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3 PERCURSO NA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO

3.23 Acesso à comunidade: devires

“Escrever eurn caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer- se, e que extravasa qualquer materia vivível ou vivida. É urn processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido. A escrita é inseparavel do devir: ao escrever, estamos num devir-mulher, num devir- animal ou vegetal, num devir-molecula, até num devir-imperceptivel. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 6).

Devir é o conteúdo próprio do desejo: desejar é produzir devires. Seguindo Nietzsche, podemos dizer que o devir é aquilo que nos arrasta a vontade da potência. São as mutações e mudanças de ritmo que surgem e se impõe e as estratégias de vida que desenvolvemos para realizar nossa natureza. (SAIDÓN, 2008).

Confesso que desejei com todas as forças me inserir na comunidade das Goiabeiras. Esse desejo traçou a possibilidade de produção, criação, invenção de modos e formas vitais.

Em minha trajetória na comunidade das Goiabeiras, as crianças e jovens foram fundamentais para me darem forças a seguir na caminhada.

Figura 68 - Máquinas desejantes onde tudo funciona ao mesmo tempo

Fonte: acervo da pesquisa

A empatia e vínculo construído com as crianças, em particular do Morro, teve como uma das linhas de fuga a necessidade de continuar na luta, mantendo nosso corpo. Nosso corpo de mulher, de crianças que se transformavam e eram transformadas a cada dia, em cada relação, em cada prática de violência vivida.

“É que a questão não é, ou não é apenas, a do organismo, da história e do sujeito de enunciação que opõem o masculino e o feminino nas grandes máquinas duais. A questão é primeiro a do corpo — o corpo que nos roubam para fabricar organismos oponíveis.” (DELEUZE; GUATTARI, 1996).

O devir-criança propiciou o acesso. Se todos os devires são moleculares, inclusive o devir-criança, é preciso dizer também que todos os devires passam pelo devir- criança. As crianças não extraem suas forças do estatuto molar que as doma, nem do organismo e da subjetividade que recebem; elas extraem todas suas forças do devir molecular que elas fazem passar entre as idades. Crescer é um devir.

“Quando pensei em sair correndo vieram as crianças. A Rosa, a Margarida, a Violeta, o Cravo, o Jasmim [...] Correndo para me abraçar e gritando o ‘Tia’ que tanto amo ouvir. É engraçado, mas com eles do meu lado não tenho medo para subir. Sinto é muita coragem e vontade de trabalhar. A responsabilidade com eles é grande, pois, lembrando o Pequeno Príncipe, tu te tornas eternamente responsável por aquele que cativas. Somos responsáveis um pelos outros. Fomos mutuamente cativados. ” (Diário de campo, setembro 2013).

Figura 69 - Quem quer sorvete? Os sentidos e sabores do devir-criança

Figura 70 - Visita de alunos da Universidade Estadual do Ceará ao Morro São

Thiago

Fonte: Acervo da pesquisa

Figura 71 - Trabalho da equipe de saúde na comunidade das Goiabeiras

Figura 72 - Visita domiciliar da pesquisadora ao morro São Thiago: devir criança,

sendo todo mundo

Fonte: Acervo da pesquisa

Figura 73 - Crescer é um devir

Movimentando pelo devir-criança percebi que deveria ser mais uma na comunidade, ser como todo mundo. Assim poderia subir e descer, deslocar nas ruas e ruelas sem causar estranhamento. Ir e vir sem me fazer notar como médica ou pesquisadora propiciou meu acesso à comunidade. A percepção da comunidade era do devir-criança, do bloco em movimento. O imperceptível marcou a potência.

“A Dra. Já chega rodeada da molecada. Onde ela vai a molecada vai atrás. Não sei como a Dra. consegue tanto menino em volta. Mas se faz bem pela molecada e isso é importante. Os moleque não tem muita coisa nessa vida não. É pai noiado, irmão perdido.” (FRITJOF CAPRA, integrante dos Ratos do Morro).

Não é todo mundo que se torna como todo mundo e que faz de todo mundo um devir. É preciso para isso muita sobriedade, involução criadora.

“Devir não é atingir uma forma (identificaçâo, imitação, mimese), mas encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou de indiferenciação, tal que já nao seja possivel distinguir-se de urna mulher, de um animal ou de uma molécula: nao imprecisos nem gerais, mas imprevistos, não- preexistentes, tanto menos determinados numa forma quanto se singularizam numa população.” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 7).

O devir todo mundo foi aprendido nos sete anos atuando nas Goiabeiras, desenvolvendo a força de encontrar a zona de vizinhança, pois, não somos mais do que uma linha abstrata, ou uma peça de quebra-cabeça em si mesmo abstrata. Quando se sai de uma verdadeira ruptura, consegue-se ser como todo mundo. E não é nada fácil, não se fazer notar.

“[...] confundir-se com as paredes, eliminar o percebido-demais, o excessivo-para-perceber. Eliminar tudo que é dejeto, morte e superfluidade, queixa e ofensa, desejo não satisfeito, defesa ou arrazoado, tudo que enraíza alguém (todo mundo) em si mesmo, em sua molaridade. Pois todo mundo é o conjunto molar, mas devir todo mundo é outro caso, que põe em jogo o cosmo com seus componentes moleculares. Devir todo mundo é fazer mundo, fazer um mundo.” (DELEUZE; GUATTARI 1996, p. 233).

Figura 74 - Teias e rizomas no Morro São Tiago: devir-todo-mundo fotografando o

mundo e tecendo teias

Fonte: Acervo da pesquisa

Figura 75 - Devir todo-mundo, fazendo mundo através das sombras

Optamos pelo caminho de ativar, como propõe Fuganti (2008), a criança que há em todos, que é pura potência com capacidade para afetar e ser afetada, portanto, de agenciar encontros, já que são portadoras de vidas ativas que acreditam, sobretudo, na formulação de multiplicidades singulares movidas permanentemente, colorindo o mundo, com base em uma produção desejante.