3 PERCURSO NA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO
3.11 O cenário da pesquisa
“Nossa Barra é uma obra de arte, com uma multiplicidade de cores, texturas, sons e emoções. Cada por do sol no rio Ceará é mensagem que Deus existe e conhece a Barra.” (Caetano Veloso, agente comunitário de saúde).24
A pesquisa ocorreu no município de Fortaleza, capital do Ceará com uma população maior do que dois milhões de habitantes, representa cerca de 30% do contingente populacional do Ceará, e concentra aproximadamente dois terços de toda a atividade econômica estadual. É território crescente de migrações, tanto pelo aspecto puramente econômico, como pelo poder atrativo que a metrópole exerce sobre a população do restante do Estado.
O êxodo rural é uma prática recorrente, como uma tendência dos grandes centros, o que acarreta incremento populacional anualmente e a consequente inchamento das áreas periféricas, além do crescimento relativo de sua população carente e do aumento da necessidade de serviços públicos de saúde. (VIEIRA, 2002).
24 Os entrevistados tiveram nomes fictícios. Profissionais de saúde receberam nomes de músicos e os moradores da comunidade de escritores.
No caso da nossa pesquisa, o território cartografado foi a Barra do Ceará e a Unidade Saúde da Família (USF)25 Dr. Lineu Jucá.
O centro de saúde funciona como “unidade-escola”, visto que, os
profissionais desses centros recebem alunos da graduação e pós-graduação em diversos cursos da área da saúde.
Figura 3 - Educação permanente: formação de médico de família e comunidade no
território vivo
Fonte: Acervo da pesquisa
A figura representa cartograficamente o município de Fortaleza dividido em seis regionais administrativas. Nosso trabalho será realizado na Coordenadoria Regional 1 (CORE 1).
25 No município de Fortaleza adotou-se a denominação Unidade de Atenção Primária à Saúde (UAPS). A denominação Unidade Básica de Saúde (UBS) também é utilizada.
Figura 4 - Mapa do município de Fortaleza dividido em regionais administrativas
Fonte: Google
A figura 5 é uma representação cartográfica26 espacial da Barra do Ceará.
A região delimitada pelas linhas representa o território sob-responsabilidade sanitária da Unidade de Saúde da Família Lineu Jucá.
Os limites geográficos do território de responsabilidade da Unidade de Saúde são o oceano Atlântico (norte), o rio Ceará e sua foz (oeste), a Avenida Robert Kenedy (leste) e a Avenida Leste-Oeste (sul). A USF se localiza no extremo sudoeste do território.
26 Mapa decalque
Figura 5 - Mapa da Barra do Ceará com área sob responsabilidade das equipes de
saúde da Unidade Lineu Jucá e equipe amarela dividida em microáreas, em destaque
Fonte: Google Earth
Figura 6 - Fotografia rio Ceará e Morro São Tiago
A Unidade de Saúde da Família é organizada na perspectiva da Estratégia Saúde da Família (ESF). Nessa Unidade atuam sete equipes mínimas de saúde da família, duas equipes de saúde bucal. A população sob a responsabilidade sanitária do centro de saúde é de aproximadamente 29.000 pessoas. Homens, mulheres, crianças de diversas raças, cores, credos, crenças. Com histórias de vida traçadas no território. Uma multiplicidade característica do povo brasileiro.
Figura 7 - Criança da Barra do Ceará brincando na praia
Figura 8 - Crianças da comunidade brincando no quintal
Figura 9 - Criança residente no Morro São Thiago
Fonte: Cedida pela fotógrafa Mel Lopes
Figura 10 - O traçar da vida no território
A figura evidencia foto por satélite da Barra do Ceará e pontos de referência para o acesso e as atividades das equipes de saúde e os limites do território.
Figura 11 - Barra do Ceará
Fonte: Google Earth
A figura evidencia a área sob responsabilidade sanitária da Unidade de Saúde da Família e seus respectivos setores censitários e as figuras 7,8 e 9 paisagens características da Barra do Ceará.
A estratégia saúde da família atua em uma base territorial a fim de traçar ações de vigilância em saúde, principalmente destinadas aos determinantes sociais do processo saúde-doença.
Figura 12 - Margem do rio Ceará: consultório de rua
Fonte: Acervo da pesquisa
A abordagem do território avançou diante do traçar de trilhas de condução da cartografia social, envolvendo outras ciências sociais e da filosofia. Marcamos relações desenhadas através da descrição do território com seus componentes
físicos e envolvendo as ruas, becos, quintais, caminhos, fluxos cotidianos das pessoas e dos “serviços” e das equipes ESF, ampliamdo, um diálogo entre lugares, modo de vida, ações de saúde e caminhos para visibilizar grupos sociais marcados por práticas de violência.
Costumo dizer que quem sobe o Morro não desce o mesmo. Várias vezes percorremos27 a comunidade, seja no processo de trabalho das equipes de saúde,
nas tardes que participo do futebol ou acompanhando outros setores, serviços, pesquisadores que desejem ou necessitem ‘entrar no Morro’28.
O trajeto da USF até a comunidade das Goiabeiras é feito de carro, devido a distância29. Estacionamos no ‘pé do Morro’. A equipe é recebida por
inúmeras crianças que conhecem os em sua maioria desde o nascimento ou primeiros passos. Essas crianças nos acompanham nos caminhos traçados no Morro.
Figura 13 - Crianças e adolescentes recepcionando equipe de saúde
Fonte: acervo da pesquisa 27 Refiro a equipe de saúde da família
28 Entrar na comunidade é vetado pelos Ratos do Morro e Diabos do Polo à pessoas desconhecidas 29 A unidade de saúde localiza-se quatro quilômetros do Morro São Thiago
Figura 14 - Chegando ao Morro: trabalhando com alegria
Fonte: acervo da pesquisa
Subindo a rua São Thiago a equipe encontra muitas pessoas em sua vida cotidiana. Paramos diversas vezes para conversar, exclarecer dúvidas e principalmente ouvir. Outros moradores se agregam a equipe. Dentre eles Dona Nicinha e Romeu, pessoas queridas que tiveram papel importante no traçado desta tese.
Figura 15 - Equipe de Saúde da Família subindo a rua São Thiago
Figura 16 - Trabalhando na comunidade: pausa para descansar
Fonte: Acervo da pesquisa
Se seguirmos na rua São Thiago chegamos ao topo do Morro, cuja vista é para o rio Ceará, oceano Atlantico e praias de Caucaia30.
Figura 17 - Vista do oceano Atlantico do topo do Morro São Thiago
Figura 18 - Vista da ponte sobre o rio Ceará do alto do Morro São Thiago
Fonte: Acervo da pesquisa
Figura 19 - Visita ao Morro São Tiago com alunos do internato em saúde coletiva da
Universidade Federal do Ceará e Universidade Estadual do Ceará
O ‘subir’ o Morro é sempre um devir. No trajeto a equipe realiza algumas visitas domiciliares,31 deparamos com situações limites e sobre tudo compartilhamos
da vida da comunidade no território.
Figura 20 - Atendimento de emergência: Intersetorialidade com o SAMU
Fonte: Acervo da pesquisa
31 A visita domiciliar a pacientes restritos ao leito, ao domicilio , recém nascidos e puérperas ou com dificuldade de acesso a Unidade de Saúde da Família é uma das competências inerentes as equipes de saúde da família
Figura 21 - Visita domiciliar a recém nascido e sua família
Fonte: Acervo da pesquisa
Caminhando pelos becos e travessas, a vida pulsa. As pessoas não se restringem ao domicílio, como observamos em bairros de classe média e alta. A rua é uma extensão dos domicílios. As pessoas estão sempre em ir e vir.
Figura 22 - Ir e vir pelas travessas do Morro
Fonte: Acervo da pesquisa
Figura 23 - Tarde no Morro São Thiago
Figura 24 - Mulheres de areia
Fonte: Cedida pela fotógrafa Mel Lopes
As travessas Ceci, São Thiago e parte da rua São Thiago não possuem abastecimento de água e rede de esgotos. A coleta de lixo acontece no Campo Beira Rio, mas não nos becos e travessas, gerando o acúmulo de grande quantidade de lixo nas ruas. O fato de grande parte do território ser áreas de ocupação é uma das justificativas dos órgãos de gestão ao não investimento em infra estrutura.
Figura 25 - Lixo acumulado na comunidade: convivendo com o lixo
Fonte: Acervo da pesquisa
Figura 26 - Lixo a céu aberto acumulado no Morro São Thiago
As moradias são heterogêneas: alvenaria, material aproveitável, barracos de lona. Muitos imóveis são alugados ou ‘empenhados’32. A energia elétrica é
gerada na maioria dos domicílios por ‘gatos’33.
Figura 27 - A vida flui: gatos na energia elétrica
Fonte: Cedida pela fotógrafa Mel Lopes
A comunidade desenvolveu estratégias de sobrevivência e de resistência à exclusão social. A energia elétrica dos gatos é dividida por todos. A “defesa do território”34 e a “proteção” das crianças cabe a todos.
Dona Nicinha e outras moradoras antigas provém alimentação para as crianças, caso, um dia de trabalho não seja suficiente para gerar o lucro necessário para comprar comida.
32 Algumas famílias ‘perderam’ a posse de seu imóvel devido dívidas contraídas por consumo de drogas e jogos.
33 Ligações clandestinas
34 O acesso ao Morro é vigiado vinte e quatro horas e existe sistema de comunicação que avisa a chegada de pessoas estranhas, integrantes de outras gangues e da polícia.
Jovens que cresceram na comunidade e que hoje surfam, criaram a escolinha de surf com o objetivo de promoção da saúde e marcar caminhos distintos do consumo de drogas e práticas de violência.
Figura 28 - Preparo do almoço
Figura 29 - Desenhando caminhos com a escolinha de surf
Fonte: Cedida por colaborador e militante da cultura de paz na Barra do Ceará
As equipes de saúde da família da UAPS Lineu Jucá traçaram desde sua chegada estratégias de reconhecer e marcar parcerias com recursos existentes na comunidade. Tratou-se de uma apropriação territorial multiforme, inclusive, marcando movimento de organização social.
“Onde existir uma possível parceria nossa equipe chega e buscamos um jeito de trabalhar em parceria. Cada um tem o seu potencial para contribuir na saúde da comunidade.” (Cassia Eller, agente comunitária de saúde).
O CUCA (Centro de Cultura, esporte e lazer), CEPID (Centro de profissionalização para pessoas com deficiências), a associação Pequeno Cidadão (criada e mantida pela pastoral da criança), a associação Amanhecer (criada e mantida pela igreja católica), a organizações não governamentais Instituto Lourdes
Viana, templos religiosos católicos, evangélicos e do candomblé são exemplos de parcerias traçadas pelas equipes de saúde e do uso e apropriação do espaço.
Marcamos linhas de fuga para a apropriação por parte da comunidade de espaços institucionais, através da percepção e rompimento de campos de poder presentes na ação do Estado, das instituições, das relações sociais que desenhadas na vida cotidiana.
Ao criar o ambulatório do adolescente35, desterritorializar a unidade de
saúde e reterritorializar o CUCA, traçamos linhas de acesso e marcamos projetos terapêuticos com a equipe do CUCA, agenciamos uma multiplicidade de saberes e parceria para trabalhar em prol da comunidade. Surgiu dai o “CUCA na Comunidade, ampliando o acesso e trocando experiências”.
Figura 30 - Ambulatório do adolescente no CUCA: promoção da saúde, acesso e
integralidade e traçando vínculos
Fonte: Acervo da pesquisa
A parceria com a equipe do CEPID marcou acesso da comunidade à instituição e o re-conhecimento por parte desta de multiplicidades dessa comunidade.
Figura 31 - Equipes saúde da família e CEPID integradas
Figura 32 - Integralidade e tecendo redes de cuidado: equipes de saúde da família e
CEPID
Enfim, durante anos indo e vindo pelas ruelas do Morro, comungando alegrias, tristezas, esperanças, angustias, a equipe de saúde compreendeu nuances do território e vem traçando estratégias para ampliar o acesso a saúde.