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Práticas de violência Linhas de cristalização e o devir-poder

3 PERCURSO NA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO

3.24 Práticas de violência Linhas de cristalização e o devir-poder

“[...] Willard vive com sua mãe autoritária na velha casa de família. Terrível atmosfera edipiana. A mãe manda-o destruir uma ninhada de ratos. Ele poupa um (ou dois, ou alguns). Depois de uma briga violenta, a mãe, que "parece" um cachorro, morre. Willard corre o risco de perder a casa, cobiçada por um homem de negócios. Willard gosta do rato principal que ele salvou, Ben, e que se revela de uma prodigiosa inteligência. Há ainda uma rata branca, a companheira de Ben. Quando volta do escritório, Willard passa todo seu tempo com eles. Eles agora proliferaram. Willard conduz a matilha de ratos, sob o comando de Ben, para a casa do homem de negócios, e o faz morrer atrozmente. Mas, ao levar seus dois preferidos para o escritório, comete uma imprudência, e é obrigado a deixar os empregados matarem a branca. Ben escapa, depois de um longo olhar fixo e duro sobre Willard. Este conhece então uma pausa em seu destino, em seu devir-rato. Com todas as suas forças, tenta ficar entre os humanos. Até aceita as insinuações de uma garota do escritório que "parece" muito uma rata, mas justamente só parece. Ora, um dia em que convida a garota, disposto a se fazer conjugalizar, re-edipianizar, ele revê Ben, que surge rancoroso. Tenta enxotá-lo, mas é a garota que ele enxotará, e desce ao porão para onde Ben o atrai. Lá, uma matilha inumerável o espera para despedaçá-lo. E como um conto, não é angustiante em momento algum.” (DELEUZE; GUATTARI, 1995).

Uma dúvida que pairou foi: até que ponto os jovens pertencentes aos grupos rivais são sujeitos de suas práticas e agenciam esses encontros para acesso à saúde, e até que ponto há desejo para fazê-los?

Relações diversas são construídas a cada instante. Uma palavra dita, uma interpretação dessa palavra, um conflito bélico modificam a multiplicidade do território. Um olhar e uma escuta modificam esse território e modificam o direito de vida e de morte.

“Estavam todos armados, uns vinte. Mas juravam que eu era a cabueta, que tinha entregado para o SS. que eles iriam naquele dia. O C. passou mal. O “Gabriel” pediu para te ligar e iam nos matar dizendo que eu tinha entregado para o “SS” que eles iam pegar ele, mas eu nem sei mais onde o “SS” mora. Ele é padrinho do meu filho mas a gente não se fala [...]” (Luiz Fernando Veríssimo, integrante dos Ratos do Morro).

Mas o que é direito de vida e de morte? Foucault nos remete a um paradoxo teórico que se completa com uma espécie de desequilíbrio prático:

“O efeito do poder soberano sobre a vida só se exerce a partir do momento que o soberano pode matar. Em última análise o direito de matar é que detém efetivamente em si em si a própria essência desse direito de vida e morte: é por que o soberano pode matar que ele exerce seu direito sobre a vida. É essencialmente um direito de espada.” (FOUCAULT, 2012).

Uma questão levantada, inspirada na narrativa sobre o ‘Homem dos Lobos’ de Deleuze foi: Por que Ratos e não Lobos? Quais as linhas de fuga e de cristalização são produzidas?

Pertencer à matilha gera linhas de cristalização. Ser Rato, agir como Rato, ter “inimigos” cristalizados. Então essa necessidade que os jovens têm dessa hierarquização precisa ser compreendida, pois essas estruturas de poder paralisam- nos, e muito do que poderia ser resolvido pelo coletivo local ainda não o é.

Pertencer à matilha influencia o acesso ou barreiras à saúde, educação, lazer e cultura:

“Ir para escola é muito difícil, é no Gueto, ai agente prefere no Agostinho. Vai todo mundo junto e o S. dando retaguarda. Mesmo assim chegaram atirando na porta da escola, atiraram em que tava lá, não querendo saber se era cidadão. Só por ser do Morro levou bala [...]” (Erico Veríssimo, integrante dos Ratos do Morro).

Os Ratos do Morro para sobreviverem (direito de vida) comportam-se como uma matilha. Compreendemos a matilha como uma multiplicidade que reterritorializa o ‘ser, estar’ Rato do Morro. Poderíamos pensar em um devir-Rato?

[...] distingue dois tipos de multiplicidade que às vezes se opõem e às vezes se penetram: de massa e de matilha [...] Entre os caracteres de matilha, a exigüidade ou a restrição do número, a dispersão, as distâncias variáveis indecomponíveis, as metamorfoses qualitativas, as desigualdades como restos ou ultrapassagens, a impossibilidade de uma totalização ou de uma hierarquização fixas, a variedade browniana das direções, as linhas de desterritorialização, a projeção de partículas. Sem dúvida, não existem mais igualdade e nem menos hierarquia nas matilhas do que nas massas, mas elas não são as mesmas. O chefe de matilha ou de bando arrisca a cada vez, ele deve colocar tudo em jogo a cada vez, enquanto que o chefe de grupo ou de massa consolida e capitaliza aquisições [...] (DELEUZE; GUATTARI, 1995).

O “chefe da matilha” e os integrantes dessa adquiriram soberania sobre o território do Morro através do poder “da espada”. Adquiriram o direito de fazer morrer e deixar viver.

“Estava realizando visita domiciliar no alto do Morro. Era final de tarde e já escurecia. De repente a movimentação mudou. Um grupo subiu alvoroçado empurrando um jovem com o rosto coberto por um capuz. Todos pareciam muito agitados. Passaram por nós. Todos sabíamos o que iria acontecer.” (Diário de campo, agosto 2013).

A promoção da saúde foi definida pela OMS (1986) como o processo de habilitação das pessoas para que aumentem seu controle sobre e melhorem sua saúde. Os pré-requisitos para saúde vão além da simples prevenção de doenças, ou de estilos de vida, incluindo aspectos, como, práticas de violência, paz, proteção, educação, alimentação, renda, justiça e equidade social.

“Eu durmo mal, sonho a noite inteira. Acordo tenso e tonto e com sensação de mágoa e rancor. Uns mata, outros morrem. Eu mesmo se vacilar, vou numa hora dessas. E ai vou pensar em escola? A escola é a vida. Não jogam pérolas aos porcos, joga lavagem, eles preferem assim.” (Gabriel Garcia Marques, integrante dos Ratos do Morro).

Os jovens das gangues pouco conseguem influir no direito do fazer viver, ou seja, de promover sua saúde, de sua família e de sua comunidade.

“E a minha mãe diz: “Gabriel” acorda, pensa no futuro que isso é ilusão. Olha o tanto que sofri, que eu sou e o que já fui. A inveja mata um, tem gente ruim. Deixa de lado esse ódio. Arruma trabalho com carteira assinada. O dinheiro do crime é amaldiçoado.” (Gabriel Garcia Marques, integrante dos Ratos do Morro).

O conceito de distribuição nômade elaborado por Deleuze responde em parte a ambiguidade das linhas de cristalização deixar viver e fazer morrer. Cada vez que uma linha de fuga traça uma linha de morte estas se cristalizam pois se organizam em uma função sedentária ou fixa.

Compreender e desconstruir o poder de deixar viver e fazer morrer criando linhas de fuga que gerem a capacidade de fazer viver, de promover a vida surge como uma luz no fim do túnel para assegurar o acesso à saúde.

“A vida não é o problema, é uma batalha, é desafio. Aqui na comunidade tem várias famílias de bem, tem a molecada. E o mano fica lá traficando. É assim quer em viver na rua sem maldade? Ai é pensar que o tempo ruím vai passar, esse inferno é só uma fase. Pensar que tem que ter coragem por que sua família precisa de você.” (Machado de Assis, integrante dos Ratos do Morro).

3.26 Determinação Social de Saúde e práticas de violência: rizomas no devir-