos Estados Americanos não tem mais faculdades que aquelas expressamente conferidas por esta Carta, nenhuma de cujas disposições a autoriza a intervir em assuntos da jurisdição interna dos Estados membros.

Artigo 3º: Os Estados americanos reafirmam os seguintes princípios: […]

instâncias como Conselho Permanente e Secretaria Geral, a qual passa a ter atribuições semelhantes ao da Secretaria Geral da ONU.

O terceiro Protocolo à Carta da OEA, também é resultado do contexto que envolvia as Américas. O Protocolo de Washington, como ficou conhecido, aprovado em 1992, mas com vigência somente em 1997437, tem por escopo principal permitir a suspensão de um Estado-membro, cujo governo democrático tenha sido deposto arbitrariamente, impedindo-o de ter assento nos Conselhos da OEA, assim como reafirmar os compromissos dos Estados-membros em fortalecer as relações de cooperação para o desenvolvimento econômico e social da região, com a alteração do artigo 33 da Carta438.

O último Protocolo que alterou a Carta de 1948 foi aprovado em 1993, passou a vigorar em 1996 e teve como intuito alterar a estrutura da Organização para evitar duplicidade de atribuições e esforços, cria o Conselho Interamericano de Desenvolvimento Integral - a fim de prover as relações econômicas entre os países do continente e erradicar a pobreza - e extingue o Conselho Interamericano Econômico e Social e o Conselho Interamericano para Educação, Ciência e Cultura439.

Impende-se ressaltar que a doutrina debate acerca do caráter vinculativo da

Carta da OEA, cujo teor criaria ou não obrigações jurídicas. Scott Davidson, em

consonância com a posição do então Comitê Interamericano Jurídico, entende que os Estados-membros da OEA ao ratificarem a Carta que a constitui, assumiram uma obrigação jurídica em observância ao disposto no seu texto e devem garantir o seu fiel cumprimento perante os seus nacionais e estrangeiros, por força do artigo 17440

‘E’ Todo Estado tem o direito de escolher, sem ingerências externas, seu sistema político, econômico e social, bem como de organizar-se da maneira que mais lhe convenha, e tem o dever de não intervir nos assuntos de outro Estado. Sujeitos ao acima disposto, os Estados americanos cooperarão amplamente entre si, independentemente da natureza de seus sistemas políticos, econômicos e sociais;

437 Aprovado em Washington-D.C., Estados Unidos da América, em 14 de dezembro de 199,4 na XVI

Sessão Especial da Especial da Assembleia Geral.

438 Artigo 33: O desenvolvimento é responsabilidade primordial de cada país e deve constituir um

processo integral e continuado para a criação de uma ordem econômica e social justa que permita a plena realização da pessoa humana e para isso contribua.

439 Aprovado em Manágua, Nicarágua, em 10 de junho de 199,3 na XIX Sessão Especial da Especial

da Assembleia Geral.

440 Artigo 17: Cada Estado tem o direito de desenvolver, livre e espontaneamente, a sua vida cultural,

política e econômica. No seu livre desenvolvimento, o Estado respeitará os direitos da pessoa humana e os princípios da moral universal.

do presente documento internacional441. Cecilia Medina442 prefere sustentar que a

Carta adquiriu natureza de tratado internacional com base no artigo 6º443.