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3 PERCURSO NA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO

3.15 Oficinas de cartografia com os Ratos do Morro

O objetivo das oficinas de cartografia com os Ratos do Morro foi desconstruir47 e traçar as relações entre práticas de violência, acesso á saúde e a

vida desses jovens. Quem são os Ratos do Morro? Como vivem os Ratos do Morro? Como se relacionam com a família e comunidade? Como os Ratos do Morro compreendem ter saúde e acesso à esta?

Realizamos quatro oficinas de cartografia com os Ratos do Morro. As oficinas ocorreram no Morro São Thiago, pois, os Ratos “não podem sair com

segurança do Morro”.

Para ter acesso ao grupo e a confiança deste para realização das oficinas, inclusive a gravação dessas foram trilhados seis anos de conhecimento mútuo. Encontros entre homens-ratos-meninos e médica-mulher-pesquisadora.

3.15.1 1ª Oficina com os Ratos do Morro: singularidades e afetos

O objetivo da primeira oficina foi desconstruir-compreender (compreender- desconstruir) quem são os Ratos e quais são seus territórios. O trabalho no território na ESF nos deu diversas pistas. Durante seis anos traçamos afetos, entendendo estes como naturezas desconhecidas.

“[...] o afecto não é um sentimento pessoal, tampouco uma característica, ele é a efetuação de uma potência de matilha, que subleva e faz vacilar o eu [...].” (DELEUZE; GUATTARI, 1996).

Nos anos de trabalho e convivência com os Ratos do Morro surgiram diversas singularidades relativas a uma multiplicidade. Essas designam as "dimensões" intensivas de uma multiplicidade e a esse título podem igualmente ser nomeadas "intensidades", "afectos". (ZOURABICHVILI, 2004). Sua distribuição correspondeu, portanto, ao mapa afetivo de um agenciamento. (DELEUZE; GUATTARI, 1996).

Participaram 14 adultos jovens (entre 18 e 23 anos). A técnica utilizada foi a cartografia. Entregamos para o grupo canetas coloridas e o banner com o mapa da Barra do Ceará. As perguntas norteadoras foram: Quem são os Ratos e como eles vivem na Barra do Ceará?

Os jovens fizeram diversos desenhos e linhas no mapa decalque da Barra do Ceará. Localizaram o Morro São Tiago através de setas e desenharam linha no topo da duna separando o território do Morro e do Polo. Representaram pessoas jogando futebol no campo do Beira Rio48 e no topo da duna.

Durante essa cartografia dialogaram sobre quem são os Ratos, por que e como vivem restritos ao Morro, quais e como surgiram as barreiras e acesso a diversos territórios.

“Ser um Rato, meu que pergunta louca. Rato é gente, com coração. Do que adianta ser durão se o coração é vulnerável. Mas se aparecer os verme, agente fala sai da reta ou ganha o BO49 para a eternidade. Maldito, vagabundo, mente criminal? O quê? A vida é assim, ser Rato é assim.” (Erico Veríssimo, integrante dos Ratos do Morro).

48 Campo de futebol localizado na rua São Tiago, início do Morro São Tiago 49 Boletim de ocorrência

Em um devir não é o destino que é buscado, mas sim o próprio devir, ou seja, as condições de um relançamento da produção desejante ou da experimentação: um Boletim de ocorrência para eternidade.

“O que? Depósito de mágoa quem está certo é o Gabriel. Rato é Rato, Diabo é Diabo e agente não se chama de mano. A mesma coisa com os playboy da Aldeota. Vem com Nike pra quebrada para comprar droga. Odeio todos eles. Nós aqui e eles lá, entendeu?” (Dam Brown, integrante dos Ratos do Morro).

“A gente não quer ser coadjuvante de ninguém. Cabueta e judas não sobrevive aqui na quebrada. Medo pra favelado só no psicológico. Quem não quer brilhar, aparecer pro mundo? Ai mano, agente também tem essas vontades. Daí trabalhamos duro com a pivetada, na escola de futebol e no surf.” (Gabriel Garcia Marques, integrante dos Ratos do Morro).

As ‘vontades’ são desejos. Mas desejos em uma favela como o Morro encontram cortes traçados pela organização social. A comunidade possui regras definidas que muitas vezes cristalizam-se.

O ‘brilhar’, ‘aparecer para o mundo’ são singularidades sustentadas pelo desejo.O desejo aqui é produtor de realidades e traçou a possibilidade de produção, criação, invenção de modos e formas vitais.

Figura 40 - Mapa da Barra do Ceará com locais de referência destacados através

de recurso do programa Google Terra

Fonte: Google Terra

3.15.2 2ª Oficina com os Ratos do Morro: traçando caminhos e relações

“Dizemos que todo animal é antes um bando, uma matilha. Que ele tem seus modos de matilha, mais do que características, mesmo que caiba fazer distinções no interior desses modos. É esse o ponto em que o homem tem a ver com o animal. Não nos tornamos animal sem um fascínio pela matilha, pela multiplicidade. Fascínio do fora? Ou a multiplicidade que nos fascina já está em relação com uma multiplicidade que habita dentro de nós?” (DELEUZE; GUATTARI, 1996).

O objetivo foi traçar o modo como às relações se estabelecem cotidianamente, entre os Ratos e a comunidade do Morro das Goiabeiras.

Mantivemos a cartografia como método. O Mapa-decalque onde haviam localizado o Morro foi retomado. As perguntas norteadoras foram: Por quais caminhos os Ratos podem trilhar? Quem são as pessoas que fazem parte da vida de vocês?

“É quente, na rua não tá fácil não. Sair do morro é complicado. No gueto uns juntando inimigo, sempre tem um pra testar sua fé.” (Luiz Fernando Veríssimo, integrante dos Ratos do Morro).

Ser Rato do Morro marca uma prisão sem paredes e grades. Essa extende-se ao não acesso à escolas, lazer e saúde.

“A família é tudo. Falo de mãe, mulher e filho. Tem que cuidar. Pensou doido e se eu tô com meu filho no sofá, de vacilo desarmado. Era tragédia, de vacilo e sem chance. Quero muito bem a minha família. Quero que os meninos tenham outros caminhos, mais chance que eu.” (Rubem Alves, integrante dos Ratos do Morro).

“A Dra. Tati é da nossa família. É mistura de irmã, com mãe e amiga. Os meninos chamam de tia, mas ela não é tia de ninguém. Queria poder dar joia de ouro pra ela quando ela chega. Dar uns diamante. Só com respeito.” (Gabriel Garcia Marques, integrante dos Ratos do Morro).

A família traça máquina social e máquina desejante. A máquina desejante é um sistema de produzir desejos e a máquina social um sistema econômico e político de produção. Máquina desenjante que traça o desejo de que os filhos tenham mais chance de prosperar na maquina social capitalista50, onde ouro e

diamante traçam desejo de poder.

A figura evidencia o território vivo do Morro São Thiago, onde vivem os Ratos do Morro. A figura 18 retoma o mapa decalque com linhas de fuga (setas com dois sentidos) e linhas de cristalização (linhas espessas).

50 No capitalismo o Édipo tem como função a produção de unidades familiares, por meio da gestão da ‘má conciencia’. A territorialização já não interessa e sim a desterritorialização, possibilitada pelo traçar de uma subjetividade familialista (que nega o incesto) em que alguns estão permanentemente em falta devido a essa ‘má conciência’. É essa que permite regular as pequenas unidades desterritorializadas por meio da organização familiar. (LANCETTI, 2006).

Figura 41 – Rua São Tiago da Barra (Morro São Thiago): onde vivem os Ratos do Morro

Fonte: Acervo da pesquisa

Figura 42 - Mapa da Barra do Ceará com foco no Morro São Tiago e acesso ao

campo Beira Rio

3.15.3 3ª Oficina com os Ratos do Morro: saúde e acesso

A ideia aqui foi dialogar sobre como o grupo compreende ter saúde e ter acesso à esta.

Pesquisar e estar no rizoma são complicados (co-implicados).

“O rizoma diz ao mesmo tempo: nada de ponto de origem ou de princípio primordial comandando todo o pensamento; portanto, nada de avanço significativo que não se faça por bifurcação, encontro imprevisível, reavaliação do conjunto a partir de um ângulo inédito.” (DELEUZE; GUATTARI, 1996).

Optamos pelo traçado de uma técnica que se aproxima círculo de cultura proposto por Freire (1999). Para fazer a tematização atividade inicial, apresentamos diversas fotografias produzidas durante os seis anos de inserção no território51 e

material produzido pela fotógrafa Mel Lopes, que se prontificou a colaborar com a pesquisa (Anexos). Solicitamos que, não necessariamente em ordem, observassem todas as fotografias e identificassem questões relacionadas à ‘TER SAÚDE’. O objetivo foi o levantamento do universo vocabular no sentido de levantar a rede de significados que existem em torno de cada questão que trariam.

“A gente tem que acreditar que o sonho é possível e que o céu é o limite. Vendo essas fotos das crianças dá pra pensar que o tempo ruim vai passar.” (Gabriel Garcia Marques, integrante dos Ratos do Morro).

“Jogar bola, nadar no rio deixa agente feliz, dá tranquilidade para o espírito. Mas a vida louca. Vai vendo, meu pai morreu e nem deixaram eu ir no enterro do coroa não. Tava batendo uma bola, fiquei na mó neurose. Ai vieram me avisar.” (Rubem Alves, integrante dos Ratos do Morro).

“Meu sonho é um lugar gramado e limpo, tipo verde como o mar. Umas árvores com balanço, arraias, cercado de crianças. Ai eu penso, acorda truta! Morro é morro é stress concentrado.” (Gabriel Garcia Marques, integrante dos Ratos do Morro).

51 As fotografias foram produzidas durante os trabalhos na ESF e para serem utilizadas na oficina foram reveladas em e coladas em painel. Somente foram expostos os rostos daqueles cuja autorização se deu por escrito perante termo de consentimento e esclarecimento. Encontram-se em anexo no final desse trabalho.

Nesse momento foram marcados um turbilhão de de desejos: ter que acreditar, dá pra pensar, jogar bola, nadar no rio (...), meu sonho é um lugar gramado (...). O sonho traça esses desejos onde funções, tramas e personagens se repetem indefinidamente e agenciam-se como uma fábrica do Real-Social em contínua produção: máquinas desejantes.

No segundo momento, seguimos na identificação de palavras geradoras, estas que surgiram dos olhares e visões para enxergar as expressões-temas, em tarjetas produzidas individualmente52.

Foi o momento de questionar ao grupo: como podemos agrupar essas palavras em grupos comuns? O que há de diverso? Olhando para os temas produzidos, perguntamos: O que é ter acesso à saúde vivendo no Morro São Tiago?

Não conseguimos expressar todo o rizoma de conexões em palavras e cartografia, planejamos o quarto encontro: ir ao território.

3.15.4 4ª Oficina com os Ratos do Morro – Passeio peripatético

Mas não nos interessamos pelas características; interessamo-nos pelos modos de expansão, de propagação, de ocupação, de contágio, de povoamento. Eu sou legião. O que é um grito, independentemente da população que ele chama ou que ele convoca como testemunha? (DELEUZE; GUATTARI, 1996).

O objetivo da oficina foi traçar as dificuldades, em seu conceito ampliado, no território das Goiabeiras. O mapa decalque não estava suportando a força das linhas de fuga que surgiram.

Para análise de relações entre práticas de violência e o acesso à saúde propomos um “passeio peripatético” pela comunidade das Goiabeiras em um território incandescente de vida e sua ‘nomadologia’53. Passeio peripatético no

sentido etimológico da palavra que provém de peritatéõ: passear, ir e vir

52 Encontrei dificuldades nesse momento pois muitos jovens não foram alfabetizados (violência estrutural).

conversando. Dialogando com as pessoas, com o território e suas linhas de fuga e de cristalização. Marcando muitas coisas, desconstruindo outras.

Por que Ratos e não Lobos? Quais os caminhos e barreiras surgem ao “ser/estar” Rato do Morro? Como vocês se localizam nesse território? Muitas perguntas, muitas respostas: multiplicidades.

Dialogando com Lancetti (2006):

“Mas também busco com insistência as poiéticas que pulsam nos percursos de afirmação da vida, que navegam pelas águas do comum, sempre plural, sempre cooperativo. Comum e comunista, sempre defronte para o futuro.” (LANCETI, 2006, p. 17).

Saimos em caminhada com o propósito de movimentar a relação entre equipe, pesquisadora e jovens dos Ratos do Morro.

“Vamos levar vocês em um lugar que ninguém chega. Só nós e agora vocês. Tem uma visão da cidade toda, do mundo. A gente usa para vigiar o inimigo e também para tirar o estresse da mente.” (GABRIEL Garcia Marques, integrante dos Ratos do Morro).

Os jovens assumiram o traçado do percurso. Substituiram uma postura sedentária por uma nômade. As relações entre equipe e jovens traçaram novos caminhos. Estar com eles em movimento, em seu território marcou continência maior do que se passou entre quatro paredes.

Figura 43 - Caminhada realizada com os Ratos do Morro: máquinas desejantes

Fonte: Acervo da pesquisa

Figura 44 - Caminhada realizada com os Ratos do Morro na quarta oficina realizada

com o grupo