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PARTE I: A DINÂMICA DOS DIREITOS HUMANOS E A ESTÁTICA DOS DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS

1.6 ANALISANDO A JUSTICIABILIDADE

1.6.1 A influência da ordem internacional no conceito de justiciabilidade

Durante a redação do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e

Culturais, houve a tentativa de incluir, no artigo 2º, parágrafos específicos referentes

ao dever do Estado-parte em assegurar todos os direitos contidos no Pacto, adotando medidas legislativas e qualquer outra iniciativa que fosse necessária para

garantir todos os direitos consagrados no texto internacional e, caso fossem

violados, que houvesse mecanismos para sua exigibilidade ou sua judicialidade. A Comissão de Direitos Humanos não aceitou a sugestão de emenda ao PIDESC apresentada pela Delegação polonesa, que propôs a inclusão de dois parágrafos ao artigo 2º, acrescentando as mesmas obrigações contidas no PIDCP ao PIDESC, fazendo uso de expressões como “assegurar” e “garantir”, bem assim determinando que o Estado-parte instituísse mecanismos para exigibilidade e judicialidade de direitos, caso fossem violados270:

[...] Parágrafo 3 da proposta polonesa […] garantir que qualquer pessoa cujos direitos tenham sido violadores tenha um remédio efetivo; tendo em vista que muitos membros, inclusive a representação dos Estados Unidos, têm reconhecido que a maioria dos direitos demanda legislação, é razoável que um direito tenha uma garantia em caso de violação da legislação. O parágrafo trata de um remédio eficaz consequentemente aplicável ao presente pacto como um todo, tal qual o pacto de direitos civis e políticos e o Estado é responsável por observar suas normas internas271.

As Delegações ocidentais lideraram a oposição da tal sugestão, não por razões propriamente ideológicas, ou mesmo por entender tais direitos como de segunda classe, mas por questões práticas, não aceitando a possibilidade do

270

“the State should be responsible for the realization of economic, social and cultural rights to the same extent as civil and political rights. It is surely unreasonable to say that the right to vote should be implemented immediately upon entry into force of the covenant, while the right to work should be implemented only in a distant future […]”. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho Econômico e Social. Doc. E/CN.4/L.65/Rev.1, 1952

271

“Paragraph 3 of the Polish proposal […] provides that any person whose rights had been violated should have an effective remedy; since many members, including the United States representative, have recognized that most economic rights would call for legislation, it is only reasonable to grant the right of redress in case that legislation was violated. The paragraph dealing with an effective remedy consequently applies as fully to the present covenant as to the covenant on civil and political rights, as the State was responsible to the same extent for the observance of all its laws”. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho Econômico e Social. Doc. E/CN.4/SR.273, 1952.

reconhecimento judicial dos direitos econômicos, sociais e culturais, na medida em que seriam direitos a serem assegurados de forma progressiva272.

Os países em desenvolvimento estavam divididos acerca da proposta da Polônia273, pois, embora apoiassem a noção de progressividade, que deveria envolver os direitos sociais, também admitiam ser necessário constituir meios que garantissem de forma efetiva tais direitos, como ponderou a Delegação paquistanesa274, na esteira do que a Delegação uruguaia sustentava acerca da justiciabilidade dos direitos sociais, os quais deveriam ser redigidos da forma mais detalhada possível, o que, ao final, não ocorreu275. Por outro lado, a Delegação egípcia defendia a independência dos Estados em determinar suas políticas e seu sistema judicial interno, para decidir acerca do reconhecimento de violações de direitos e a melhor medida para sua reparação, sem interferência da comunidade internacional276.

Diante das discussões que conduziam à elaboração da International Bill of

Rights, observa-se que havia uma compreensão deturpada acerca da justiciabilidade

de direitos e a sua relação com os mecanismos para sua exigibilidade e judicialidade, concebendo a questão como algo exclusivamente relacionado com a jurisdição interna de cada país em constituir os seus mecanismos, notadamente o seu sistema judicial. Tal compreensão errônea pode ser motivada pela inexistência, até então, de um sistema internacional voltado para proteção dos Direitos Humanos como um todo, havendo, tão somente, o iniciante sistema europeu e sistema de denúncias individuais de algumas agências especializadas das Nações Unidas que, com o desenvolvimento do Sistema Global de Proteção dos Direitos Humanos, acabaram por se isolar em procedimentos burocráticos e pouco difundidos entre as

272

“Civil law distinguished between obligations leading to final results and obligations to take action. In the present case civil and political rights and some economic rights might connote obligations that would produce actual results; most economic and social rights, however could only give rise to obligations to take action”. Pronunciamento da Delegação do Reino Unido. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho Econômico e Social. Doc. E./CN.4/SR.273, 1952.

273 Cf. DENNIS, Michael J.; STEWART, David P. Justiciability of economic, social, and cultural rights:

should there be an international complaints mechanism to adjudicate the rights to food, water, housing, and health? American Journal of International Law, Washington-D.C., v. 98, p. 463-515 [p. 484], 2004.

274 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho Econômico e Social. Doc. E/CN.4/SR.273,

1952.

275 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho Econômico e Social. Doc. E/CN.4/SR.217,

1952.

276

“[...] had been unable to vote for a provision postulating that States undertook to guarantee that the competent political, administrative or judicial authorities would determine a person’s right do redress, in view of the absolute independence of the judiciary in his country”. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho Econômico e Social. Doc. E/CN.4/SR.274, 1952.

entidades de Direitos Humanos, que questionam sua legitimidade para exercer tal competência.

A classificação inicial, imposta ao PIDESC de tratado de promoção de direitos e de direitos não justiciáveis, acabou marginalizando-o diante do desenvolvimento dos Sistemas Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos em favor dos direitos civis e políticos, até o surgimento de uma nova doutrina, fundada nas necessidades básicas dos indivíduos, que conseguiu albergar todos os Direitos Humanos277.

Matthew Craven entende que a concepção deturpada acerca da impossibilidade dos direitos sociais serem considerados justiciáveis e, portanto, não poderem ser objeto de demandas judiciais e de denúncias internacionais, acabou sendo difundida entre os Estados-membros, o que resultou em uma ampla e inesperada, até então, adesão ao PIDESC pelos países278.

Para Michael Dennis e David Stewart, muitos estudiosos entendem que a justiciabilidade está relacionada com a existência de mecanismos ou qualquer tipo de procedimento para analisar questões que envolvam violações de direitos. Desse modo, direitos são justiciáveis quando houver mecanismos que possibilitem sua tutela e não justiciáveis quando inexistir qualquer previsão normativa neste sentido279.

Para exemplificar a constatação feita pelos autores em tela, remete-se ao conceito de justiciabilidade dos direitos sociais de Christian Courtis, para quem há de referir necessariamente a existência de mecanismos internacionais e nacionais de tutela para a garantia do seu exercício de acordo com previsão e regulamentação no plano normativo, sendo tais mecanismos instalados em órgãos jurisdicionais independentes e imparciais, os quais atuarão para proteção de direitos ou a sua reparação em caso de violação, tornando assim os direitos sociais justiciáveis280.

277 DOWELL-JONES, op. cit., p. 3 278 CRAVEN, op. cit., p. 28.

279 DENNIS, Michael J.; STEWART, David P. Justiciability of economic, social, and cultural rights:

should there be an international complaints mechanism to adjudicate the rights to food, water, housing, and health? American Journal of International Law, Washington-D.C., v. 98, p. 463-515 [p. 474], 2004.

280 “[...] refers to the ability to claim a remedy before an independent and impartial body when a

violation of a right has occurred or is likely to occur. Justiciability implies access to mechanisms that guarantee recognized rights […] The existence of a legal remedy – understood both in the sense of providing a procedural remedy (effective access to an appropriate court or tribunal) when a violation has occurred or is imminent, and the process of awarding adequate reparation to the victim – are a defining features of fully fledged right”. COURTIS, op. cit., p. 06.

Para Kitty Arambulo, além do caso ser analisado por um órgão jurisdicional, para se caracterizar a justiciabilidade de um direito, o caso também pode ser submetido a um órgão quase-judicial, desde que previsto em norma281.

Michael Dennis e David Stewart entendem que tais argumentos levam a um debate extremamente superficial sobre o assunto, pois, muito embora reiterem que a justiciabilidade remeta à possibilidade de se acionar judicialmente, por exemplo, por meio de mecanismos para averiguar situação que envolvam descumprimento de dispositivos legais282, deve-se, para compreender a justiciabilidade, considerar sobretudo a natureza dos direitos e das obrigações em questão e, primordialmente, a competência dos órgãos para os quais os mecanismos de exigibilidade ou judicialidade remetem casos ou petições envolvendo violações de direitos sociais.

Nessa esteira, Matthew Craven entende que o tema da justiciabilidade depende não necessariamente dos argumentos aduzidos e da qualidade das decisões, mas está relacionado diretamente à competência do órgão que emite a decisão, fazendo com que os direitos tutelados sejam admitidos como justiciáveis283.

Tal análise se assemelha ao entendimento das Cortes norteamericanas acerca da justiciabilidade, a qual requer que haja uma controvérsia entre duas ou mais partes com interesses divergentes sobre uma questão, que será submetida ao Judiciário para sentenciar, tornando-se este um mecanismo judicial efetivo para solucionar a controvérsia existente.

Mesmo nos Estados Unidos, o Judiciário tem competência para decidir sobre matérias relacionadas aos direitos econômicos, sociais e culturais, incluindo a obrigação do Estado em prover a subsistência e necessidades básicas dos indivíduos. Contudo, o fato do Judiciário nos Estados Unidos poder não quer dizer

dever, fazendo com que persista a ideia de muitos estudiosos de que os direitos

sociais não seriam propriamente justiciáveis284.

281

“The term ‘justiciability’ has become the common term to refer to a right’s faculty to be subjected to the scrutiny of a court of law or another judicial or quasi-judicial entity. A right is said to be justiciable when a judge can apply it in a specific case, and when this application can result in the further determination of this right’s meaning”. ARAMBULO, op. cit., p. 55.

282

“[…] justiciable – subject to the possibility of formal third-party adjudication, with remedies for findings of noncompliance.” In: DENNIS, Michael J.; STEWART, David P. Justiciability of economic, social, and cultural rights: should there be an international complaints mechanism to adjudicate the rights to food, water, housing, and health? American Journal of International Law, Washington- D.C., v. 98, p. 463-515 [p. 463], 2004.

283 CRAVEN, op. cit., p. 102.

284 Nesse sentido, para Paul Hunt há duas questões que precisam ser enfrentadas acerca da

Assim, a justiciabilidade não estaria afeta tão somente à competência legalmente instituída de um órgão para processar e julgar um caso envolvendo violações de direitos sociais. O Judiciário estaria autorizado a decidir sobre assuntos de sua competência de forma exaustiva ou superficial, no entanto, tais Decisões devem ser observadas e executadas. Logo, a questão sobre a justiciabilidade dos DESCs passa a envolver os impactos e a contribuição na prática das Decisões dos órgãos para os quais os mecanismos de judicialidade ou de exigibilidade remetem os casos de violações dos direitos sociais285.

Joaquín Mejía faz distinção entre justiciabilidade e exigibilidade, entendendo a primeira como aquela “[...] das instâncias nacionais e internacionais” e a segunda, como política, “[...] com a incidência em políticas públicas e influência de reformas jurídicas”286. Diferentemente do que faz a Declaração de Quito de 1998, que acaba

por confundir o conceito de justiciabilidade e exigibilidade, entendendo que os DESCs são exigíveis nas esferas judicial, política, legislativa e administrativa, devendo conduzir ações integradas para sua exigibilidade em âmbitos nacional e internacional:

[...] A exigibilidade é um processo social, político e legal. A forma e medida em que um Estado cumpra com suas obrigações a respeito dos DESC não somente tem que ser matéria de escrutínio dos órgãos de verificação do cumprimento das normas que os consagraram e garantiram, mais deve abarcar a participação ativa da sociedade civil nesta tarefa como condição de exercício de sua cidadania. Os DESC são direitos subjetivos cuja exigibilidade pode ser exercida individual e coletivamente287.

Ao lado dos mecanismos de judicialidade que envolvem o Poder Judiciário, os mecanismos de exigibilidade também são essenciais para caracterizar os DESCs como justiciávies, pois permitem evitar futuras violações e reconhecer medidas de reparação, em caso de violação, mediante procedimentos administrativos.

DESCs? O que acaba por remeter a duas outras ponderações: legitimidade e competência. Tais problemas somente podem ser enfrentados a partir da elaboração de textos legais precisos acerca de tais matérias. HUNT, op. cit., p. 25.

285 DENNIS, Michael J.; STEWART, David P. Justiciability of economic, social, and cultural rights:

should there be an international complaints mechanism to adjudicate the rights to food, water, housing, and health? American Journal of International Law, Washington-D.C., v. 98, p. 463-515, p. 479-481 [p. 475], 2004.

286

“[...] ante las instancias nacionales e internacionales [...]”; “[...] a través de la incidencia em políticas públicas y el impulso de reformas jurídicas”. MEJÍA. Joaquín A. Cinco mitos sobre los DESC. In: Revista CEJIL, Buenos Aires, n. 3, p. 58-69 [p. 58], 2007.