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3 PERCURSO NA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO

3.21 Inserção no território das Goiabeiras: Desconstruções

Perdi as contas de quantas vezes subi o Morro nos últimos anos, mas cada vez apresentou surpresas, alegrias, indignação, angústias, tristezas60. Esses

sentimentos ocorreram muitas vezes simultaneamente. Cada vez que observo uma das diversas fotografias do acervo da pesquisa,são traçadas novas linhas de fuga.

Observei tais desconstruções em reações e reflexões diversas e conflitantes em diversos trechos do diário de campo:

“Hoje foi um dia difícil. Fiquei com a nítida sensação que não tenho a capacidade de resolver os problemas que encontro no Morro. Estou me sentindo muito sozinha nesse trabalho, mas mesmo assim é muito gratificante. Cada dia é um novo desafio. Quando penso que dei um passo afrente volto vinte. Hoje, por exemplo, quando subi estavam todos irreconhecíveis. Acho que tinham acabado de fumar a pedra. Os olhos sem sentido. As crianças pareceram as únicas que compartilharam o mesmo plano de existência que eu!” (Diário de campo, novembro 2012).

“Não consigo entender! Como podem ter feito isso entre eles mesmos! Foi horrível, o L. chorando e pedindo que o pai retornasse, todos fingindo ser o gueto, sempre o errado é o gueto. Parece mais fácil culpar o gueto.” (Diário de campo, janeiro 2014).

Essa fase da caminhada foi difícil e solitária. A equipe foi desfalcada com a saída da residência multiprofissional em saúde da família. Processos que estavam sendo traçados foram cristalizados.

Enfrentei dificuldades para inserção no território. Quando decidi me inserir na comunidade do Morro pensei que para ‘ser aceita’ sem restrições deveria conseguir transitar entre territórios: o de profissional de saúde que cresceu em uma classe social abastada, que teve a oportunidade de estudar e se graduar em medicina e o da comunidade que cresceu na sombra da opressão e do abandono. Realmente, a princípio, existiu o traçar entre territórios, mas territórios captalisticos, não existenciais. As dificuldades iniciaram pela linha de cristalização, desconhecer o quinto teorema da desterritorialização:

“Quinto teorema: a desterritorialização é sempre dupla, porque implica a coexistência de uma variável maior e de uma variável menor, que estão ao mesmo tempo em devir (num devir, os dois termos não se intercambiam, não se identificam, mas são arrastados num bloco assimétrico, onde um não muda menos do que o outro, e que constitui sua zona de vizinhança.” (DELEUZE; GUATTARI,1996).

Iniciar o processo desconsiderando que a desterritorialização é sempre dupla marcou dificuldades.

Por que as pessoas têm medo de entrar na favela? Por que acreditamos que existem duas realidades paralelas? Compreendi que essas pessoas suportam o peso que nós não suportamos. É por isso que é tão difícil reconhecer e aceitar a existência das práticas de violência e da comunidade que as vivencia: se assim fizermos vamos ver que tem pessoas carregando um peso que deveríamos ajudar a suportar. (LANCETI, 2006). É mais fácil considerar ‘mundos diferentes’ ou ‘os marginais’, isso nos priva de reconhecer uma realidade que preferimos não ver.

O território existencial precisa ser cartografado e traçado no seu cotidiano em atividade, portanto, a territorialização também, articulando as epidemiologias e os saberes que a própria comunidade pode ofertar num espaço-tempo definido e traçado em redes. Assim, a multiplicidade e o devir, são conceitos que encontram nas linhas e redes um modo de expressão.

“Trabalhar com as linhas cristalizadas e as linhas de fuga faz um sentido especial, porque se relaciona ao que “é” mas pode deixar de “ser”. Pensar em como incluir, fazer adições e não excluir, fazer subtrações, tem relação com a aposta no vir-a-ser algo inacabado, o devir do Saúde da Família.” (SILVA, 2012).

Desde que nascemos atribuem a nós milhares de coisas. Não nascemos livres. Nascemos em um sistema, um núcleo que nos educa e nos valora, que nos qualifica, categoriza de acordo com o que estabelece como certo e errado, bom e mau, céu e terra, corpo e alma, etc., ou seja, somos qualificados em sistemas dualistas e potencialmente falidos, pois, foram criados para permanecer, conter, identificar elementos, estratificando-se, arborificando. Aprendemos a viver em um sistema pontual, a ligar os pontos formando retas.

A crítica a esse determinismo necessitou de um pensamento que fosse capaz de acolher o intempestismo, o imprevisível que se desdobra nas diversas trilhas que são traçadas pelo social. (SAIDÓN, 2008, p. 172)

Desconstruir que o processo de territorialização partiria da pesquisadora- médica para comunidade passiva foi passo importante para compor agenciamentos nesse território. Dessa perspectiva, Deleuze e Guattari (2005) nos propuseram uma relação mais aberta com o caos. A palavra agenciamento aparece aqui para combater a ideia de uma forma preexistente que possa dominar o caos. Os agenciamentos funcionam descartando os dualismos, binarismos que se apresentam ao pensamento. (DELEUZE; GUATARRI, 1995).

Figura 59 - Desconstruções: comunidade ativa e produtora de vida

Fonte: Acervo da pesquisa

Agenciamentos são encontros e no trabalho em saúde, traçam-se encontros cotidianamente. Nesses encontros entre corpos e ideias, está a emergência da produção de sentidos, que não pode ser negada. Esses encontros ao

serem traçados e potencializados produziram linhas de fuga. Estas possibilitam constituir dispositivos de encontro com articulação de linguagens diferentes para traçar a dimensão rizomática que existe em cada território da Estratégia Saúde da Família.

“A tia não pode parar de vir pra cá por nossa causa. Pense como vão ficar as crianças sem ter o grupo. Esse atendimento é bom pra gente e para a comunidade e não queremos que pare. A gente pode se tratar, falar com vocês. Não preocupa com segurança que os meninos respeitam muito sua equipe.” (João Cabral de Melo Neto, integrante dos Ratos do Morro).

O Morro foi deixando de ser um “morro qualquer”. Reterriterializou-se através de estratificações e desestratificações. A estratificação, para Deleuze e Guattari, existe em uma ética filosófica que pode ser formulada da seguinte maneira: para afirmar a potência vital é preciso aumentar as conexões e composições (encontro felizes) e diminuir o poder das de-composições (maus encontros). (DELEUZE; GUATTARI, 1997).

“Foi muito bom vocês virem pra cá. Quem é que ia querer subir esse Morro? Só os noieira mesmo, Ai veio sua equipe e subiu sem se achar. Subiu, ninguém quer subir não. Tem medo da gente, pensam que agente morde. Vocês olharam pra gente como gente mesmo. A gente fez uma amizade [...]” (Castro Alves, integrante dos Ratos do Morro).

Nesse sentido, foi importante pensar sobre como os corpos se afetam ao encontrar outros, e, ao mesmo tempo, se nesses encontros se capturam composições ou decomposições. É preciso perceber que tipo de produção acontece a cada encontro; se houve composição, foi um encontro que produziu paixões alegres; e, se ocorre o inverso, a produção é de paixões tristes. (DELEUZE, 2002).

“Luto pela desigualdade, pela falta de oportunidades, pelo desapego a vida. Este final de semana um dos meus meninos do Morro foi baleado e está paraplégico, outro na UTI e outro fugiu não sabemos para onde. As SACS passaram o sábado e domingo deitadas no chão para não ganhar bala. O pobre do cachorro que fica na rua do Morro ganhou um tiro na pata! Hoje, nenhum hipertenso compensado, minhas meninas atordoadas e a vida continua...” (Diário de campo, janeiro 2011).

A inserção na comunidade produziu um fluxo de conexões que ocorreu de vários modos. Nesses encontros marcamos territórios e ritornelos, sendo este, chamado por Deleuze todo conjunto de matérias de expressão que traça um território e que se desenvolve em motivos territoriais. (DELEUZE; GUATARRI, 1997).

Mas de que territórios falamos? Em consonância com Deleuze e Guattari (1997), há território existencial a partir do momento em que componentes de meios param de ser direcionais para se tornarem dimensionais, quando eles param de ser funcionais para se tornarem expressivos. Há território a partir do momento em que há expressividade do ritmo. É a emergência de matérias de expressão (qualidades) que vai definir o território. (DELEUZE & GUATARRI, 1997).

Esses territórios surgem na vida comungada, no estar com a comunidade. Não se formam linhas de fuga sem pontos de energia. Insere-se em uma comunidade quando profissionais/pesquisadores são projetados para o mesmo plano, numa relação ora de afrontamento, ora de substituição, ora de troca e de complementaridade.

Figura 60 - Fotografia da pesquisadora subindo a duna que ‘divide’ o território dos Ratos do Morro e Diabos do Polo

Figura 61 - Estando na comunidade

Fonte: Acervo da pesquisa

Figura 62 - Um trabalho rizomático: momento em que desejo e percepção se

confundiram

O Morro deixou de ser apenas o cenário de práticas de violência. Estas continuam a gerar linhas de cristalização e linhas de fuga, mas, outras linhas emergiram nesse rizoma.

“Você que pensa que só tem desgraça Para sua estranheza, fique sabendo [...] A vida pulsa de todas as formas, meu amigo! A vida se mostra bem viva nas vielas do Nosso Morro.” (Clara Nunes, agente comunitária de saúde).

Deleuze e Guattari (2010) partem do pressuposto que a realidade é pura produção, composta por singularidades e sustentada pelo desejo. Desejo traça realidades e realidades marcam territórios existenciais e universos psicossociais. O desejo marca possibilidades de produção, criação, invenção, da arte, da música, de modos e formas vitais. (DELEUZE; GUATTARI, 2010). O desejo não é ausência e sim potência.

A realidade é produção desejante e o desejo é a força motriz que impulsiona a máquina subjetiva, ou seja, que impulsiona o ser humano a produzir, a imergir num devir criador e impulsiona a subjetividade em múltiplas direções. Deleuze e Guattari não eliminam a noção de inconsciente, mas defendem uma idéia muito diferente do inconsciente freudiano, representacional ou estrutural: o inconsciente maquínico. O inconciente é máquina produtora de desejos. (DELEUZE; GUATTARI, 2010).

"Nas máquinas desejantes tudo funciona ao mesmo tempo, nos hiatos e nas rupturas, nas panes e as falhas, nas intermitências e nos curtos-circuitos, nas distâncias e nos despedaçamentos, numa soma que nunca reúne suas parte em um todo." (GUATTARI; ROLNIK, 2008).

Compreendemos que é possível um rizoma traçado a partir de encontros nomades. Mais do que um conceito, o nomadismo constitui uma pragmática dos modos existência, um modelo de devir e de heterogeneidade que se opõe ao estável, ao eterno, ao idêntico, ao constante, a repetição. (DELEUZE; GUATARRI, 1997). Os cortes dessa produção maquínica se deram infinitamente e a única medida foi o desejo que se agenciou maquinicamente.

Eis o devir. Articular-se com outros setores que estão no território e que têm implicações nos contextos de produção da saúde (escola, creche, CUCA61,

61 Centro de arte, lazer e cultura

CRAS62, CAPS63, espaços religiosos, entre outros); reconhecer-se pela potência

criativa que cada um carrega e que se potencializa pelo compartilhamento e encontros pela via da participação.

Esses encontros quando não se cristalizam, permitem o traçar de processos de subjetivação com seus fluxos desejantes de forma a potencializar a vida de forma criativa e singular.

“ [...] constituem um eu que não é identidade, mas que se deixa ser de acordo com as possibilidades de respiração que o processo lhe permite e com a forma como agencia tal produção desejante. (VIEIRA, 2002).

Figura 63 - Potência criativa no Morro São Thiago: Ritornelos

Fonte: Acervo da pesquisa

62 Centro de Referência em Assistência Social 63 Centro de atenção psicosocial

O caminho solitário de ida, da pesquisadora para a comunidade não deu conta da complexidade do território existencial e de abrir as portas do acesso.

A inserção no território existencial não se deu por uma ruptura entre ‘mundos’, mas sim por produções desejantes que geraram um conjunto de relações no tecido social que foram se moldando e oscilando em sua produção de uma relação alienada e opressora, na qual pessoas se limitam a submeterem-se para dar continuidade ao que existe, para uma relação de expressividade e criação em que o singular presente numa coletividade produz novos processos.

Como Santos (2006) nos chama atenção, há muito que aprender com aqueles que traçam os processos. A articulação de tantos saberes será capaz de produzir verdadeiras zonas de produção. (SANTOS, 2006). Não existem mundos diversos entre profissionais da ESF e a comunidade e sim fronteiras, barreiras construídas por eles próprios pelas dificuldades dos trabalhadores desterritorializarem-se num território com tantos desafios.

3.22 Compreendendo práticas de violência nas Goiabeiras

Logo ao assumir a responsabilidade sanitária pela equipe Amarela fui alertada por colegas de trabalho e moradores da comunidade: “Dra. Tati, ninguém sobe o Morro. É perigoso demais [...]”.

“Ratos do Morro”, “Diabos do Polo” e “Gueto” emergiram no território como grupos rivais e imersos em práticas de violência. Esses grupos produzem no território captalistico territórios existenciais bem demarcados

As figuras 64 e 65 mostram a Barra do Ceará, destacando a “faixa de Gaza”, linha imaginária que divide o território que “pertence” aos Ratos do Morro e aos Diabos do Polo. Tal linha dura de fronteira imaginária é traçada no topo da duna.