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3 PERCURSO NA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO

3.9 A Cartografia: traçando conceitos e territórios

O conceito de território, assim como o de desenvolvimento, apresenta amplos e distintos usos ao longo da história. Traçamos linhas de fuga ao traçar conceitos de territórios e multiplicidades.

Esta tomando corpo, no Brasil e no mundo um revolucionário debate sobre saúde e desenvolvimento, baseado, sobretudo, na indagação a respeito dos conflitos políticos gerados ao se separar a política econômica, voltada para o complexo econômico da saúde, e a política social, voltada para a proteção social em saúde. A cartografia aplicada à saúde vem acompanhando esse processo.

Buscamos no decorrer desta pesquisa construir um conceito híbrido de território. Antes, abordamos o conceito puro, que procuramos “rizomaticamente” superar. Tal trajeto epistemológico é bastante similar a nossa trajetória na práxis da ESF.

Segundo Santos (1994):

“Vivemos com uma noção de território herdada da Modernidade incompleta e de seu legado de conceitos puros, tantas vezes atravessando os séculos praticamente intocados.” (SANTOS, 1994, p. 65).

O território em seu sentido mais puro e restrito é o nome político para uma extensão de um país. Trata-se da extensão e domínio do Estado, uma localização. Seria um mero palco onde as ações humanas acontecem, uma concepção estática e estatística.

Entretanto, o território usado inclui todos os atores e não apenas o Estado (ou a ausência deste), como na acepção herdada da Modernidade. (SILVEIRA, 2009). O território usado é sinônimo de espaço geográfico, ou seja, é o espaço

constituído pela geografia, economia, política, cultura; refletindo cada momento histórico e sendo resultado das alterações do meio natural pelo homem através da técnica. Há uma apropriação política do território através do uso do espaço, da migração de trabalhadores e da estrutura territorial. O espaço geográfico é um sistema indissociável de objetos e ações. (SANTOS; SILVEIRA, 2001).

O território usado encontra-se em permanente transformação em detrimento o sentido e a essência dos eventos que acolhe. As condições de saúde refletem esse uso do território. Compreendemos que não há como compreender o território sem seu uso. Adentramos o território vivo na cartografia social.

De acordo com Acselrad (2010), quando se problematizou a cartografia convencional, promoveu-se um novo instrumento de elaboração conceitual no campo das práticas da representação cartográfica que passou a ser chamado de mapeamento participativo ou cartografia social. Este procedimento expressa rede de relações e práticas que conformam os territórios, sob a ação da cultura22, de

arcabouços jurídicos e de práticas políticas. (ACSELRAD, 2010, p. 10).

Reduzir uma região ao seu status político-administrativo, sem considerar que o sistemismo dos objetos, pessoas e ações ultrapassa seus limites e, paralelamente, que os atores têm força desigual, pode tornar ineficaz uma política pública e os resultados de uma pesquisa inconsistentes.

A compreensão da resistência à opressão e à exclusão social exige a aproximação entre problemáticas políticas mais abrangentes e as práticas diárias e as táticas de sobrevivência que têm permitido a afirmação de representações e identidades sociais historicamente ocultados. Afinal, agenciamentos, desenvolvidos no cotidiano, também modificam sentidos da ação social e podem ser portadoras de futuras consequências estruturais.

“Segundo Hall, representação e identidade são noções inseparáveis, uma vez que, as representações garantem o reconhecimento dos sujeitos sociais nas identidades sociais. Isto implica dizer que as identidades são formadas culturalmente, e modificadas em diferentes contextos historicamente construídos.” (KROEF, 2010).

22 A cultura é um território capitalistico

Nem toda ação é uma ação social e nem toda prática é uma práxis humana; uma unidade indissolúvel entre ação e reflexão sobre o mundo. Para desenvolver uma cartografia social é necessária uma inserção consciente na comunidade, compreendendo esta como objeto cognoscível e assumindo uma posição epistemológica É fundamental assumir a comunidade.

O verbo assumir é um verbo transitivo e que pode ter como objeto o próprio sujeito (no caso a pesquisadora) que assim se assume. Um sentido radical que tem a assunção ou assumir quando digo: uma das tarefas mais importantes da prática científica critica é propiciar que relações mútuas traçem a experiência profunda de assumissem como seres sociais e históricos, como seres pensantes, comunicantes, transformadores, criadores, realizadores de sonhos, capazes de sentir raiva e de amar. (FREIRE, 2006).

A cartografia social é potencialmente geradora de mudanças na realidade, pois, toda ação como prática da liberdade, é um ato de conhecimento, uma aproximação da realidade. (FREIRE, 2006). A ação social implica no estudo dos vínculos entre pessoas, conjuntura e lugar. É o uso do território, e não o território em si mesmo, que faz dele objeto da análise social. (SANTOS, 1994). É o traçar desse território que remete a cartografia de Deleuze e Guattari.

A cartografia proposta por Gilles Deleuze e Félix Guattari visa traçar um processo, e não representar um objeto.

A cartografia é um método onde não se propõe linearidades para chegar a um propósito, não se trata de ter um traçado definido a ser percorrido como observamos em muitas pesquisas. O que interessa é está atento ao que o território é capaz enquanto sua expressão. Entendemos que essa forma de pesquisar foi algo instingante e necessário para análise do nosso objeto em suas tão intrincadas linhas de formulação.

A opção por utilizar o método cartográfico decorreu do fato de lidarmos com linhas em constante mutação, com um plano de tensões que se movimenta, que não é fixo, ou seja, com rizomas.

Deleuze e Guattari propuseram o conceito do rizoma como um dispositivo de produção de processos. Eles consideram os fluxos que se

estabelecem e produzem conexões entre si e com o território. Para explicar essa ideia, explicitam características de aproximação com o rizoma:

“1º. e 2º. Princípios de conexão e de heterogeneidade: qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo... 3º. Princípio da Multiplicidade: é somente quando o múltiplo é efetivamente tratado como substantivo, multiplicidade, que ele não tem mais nenhuma relação com o uno como sujeito ou como objeto, como realidade natural ou espiritual,como imagem e mundo... Não existem pontos ou posições num rizoma como se encontra numa estrutura, numa árvore, numa raiz. Existem somente linhas... 4º. Princípio de ruptura a-significante: contra os cortes demasiado significantes que separam as estruturas, ou que atravessam uma estrutura [...].” (DELEUZE; GUATTARI, 1995).

Um rizoma pode ser rompido, quebrado em um lugar qualquer, e também retoma segundo uma ou outra de suas linhas e segundo outras linhas. A cartografia, ao contrário do mapa, dá conta de seguir essas linhas.

Na cartografia, observamos o próprio processo de auto- mapeamento em que se expressarão as “linhas de fuga” de quem faz parte ou não dos grupos, assim como de sua territorialidade. Reconhecer vivências em um contexto de disputas de poder.

Segundo Deleuze e Guatarri (1995):

“O mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre ele mesmo, ele o constrói. Ele contribui para a conexão dos campos, para o desbloqueio dos corpos sem órgãos, para sua abertura máxima sobre um plano de consistência. Ele faz parte do rizoma. O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social.” (DELEUZE; GUATTRI, 1995).

Por intermédio do método cartográfico podemos pensar o trabalho em saúde, as práticas de violência e suas relações com o acesso, numa perspectiva rizomática. O trabalho vivo em ato é um norte importante por onde transitam forças desejantes do trabalhador, da comunidade e dos jovens envolvidos diretamente com as práticas de violência e sua potência para operar mudanças.

Para o estudo da micropolítica e dos processos relacionados às práticas de violência e acesso à saúde, entendemos que cada pessoa, cartografa mapas e linhas de várias segmentaridades que se cruzam e vão compondo um território. Esses vetores de desorganização ou de "desterritorialização" são designados como linhas de fuga. (SILVA, 2012).