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PARTE I: A DINÂMICA DOS DIREITOS HUMANOS E A ESTÁTICA DOS DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS

1.6 ANALISANDO A JUSTICIABILIDADE

1.6.4 Mecanismos de judicialidade: o papel dos sistemas internacionais

Os organismos internacionais consideram primordial para a concretização dos direitos sociais a existência de mecanismos de judicialidade, para exigir do Estado as obrigações decorrentes da adesão de tratados internacionais relacionados aos DESCs313.

Os Estados assumem diferentes obrigações decorrentes da ratificação de normas internacionais de proteção dos Direitos Humanos, como obrigações imediatas e progressivas; obrigações de conduta e de resultado; e obrigação de respeito, de proteção, de implementação e de promoção.

As obrigações assumidas pelo Estado, que acarretariam execução de políticas públicas, prestação de serviços públicos de qualidade e outros benefícios associados à aplicação significativa de recursos, sempre acabam estritamente relacionadas ao cumprimento dos direitos sociais no entendimento de alguns. No entanto, cumpre ressaltar que, mesmo que uma parcela dos direitos considerados sociais para serem realizados exija tais obrigações prestacionais, não se pode compreender todos os direitos enquanto obrigações de implementação, havendo assim um papel também importante dos organismos internacionais para torná-los justiciáveis.

312 DOWELL-JONES, Mary. Contextualizing the international covenant on economic, social and cultural rights: assessing the economic deficit. Leiden: Martinus Nijhoff, 2004. p. 16.

313

Declaração e Programa de Viena (1993): “27. Cada Estado deve ter uma estrutura eficaz de recursos jurídicos para reparar infrações ou violações de direitos humanos. A administração da justiça, por meio dos órgãos encarregados de velar pelo cumprimento da legislação e, particularmente, de um poder judiciário e uma advocacia independente, plenamente harmonizada com as normas consagradas nos instrumentos internacionais dos direitos humanos, é essencial para a realização plena e não discriminatória dos direitos humanos e indispensável aos processos de democratização e desenvolvimento sustentável. Nesse contexto, as instituições responsáveis pela administração da justiça devem ser adequadamente financiadas e a comunidade internacional deve oferecer um nível mais elevado de assistência técnica e financeira às mesmas. Cabe às Nações Unidas estabelecer, como prioridade, programas especiais de serviços de consultoria, com vistas a uma administração da justiça forte e independente”.

Princípios de Bagalore para Conduta do Judiciário (2002): “Judicial independence is a pre-requisite to the rule of law and a fundamental guarantee of a fair trial. A judge shall therefore uphold and exemplify judicial independence in both its individual and institutional aspects. Application: 1 (3) A judge shall not only be free from inappropriate connections with, and influence by, the executive and legislative branches of government, but must also appear to a reasonable observer to be free therefore”.

Além da existência de mecanismos de judicialidade internos, os Sistemas Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos também dispõem de tais mecanismos para comprovar a justiciabilidade dos direitos sociais.

Os mecanismos de judicialidade previstos no Sistema Global de Proteção dos Direitos Humanos, por exemplo, são apreciados pelos Comitês temáticos, criados pelos instrumentos internacionais de Direitos Humanos, que têm competência para apreciar comunicações interrestatais e petições individuais.

As comunicações interrestatais correspondem a mecanismos de judicialidade, na medida em que permitem a um Estado-parte denunciar outro por não estar cumprindo com as obrigações constantes no tratado internacional monitorado pelo Comitê, para o qual a denúncia será enviada. No entanto, cumpre esclarecer que a fim de que ocorram comunicações interrestatais, torna-se necessário que o Estado- parte interessado declare expressamente a competência do Comitê para conhecer tal comunicação, devendo ainda o Estado-denunciado ter anteriormente ratificado expressamente tal medida.

Com relação às petições individuais, durante a redação dos Pactos

Internacionais muitos representantes de Estados presentes, questionaram a

competência de um órgão internacional em processar denúncia internacional, conforme já fora analisado, argumentando que o sistema judicial interno seria suficiente para solver a questão, o que motivou a elaboração de um instrumento internacional apartado, somente com a previsão de tal competência para o Comitê de Direitos Humanos, então criado pelo PIDCP.

A previsão da competência para receber e processar petição individual em instrumento apartado funciona como uma regra na elaboração e aprovação de instrumentos internacionais de Direitos Humanos, como forma de fazer com que os Estados-membros se obriguem a cumprir com os direitos elencados nos tratados e, em seguida, possam se submeter a um mecanismo de monitoramento extremamente sofisticado, que caracteriza a análise de petição individual perante um órgão internacional. Trata-se, pois, de uma regra, na medida em que há exceções, como, por exemplo, na Convenção para Eliminação de Todas as Formas de

peticionamento junto ao Comitê em caso de violação dos direitos previstos no presente instrumento314.

Os Comitês temáticos, que disponibilizam o mecanismo de judicialidade pelo envio de petições individuais, são constituídos por membros técnicos e não políticos, com notório conhecimento na área, eleitos pelo Conselho de Direitos Humanos, cujos períodos de mandato e número de membros variam conforme previsão no próprio instrumento internacional.

Em que pese os Comitês temáticos não serem considerados órgãos jurisdicionais, como a Corte Internacional de Justiça e outros Tribunais Internacionais temporários que fazem parte da estrutura da ONU; não possuem autoridade para obrigar observar o fiel cumprimento dos seus despachos e, desse modo, acabam sendo classificados pela doutrina como órgãos quase-judiciais.

Os Comitês são órgãos quase-judiciais por não emitirem sentenças, mas meras Recomendações, as quais acabam sendo consideradas como jurisprudências e por exercerem outros atos típicos dos órgãos jurisdicionais, como oitiva de testemunhas, decisões fundamentadas em textos normativos, sendo uma realidade em âmbito internacional315.

As Recomendações são, no entender de André de Carvalho Ramos, “[...] uma opinião de órgão internacional (por definição não vinculante), fruto da existência de obrigação internacional de monitoramento dos direitos humanos por parte de instâncias internacionais [...]”316. Mas do que uma mera opinião, as Recomendações

apresentam determinações que os Estados-parte devem seguir diante de um caso concreto, com vistas a garantir primordialmente uma justa reparação e adotar todas medidas necessárias, sejam elas legislativas ou administrativas, para evitar violações futuras.

Embora a Recomendação seja desprovida de qualquer mecanismo que possibilite sanção em caso de descumprimento, seu amparo legal se orienta pelas

314 Artigo 14: todo Estado-parte na presente Convenção poderá declarar, a qualquer momento, que

reconhece a competência do Comitê para receber e examinar as comunicações enviadas por indivíduos ou grupos de indivíduos sob sua jurisdição, que aleguem ser vítimas de violação, por um Estado-parte, de qualquer um dos direitos enunciados na presente Convenção. O Comitê não receberá comunicação alguma relativa a um Estado-parte que não houver feito declaração dessa natureza.

315 Cf. LANGFORD, op. cit.,p 1-45 [p. 5].

316 RAMOS, André de Carvalho. Processo internacional de direitos humanos: análise dos

sistemas de apuração de violações de direitos humanos e a implementação das decisões no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 298.

normas do Direito Público Internacional e seus princípios são, portanto, provenientes dos costumes, pressupondo, fundamentalmente, que a relação entre Estados-parte e Comitês, encarregados de conduzir o sistema de monitoramento, seja baseada no princípio de boa fé. Logo, as Recomendações feitas por órgãos quase-judiciais assumem um caráter vinculativo e de execução obrigatória pelo Estado denunciado, daí as petições individuais serem classificadas como mecanismos internacionais de judicialidade.

As Cortes Internacionais tradicionalmente admitidas como órgãos jurisdicionais são consideradas mecanismos de judicialidade por excelência. No Sistema de Proteção dos Direitos Humanos das Nações Unidas, a Corte Internacional de Justiça trata de forma periférica sobre questões afetas à temática dos Direitos Humanos317. Com sede em Haia, a Corte é composta por quinze juízes, eleitos pela Assembleia Geral e pelo Conselho de Segurança para cumprirem mandato de nove anos.

A Corte Internacional de Justiça foi instituída para dirimir conflitos internacionais, interpretando os tratados e solucionando problemas da justiça internacional. Logo, pode atuar tanto de forma consultiva quanto contenciosa. No entanto, cumpre esclarecer que somente os países membros é que podem apresentar casos e denúncias diante da Corte, desde que expressamente tenham reconhecido a sua jurisdição, não cabendo aos indivíduos propor qualquer petição. Outrossim, a Corte somente agirá quando solicitada, nunca ex officio.

Os Sistemas Regionais de Proteção dos Direitos Humanos também possuem mecanismos de judicialidade por intermédio das suas Cortes Internacionais. No caso do Sistema Europeu, sua Corte vem desenvolvendo significativa jurisprudência no que se refere à matéria dos direitos econômicos, sociais e culturais. Em que pese o objeto da presente pesquisa não vise estudar o tratamento atribuído pela Corte Europeia aos DESCs, cumpre esclarecer que o presente Sistema dispõe do mecanismo de judicialidade com seu acesso por denúncia individual, apresentada diretamente pela suposta vítima.

317 O Tribunal Penal Internacional, estabelecido pelo Estatuto de Roma, é a primeira Corte Criminal

permanente para tratar de crimes contra a humanidade, crimes de guerra e genocídio. Embora outros Tribunais tenham julgado casos com matérias semelhantes como os de Nurembergue, Tókio, Iugoslávia e Ruanda, a comunidade internacional entendeu que deveria ser prioritária a criação de um Tribunal Permanente, como forma de demonstrar sua preocupação e repúdio. O Tribunal é um órgão independente, não fazendo parte da estrutura das Nações Unidas, sendo mantido por Estados e outros entes. O Tribunal Penal Internacional passou a funcionar a partir de 2002, quando o Estatuto de Roma teve vigência.

No tocante aos demais Sistemas Regionais, o Sistema Africano também dispõe do mecanismo de judicialidade semelhante ao Sistema Interamericano, sendo que a petição individual deve ser encaminhada primeiramente a uma Comissão, desde que preencha determinados requisitos, por força da Carta Africana

de Direitos Humanos e dos Povos e do Protocolo à Carta Africana de Direitos Humanos e dos Povos que instituiu a Corte Africana de Direitos Humanos318.

Com relação ao Sistema Interamericano, este será analisado no próximo capítulo, ressaltando-se, no entanto, que também possui mecanismo de judicialidade com petições individuais, as quais são analisadas primeiramente por um órgão classificado pela doutrina como quase-judicial – Comissão Interamericana de Direitos Humanos – para, em seguida, ser encaminhado pelos representantes da vítima e/ou familiares à Corte Interamericana de Direitos Humanos, a qual irá sentenciar sobre as violações existentes no caso.