3 PERCURSO NA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO
3.19 Compreendendo o acesso na comunidade das Goiabeiras: o
O acesso é rizoma. Todos envolvidos no rizoma território possuem potencialidades para promovê-lo e/ou para dificulta-lo.
A força que tem o desarranjar o estabelecido e de produzir multiplicidades é infinita. O trabalho nômade na saúde da família tem no movimento a sua potência e sua capacidade de desterritorialização.
“A ideia surgiu no curso de equidade e foi abraçada pela equipe. Primeiro fizemos uma visita. Foi visita diferente por ser na rua. Ai chamamos a equipe para ir também e foi muito importante. O M. que morava com eles na rua veio pensando que a gente estava fazendo politica. Explicamos que somos agentes de saúde e ele não acreditou. Depois entendeu.” (Alceu Valença, agente comunitário de saúde).
Deleuze (2002) diz que nesses encontros os corpos se afetam e produzem afetos que podem causar alegrias ou tristezas que para o autor aumentam ou diminuem a potência de agir no território onde atua. (DELEUZE, 2002).
O acesso pode sofrer um nó crítico54 em qualquer lugar do território e
processo de trabalho na ESF nas Goiabeiras desde o processo de organização do
54 Entre as vertentes do planejamento estratégico que surgem a América Latina a partir dos anos 70, destaca-se o Planejamento Estratégico Situacional, de Carlos Matus. Para Matus, um problema, ou nó crítico, não pode ser apenas um “mal-estar” ou uma necessidade sentida pela população. Um
processo de trabalho na UBS, na compreensão da gestão sobre a ESF até na dinâmica do território, incluindo suas práticas de violência.
“A demanda reprimida é muito grande. As equipes estão com seu limite de população. Tem os hipertensos, os diabéticos, mais de cinquenta gestantes, crianças. Ai o usuário vem marcar uma consulta e só tem vaga para dois meses depois. Volta para casa chateado e sem resolver seu problema.” (Samuel Rosa, agente comunitário de saúde).
“Não aguento mais escutar a gestão falar que nossa unidade tem muitos médicos. Somos sete e a população é superior a vinte e oito mil pessoas. É uma conta de matemática.” (Cazuza, médico).
A ‘entrada’ do Morro é vigiada pelos ‘Ratos’ e o acesso ao Polo pelos ‘Diabos’. Não há trânsito entre determinados territórios.
“Não é qualquer um que sobe e também que desce. Nós aqui eles lá, cada um no seu lugar, tem culpa eu se a vida é assim, ratos e diabos não dividem o mesmo ecossistema [...].” (Pablo Neruda, integrante dos Ratos do Morro).
Porém, mesmo territórios sem livre acesso possuem linhas de fuga e se transformam continuamente. Transformam-se pelas ações da natureza, do tempo, dos homens, das relações. A terra (da duna ao Morro) serviu ao mesmo tempo como lar íntimo para o qual se inclinou naturalmente o território, mas que, apreendido como tal, tendeu a repelir este último ao infinito (assim é a terra natal, sempre perdida remetida por Deleuze e Guattari em Mil Platôs).Esse espaço liso é que fez a abertura de direito, a irredutível desestabilização do território, mesmo o mais fechado e com sem acesso.
problema suscita à ação: é uma realidade insatisfatória superável que permite um intercâmbio favorável com outra realidade.
Figura 46 - Passagem para acesso ao Morro, vigiada pelos dos ‘Ratos’ em outubro de 2009
Fonte: Acervo da pesquisa
Figura 47 - Passagem para acesso ao Morro, vigiada pelos dos ‘Ratos’ em fevereiro de 2014
Barreiras ao acesso da equipe de saúde ao território do Morro foram marcadas e rompidas através da criação de vínculos com a comunidade: linhas de fuga.
As crianças do Morro estavam em sua maioria ‘ilhadas’, pois não podiam deslocar-se para receber assistência na Unidade Básica de Saúde (UBS) próxima e nem chegava até elas atendimento de qualquer profissional da equipe de saúde. As linhas de cristalização que geravam essa dificuldade de acesso eram perpassadas por práticas de violência:
“Meus filhos não pode ir ao posto. Minha mulher também não pode. É assim mesmo, a vida louca que agente tem. Os moleque pagam também. Os inimigo não querem saber se é criança inocente ou não é. Se vacilar é derrubado, é guerra e na guerra tem o inimigo.” (Graciliano Ramos, integrante dos Diabos do Polo).
Hoje, seis anos depois, compreendo que a linha de fuga que nossa equipe percebeu, naquele momento, foi o desejo de criar uma distância crítica:
“A distância crítica é uma relação que decorre das matérias de expressão. Trata-se de manter à distância as forças do caos que batem à porta.” (DELEUZE; GUATTARI, 1996).
Ao abordarmos o desejo de criar uma distância crítica, em termos conceituais, interessou-nos considerar, onde e como a vida nos espaços do território das Goiabeiras é liberada e promovida, ou, por outro lado, onde é sedentarizada, limitada.
A primeira estratégia foi iniciar o atendimento às crianças em uma Igreja evangélica localizada no topo do Morro. A justificativa: as mães não podiam levar os filhos à UBS devido à “guerra” com o “inimigo”.
Após acerto com o pastor, agendei o primeiro atendimento e fui acompanhada pelo agente comunitário de saúde. Depois desse primeiro encontro, outros foram se sucedendo.
Figura 48 - Atendimento na igreja evangélica em 2010
Fonte: Acervo da pesquisa
Fui aprendendo o nome de cada um, conhecendo seu histórico de saúde e suas estórias. Trabalhava com instrumentos de anamnese utilizados em Medicina da Família e Comunidade como o genograma e o PRACTICE55.
Comecei a compreender as famílias que viviam e vivem no Morro56.
Problemas de saúde como doenças infecciosas, destacando parasitoses intestinais, micoses cutâneas, larva migrans (bicho geográfico) e tunga penetrans (pulga ou bicho de pé) emergiram como uma enxurrada. Por trás desses, falta de saneamento básico, água tratada, coleta de lixo. Porém, o que mais me apaixonou foram as crianças que mesmo vivendo sem acesso a políticas públicas e em condições de opressão, conseguem manter a alegria e a fé na vida.
55 Instrumentos para estudo da família utilizados por profissionais da estratégia saúde da família 56 Sendo o Morro local de ocupação a rotatividade de famílias é constante
As crianças não compartilham os enquadrinhamentos dicotômicos como homem/mulher, criança/adulto, maior/menor, opressor/oprimido; que interrompem o desejo enquanto incessante produção de vida. Aqui traçamos o desejo no devir- criança. O devir-criança se mostrou mais do que nunca como fonte criadora de energia, de vida.
Figura 49 - Fotografia de atendimento médico no ‘Morro de São Tiago’ para crianças que não possuem acesso a Unidade de Saúde devido briga entre gangues
Figura 50 - Atendimento na igreja evangélica no Morro São Thiago
Fonte: Acervo da pesquisa
Um grupo especial desenhado em nossa trajetória foram a Sociedade das Adolescentes Cabeças (SACS). A equipe observou que a população adolescente não possuía acesso à equipe de saúde e as iniquidades de acesso ultrapassavam a saúde, se estendendo ao lazer e a educação.
Problemas como gravidez não planejada, violência intrafamiliar, famílias desestruturadas, evasão escolar surgiam constantemente.
“Clara e Clarisse, ambas adolescentes encontravam-se no “Pé do Morro”. Na passagem da infância para adolescência, morrem algumas coisas e nascem outras (desterritorializam e reterritorializam). As “meninas” pegaram um atalho nas trilhas da vida através de linha de fuga: foram mães ainda na adolescência inicial. Nesse caso e em muitos outros nasceram muitas coisas, dentre elas o A.L.” (Diário de Campo, julho 2014).
A estratégia foi encontros semanais entre grupo de adolescentes (10 a 19 anos) do sexo feminino com a equipe. O grupo se denominou Sociedade das Adolescentes Cabeças (SACS). Temas relacionados à “vida cotidiana” dessas jovens são conversados e idéias geradoras surgem dessas rodas de conversa.
Os princípios doutrinários das SACS, eleitos por elas são: “Não usar drogas; estudar; não namorar homens que batem em mulheres, respeitar a família, não mentir para a Tia Tati.” As adolescentes passaram a participar de grupos de mulheres, realizarem atividades educativas com outros jovens, frequentar aulas de reforço, aulas de dança, recreação, cuidar de moradores de rua ir ao cinema e teatro, conhecer as universidades, dentre outros.
As horas que traçamos juntas, discutindo achados, debatendo dúvidas, nos desafiando, nos surpreendendo, exerceram em nós tal encanto que os encontros tornaram-se mais longos e frequentes.
As SACS existem há cinco anos e hoje são 60 jovens. As fundadoras do grupo, hoje com 17 anos são “diretoras”. Todas permanecem na escola e tem planos para o futuro dentre eles “Eu quero ser médica igual à Tia”, “ser enfermeira para
cuidar das pessoas”, “Morar no Canadá para aprender inglês”, “Estudar na UECE”,
dentre outros.
Figura 51 - Visita das SACS a UECE
Figura 52 - Trabalhando com amor
Fonte: Acervo da pesquisa
Figura 53 - Pré Sacs: traçando o futuro
Um novo grupo de meninas de sete a nove anos se formou. As “Pré- SACS” aguardam ansiosas completarem dez anos para ingressar nas “SACS”. Fazem questão de afirmar que “não gazeiam aula” e “nunca vão fumar a pedra”.
A preocupação com as relações entre SACS e família gerou a necessidade de aproximação da equipe com as famílias. Buscamos traçar um diálogo que resultou em ajuda mútua e co-responsabilização pela educação das adolescentes.
Mulheres e crianças nos levaram aos ‘temidos Ratos do Morro’. Eles são jovens da comunidade, alguns já maridos e pais. Com o passar do tempo, começaram a acompanhar os filhos até à consulta na Igreja evangélica. A maioria comparecia portando armas de fogo. Foi uma longa negociação, mas pactuamos que na Igreja eles não entrariam armados.
Percebi que o futebol seria uma ponte entre eu e os ‘Ratos do Morro’. Então, não titubeei: ‘vou jogar com vocês’. Uma posição me foi reservada: goleira. E,
quem poderia imaginar, em alguns finais de tardes, após atendimento, me aventurava no futebol.
Aos poucos, conquistamos a confiança de muitos e pude estender o atendimento a adultos e idosos atuando em outros turnos, também na Igreja evangélica. Conseguimos aumentar o número de visitas domiciliares e a cada dia estávamos, eu e a equipe de saúde, mais presentes na vida da comunidade.
Figura 54 - Visita domiciliar no Morro São Thiago
Figura 55 - Atendimento na UAPS
Fonte: Acervo da pesquisa
Figura 56 - Trabalho na comunidade
A inserção em um território marcado por práticas de violência necessita de ritornelos e uma produção desejante. Isso não significa que todas as situações sejam equivalentes; mas seu valor respectivo se deve ao grau de desorganização que elas suportam sem explodir e não à qualidade intrínseca da ordem que atestam. O eterno retorno ao território (ritornelo) 57, buscando a cada volta procurar
o território para si, alcançar o acesso. Procuramos alcançar o território, para conjurar o caos; habitamos o território para filtrar o caos e lançamos fora do território ou desterritorializamos rumo a um cosmo que se distingue do caos. (ZOURABICHVILI, 2004).