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PARTE I: A DINÂMICA DOS DIREITOS HUMANOS E A ESTÁTICA DOS DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS

1.5 UM CAMINHO PARA INDIVISIBILIDADE DOS DIREITOS HUMANOS

As diversas teorias existentes que justificam o fracionamento dos Direitos Humanos em dois grupos, ou mesmo desqualificam os direitos econômicos, sociais e culturais enquanto Direitos Humanos, ainda são arguidas por muitos Estados-parte em sua defesa, os quais não observam ou não implementam os dispositivos previstos nos tratados internacionais de Direitos Humanos.

As discussões acerca das medidas de implementação ainda subsistem quando o assunto se refere, primordialmente, aos direitos sociais e aos novos mecanismos de monitoramento, como a implantação, por exemplo, do disposto no

247 DOWELL-JONES, op. cit., p. 1. 248 Cf. SEPÚLVEDA, op. cit., p. 169-173.

Protocolo Opcional do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, recém aprovado pelas Nações Unidas, comentado anteriormente.

Apesar do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais fazer parte da International Bill of Rights, o que por si só, já demonstraria que tais direitos são fundamentais e que demandam proteção e promoção por parte dos Estados signatários, o princípio da indivisibilidade dos Direitos Humanos passou a funcionar como um mantra para fazer com que tais direitos sejam assumidos pela comunidade internacional com a “estirpe” de verdadeiros Direitos Humanos249.

O princípio da indivisibilidade se contrapõe à fragmentação dos Direitos Humanos, quer no seu reconhecimento por meio de textos legislativos, quer na sua garantia, e visa recuperar a concepção de Direitos Humanos adotada pela Declaração Universal, que não fragmentou tais direitos, como bem já se demonstrou, recusando a divisão dos Direitos Humanos, sustentada pelas teorias dos direitos de prestação positiva e negativa e suas variáveis, consubstanciadas nos dois Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais250.

O princípio da indivisibilidade dos Direitos Humanos vem nortear o rol dos denominados Direitos Humanos para que sejam concebidos como direitos, cuja eficácia plena somente poderá ser alcançada com sua realização simultânea.

Ao analisar os dois Pactos, enquanto textos da International Bill of Rights, Philip Alston e Henry Steiner sustentam que os dois grupos de direitos não poderiam ter se separado nem “logicamente” e nem “pragmaticamente”, pois alguns direitos podem ser encontrados em ambos os textos, se complementando ou ainda se reiterando, como, por exemplo, o direito de criar sindicatos, previsto no PIDESC; e o direito à liberdade de associação, disposto no PIDCP; direito à educação e à liberdade dos pais em escolher a escola onde seu filho estudará com previsão no PIDESC e o direito dos pais em escolher a religião do seu filho e também a educação moral do mesmo com assento no PIDCP; assim como em ambos os

249 DOWELL-JONES, op. cit., p. 01. 250

“[...] em conformidade com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, o ideal do ser humano livre, liberto do medo e da miséria não pode ser realizado a menos que sejam criadas condições que permitam a cada um desfrutar dos seus direitos econômicos, sociais e culturais, bem como dos seus direitos civis e políticos;” Preâmbulo do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais.

textos legais verifica-se a proibição da discriminação em relação à garantia aos direitos elencados251.

A concepção contemporânea dos Direitos Humanos se funda no princípio da indivisibilidade para demonstrar que a maior dificuldade para sua implementação trata-se da sua vigência, não havendo mais espaço para discussões acerca de prestações positivas e negativas por parte do Estado, restando claro que tanto os direitos civis e políticos quanto os econômicos, sociais e culturais podem exigir um fazer ou não por parte do Estado, sendo descabida qualquer possibilidade de divisão de direitos com base critérios semelhantes252.

A segunda Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, em 1993, vem com o propósito de reorientar a concepção universal dos Direitos Humanos e fazer com que os direitos econômicos, sociais e culturais fossem admitidos como prioritários pelos Estados-membros, independentemente da existência de violações aos direitos civis e políticos, que pareciam receber mais atenção da comunidade internacional, como bem observou o Comitê DESCs durante os trabalhos que se seguiram na segunda Conferência Mundial:

[...] A realidade alarmante […] de que os Estados e a comunidade internacional como um todo continuam tolerando todas as violações de direitos econômicos, sociais e culturais mesmo quando ocorrem relacionadas aos direitos civis e políticos, provocam expressões de horror e de indignação e remetem a convocação de ações de reparação imediatas. Com efeito, apesar da retórica de que as violações de direitos civis e políticos continuam a ser tratadas com mais seriedade do que os direitos culturais [...] indicadores estatísticos da extensão da privação ou de violações dos direitos econômicos, sociais e culturais têm sido citados com tanta frequência que tendem a perder seu impacto. A magnitude, gravidade e constância da privação têm provocado atitudes de resignação, sentimentos de amparo e fadiga da compaixão. Essas respostas silenciosas são resultado da relutância de caracterizar o problema como negações graves e massivas dos direitos econômicos, sociais e culturais. Também é difícil entender como a situação pode ser realisticamente tratada de outra forma253.

251 STEINER; ALSTON, op. cit., p. 247. 252

“El concepto de derechos y libertades y, por ende, el de sus garantías, es también inseparable del sistema de valores y principios que lo inspira. En una sociedad democrática los derechos y libertades inherentes a la persona, sus garantías y el Estado de Derecho constituyen una tríada, cada uno de cuyos componentes se define, completa y adquiere sentido en función de los otros”. ORGANIZAÇÃO DO ESTADOS AMERICANOS, Corte Interamericana de Direitos Humanos. Opinião Consultiva n. 8, 1987, parágrafo 26.

253“The socking reality [...] that States and the international community as a whole continue to tolerate

all too often breaches of economic, social and cultural rights which, if they occurred in relation to civil and political rights, would provoke expressions of horror and outrage and would lead to concerted calls for immediate remedial action. In effect, despite the rhetoric, violations of civil and political rights continue to be treated as though they were far more serious, and more cultural rights […] Statistical indicators of the extent of deprivation, or breaches, of economic, social and cultural rights have been

Com a aprovação da Declaração e do Programa de Viena de 1993, foi consubstanciada a compreensão de que os Direitos Humanos são, além de indivisíveis, universais e interdependentes, não podendo ser separados em uma sequência daqueles que seriam mais relevantes ou prioritários em detrimento de outros. Ademais, os Direitos Humanos deveriam ser compreendidos como elementos que fazem parte de um sistema indivisível. Nesse sentido, o exercício de um direito humano está estritamente relacionado com o exercício de outro e a sua violação também pode gerar a violação de outro; além disso, a garantia de um direito pode conduzir à proteção de outros, por haver entre eles uma conexão direta e pelo caráter indivisível, interdependente e sistêmico dos Direitos Humanos.

A Declaração de Viena também reforça o princípio universalista dos Direitos Humanos, em razão de formarem preceitos éticos com um conteúdo comum a toda a humanidade, ainda que sua interpretação possa variar conforme as diversas culturas existentes. São universais, pois, com relação aos sujeitos, são inerentes a todos os seres humanos, em função da igual dignidade, devendo seus titulares contribuir com a promoção e a proteção desses direitos.

As perspectivas previstas para a Declaração de Viena eram de que os Direitos Humanos fossem considerados fundamentalmente universais, para adoção de uma visão global, para aqueles que realmente necessitam de proteção, a concretizar-se no reconhecimento que se impunha a todos os Estados, gerando uma espécie de obrigação erga omnes de proteção, visto que se buscava um processo de construção de uma cultura universal de observância dos direitos.

A partir dos princípios norteadores dos Direitos Humanos previstos na Declaração de Viena, os direitos econômicos, sociais e culturais assumem relevância, vez que a Declaração determina que o Sistema Global de Proteção dos Direitos Humanos garanta mecanismos de defesa de igual importância aos atribuídos anteriormente aos direitos civis e políticos, assegurando uma proteção realmente eficaz dos DESCs, com mecanismos de justiciabilidade.

cited so often that they have tended to lose their impact. The magnitude, severity and constancy of that deprivation have provoked attitudes of resignation, feelings of helplessness and compassion fatigue. Such muted responses are facilitated by a reluctance to characterize the problems that exist as gross and massive denials of economic, social and cultural rights. Yet it is difficult to understand how the situation can realistically be portrayed in any other way”. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Conselho Econômico e Social. Doc. E/1993/22, anexo III, parágrafos 5º e 7º.

Antes do mencionado Protocolo Opcional ter sido instituído, o que flagrantemente foi postergado pelos Estados-membros, as Nações Unidas estabeleceram outros meios para medir a implementação dos direitos econômicos, sociais e culturais, em razão da importância que estes assumem e pela indivisibilidade dos Direitos Humanos. O Programa da ONU conhecido como Metas e Objetivos de Desenvolvimento do Milênio foi lançado em 2000, durante a Assembleia Geral das Nações Unidas, tendo tal Programa sido aprovado pelos 191 países que compunham à época este organismo.

Para cada Objetivo de Desenvolvimento foram estabelecidas Metas, fazendo com que o Programa ficasse conhecido como Metas do Milênio, as quais são compostas por oito itens, cuja finalidade é identificar o grau de evolução de um país no que se refere primordialmente aos aspectos econômicos, sociais e culturais, servindo assim como indicadores sociais globais.

Os oito compromissos assumidos pelos Estados-membros tratam: (1) da redução pela metade da população que sofre com a fome, até 2015; (2) de garantir que todas as crianças concluam o Ensino Primário até 2015; (3) promover a igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres, eliminando as disparidades entre os sexos no Ensino Fundamental e Médio, até 2005, e, até 2015, nos demais níveis de ensino; (4) da diminuição nas mortes de recém nascidos, tendo por meta reduzir em dois terços a mortalidade de crianças com idade inferior a cinco anos; (5) de reduzir a taxa de mortalidade materna em três quartos; (6) de deter a incidência do HIV/AIDS, malária e outros doenças e ter invertido a tendência atual de propagação; (7) de diminuir pela metade a população sem acesso permanente e sustentável à água potável e esgotamento sanitário, e, até 2020, ter melhorado de forma significativa a vida de pelo menos 100 milhões de habitantes de assentamentos precários; e (8) estabelecer parcerias para o desenvolvimento e de conhecimento de mercados e de tecnologias, para abertura do sistema financeiro e comercial254.

O princípio da indivisibilidade dos Direitos Humanos, contido na Declaração e

no Programa de Viena de 1993, objetiva ainda reorientar a interpretação dos

tratados internacionais sobre a questão.

254 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (Brasil). Relatório nacional de acompanhamento: Objetivos de desenvolvimento do milênio. Brasília, DF, 2005. 147 p.

Órgãos das Nações Unidas e Cortes Internacionais vêm recepcionando a concepção contemporânea dos Direitos Humanos, em suas Recomendações e julgados, como forma de proteger os direitos sociais, em que pese sua normatização como direitos progressivos e pela ausência de mecanismos internacionais, embora se reconheça o avanço recente com a aprovação do Protocolo Opcional do Pacto

Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, mas que ainda não está

em vigor.

A doutrina internacional identifica a interpretação que vem sendo admitida como forma de albergar os direitos sociais, pela primeira vez, em 1989, por intermédio de Craig Scott, que se refere à “permeabilidade” das normas de Direitos Humanos, em que seria possível utilizar os dispositivos existentes de uma categoria de direito, para atingir, direta ou indiretamente, os direitos de uma segunda categoria255.

A concepção contemporânea dos Direitos Humanos já era até então utilizada pela Corte Europeia de Direitos Humanos desde 1979, quando interpretou que os dispositivos contidos na Convenção Europeia de Direitos Humanos, de 1950, os quais tutelavam basicamente os direitos civis e políticos, também traziam implicações de ordem econômica e social, reiterando, assim, o teor da

Recomendação feita pela extinta Comissão Europeia256.

No mesmo sentido já identificado no Sistema Europeu para a Proteção dos Direitos Humanos e na doutrina que surgia sobre o assunto, as Nações Unidas - por meio do seu sistema de monitoramento, instituído pelos seus principais instrumentos de Direitos Humanos257, notadamente aqueles que dispõem da análise de petições

individuais - iniciaram um trabalho significativo para a tutela dos DESCs com interpretação ampla dos tratados. Assim, os direitos econômicos, sociais e culturais passaram a ser protegidos pelos órgãos quase-judiciais, mediante o recebimento de casos individuais, cujas violações alegadas se referem, mormente aos direitos civis e

255 SCOTT, op. cit., p. 771; SEPÚLVEDA, op. cit., p. 53.

256 Caso n. 6289/73, Airey vs. Irlanda, sentença de 9 de outubro de 1979, parágrafo 26.

257 Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, Pacto Internacional dos

Direitos Civis e Políticos; Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, Convenção sobre os Direitos da Criança, Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Migrantes e Membros da sua Família, Convenção Internacional sobre Proteção de Todas as Pessoas em Desaparecimento Forçado, Convenção Internacional sobre os Direitos de Pessoas com Deficiência.

políticos, atribuindo-se ênfase ao trabalho desenvolvido pelo Comitê de Direitos Humanos258.

Além de tutelar e conceder o exercício dos direitos sociais, como, por exemplo, a proteção ao direito à previdência social pelo artigo 26 do PIDCP (não discriminação)259, com a análise de petições individuais260, os órgãos que compõem o sistema de monitoramento contribuem para dotar dos DESCs de conteúdo, o que também é feito mediante os Comentários Gerais e pela análise do cumprimento dos tratados pelos Estados-parte, mediante os Relatórios Periódicos261.

Em que pese cada Comitê do sistema de monitoramento tenha atribuição restrita de verificar o cumprimento do tratado pelo qual foi criado, muitas questões e direitos arguidos como violados acabam por ser objeto de várias demandas em diversos Comitês, resultando na análise de um mesmo assunto por distintos órgãos. Assim, temas como não discriminação, educação formal, violência doméstica, portadores de HIV/AIDS são enfrentados por diversos órgãos, reforçando a indivisibilidade dos Direitos Humanos, bem como fazendo com que os Estados assumam a concepção contemporânea dos Direitos Humanos nos âmbitos: internacional e nacional.

Alguns Estados-parte podem criticar a atuação dos órgãos do sistema de monitoramento da ONU por entender que haja sobreposição entre eles, não estando evidentes suas atribuições, como vem ocorrendo com os mecanismos extra- convencionais das Nações Unidas262. Contudo, torna-se mister mencionar a

258 Para estudo acerca da atuação dos Comitês temáticos e proteção dos direitos econômicos, sociais

e culturais ver SCHEININ, Martin. Economic and Social Rights as Legal Rights. In: EIDE, Asbjørn; KRAUSE, Catarina; ROSAS, Allan. 2nd rev. ed. Economic, social and cultural rights: a textbook. Dordrecht: M. Nijhoff, 2001. p. 44-52.

259 Artigo 26: todas as pessoas são iguais perante a lei e têm direito, sem discriminação alguma, a

igual proteção da lei. A este respeito, a lei deverá proibir qualquer forma de discriminação e garantir a todas as pessoas proteção igual e eficaz contra qualquer discriminação por motivo de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, situação econômica, nascimento ou qualquer outra situação.

260 Caso Zwaan-de Vries vs. Holanda e Caso Broeks vs. Holanda, ambos de 1984 analisados pelo

Comitê de Direitos Humanos.

261 Segundo Magdalena Sepúlveda, todos os órgãos quase-judiciais do Sistema Global de Proteção

dos Direitos Humanos visam relacionar os direitos elencados nos tratados que se propõem a monitorar com os direitos econômicos, sociais e culturais, com exceção do Comitê contra Tortura. SEPÚLVEDA, op. cit., p. 54.

262 O Relator Especial para Promoção e Proteção do Direito à Liberdade de Opinião e Expressão,

Frank la Rue, declarou durante um encontro realizado pela American University, Washington College of Law, em 03 de fevereiro de 2010, que os Relatores Especiais têm sofrido retaliações por parte de Estados-membros. Estes estariam representando contra os especialistas independentes perante a Secretaria Geral das Nações Unidas, questionam a legitimidade dos Relatores Especiais em redigir

interpretação ampliada realizada pelos diversos órgãos, a qual permite que os direitos econômicos, sociais e culturais sejam analisados a partir da especialidade imposta à determinado Comitê temático. Logo, o Comitê para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, por exemplo, está autorizado a fazer uma interpretação dos direitos sociais à luz dos direitos das mulheres. Tal aspecto não gera duplicidade de análise de matéria, mas implica em observar que os temas enfrentados concomitantemente se reforçam perante a comunidade internacional e auxiliam os trabalhos realizados entre os Comitês temáticos e demais Sistemas Internacionais de Proteção dos Direitos Humanos263.