• Nenhum resultado encontrado

3 PERCURSO NA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO

3.22 Compreendendo práticas de violência nas Goiabeiras

conta da complexidade do território existencial e de abrir as portas do acesso.

A inserção no território existencial não se deu por uma ruptura entre ‘mundos’, mas sim por produções desejantes que geraram um conjunto de relações no tecido social que foram se moldando e oscilando em sua produção de uma relação alienada e opressora, na qual pessoas se limitam a submeterem-se para dar continuidade ao que existe, para uma relação de expressividade e criação em que o singular presente numa coletividade produz novos processos.

Como Santos (2006) nos chama atenção, há muito que aprender com aqueles que traçam os processos. A articulação de tantos saberes será capaz de produzir verdadeiras zonas de produção. (SANTOS, 2006). Não existem mundos diversos entre profissionais da ESF e a comunidade e sim fronteiras, barreiras construídas por eles próprios pelas dificuldades dos trabalhadores desterritorializarem-se num território com tantos desafios.

3.22 Compreendendo práticas de violência nas Goiabeiras

Logo ao assumir a responsabilidade sanitária pela equipe Amarela fui alertada por colegas de trabalho e moradores da comunidade: “Dra. Tati, ninguém sobe o Morro. É perigoso demais [...]”.

“Ratos do Morro”, “Diabos do Polo” e “Gueto” emergiram no território como grupos rivais e imersos em práticas de violência. Esses grupos produzem no território captalistico territórios existenciais bem demarcados

As figuras 64 e 65 mostram a Barra do Ceará, destacando a “faixa de Gaza”, linha imaginária que divide o território que “pertence” aos Ratos do Morro e aos Diabos do Polo. Tal linha dura de fronteira imaginária é traçada no topo da duna.

Figura 64 - Fotografia por satélite da Barra do Ceará

Fonte: Google Eath

Figura 65 - Fotografia por satélite da Barra do Ceará com foco no Morro São Tiago

Como compreender essa lógica em produção? Parece simples falar em se colocar no lugar do outro e estar na comunidade com uma diversidade de vínculos com esse território. Compreendemos, no entanto, que é preciso pensar como pessoas portadores de direitos e deveres, portanto, de que forma, para além da questão da moral, as práticas de violência precisam ser assumidas e reconhecidas no território do Saúde da Família?

Se cada pessoa é capaz de marcar em si a vida pulsante dos territórios, será preciso descobrir formas de liberá-la, de um outro jeito, como nova possibilidade de viver. Toda uma microfísica do poder pode se revelar com origem das relações que serão estabelecidas. (FOUCAULT, 2012).

Seguem narrativas de algumas composições e decomposições nesse processo. Escrevemos narrativas de uma vida traçada no Morro. Nem sempre conseguimos revelar a vida das coisas, pois o ‘eu’ não foi desterritorializado em muitos momentos64.

“(...) revelar a vida nas coisas. Escrever não e contar as proprias lembranças, suas viagens, seus amores e lutos, sonhos e fantasmas. Pecar por excesso de realidade ou de imaginação e a mesma coisa: em ambos os casos e o eterno papai- mamãe, estrutura edipiana que se projeta no real ou se introjeta no imaginário.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 12).

Foi em uma tarde que presenciamos, pela primeira vez, uma “invasão do inimigo”. Estávamos no topo da duna esperando o sol se por. A fronteira entre o território do Morro e o do Polo é tênue e os tiros começaram em direção ao Morro. Todos correram para se proteger. Alguns buscaram proteção em uma trincheira feita de sacos de areia, outros entraram nos barracos. Os jovens dos Ratos buscaram armas e começaram a atirar em direção ao polo. O confronto bélico demorou mais de uma hora. No Morro, identificamos dois feridos: uma criança de sete e uma65

senhora de 78 anos (Dona Nicinha)66. Compreendi que o risco era iminente e que

seria um ‘pensamento mágico’ acreditar que ser médica me garantiria proteção nesses momentos de instabilidade, pois não possuímos controle sobre elas.

64 Minha formação é biomédica e o traçado da primeira e segunda pessoa para a terceira vem sendo um aprendizado.

65 O artigo indefinido so efetua sua potencia se o termo que ele faz devir e por seu turno despojado das caracterfsticas formais que fazem dizer artigos definidos o,a. (DELEUZE, 1997).

“Quando percebi o que estava acontecendo, minha reação foi pegar a Rosa pela mão e sair correndo. O problema era correr para onde? O som das balas vinha de todo canto, misturado com os fogos de artifício. O chamado inimigo eram os meninos que moram no polo e que provavelmente são meus pacientes ou tem familiares que são. Por estar em território dos Ratos eu também era um deles e não estava protegida contra as balas. Ser médica nessa hora não era uma blindagem [...]” (Diário de campo, dezembro 2013).

Outro confronto bélico que presenciei ocorreu no portão de uma escola da comunidade. Às vezes, ao concluir o atendimento no CUCA67, tenho o hábito de ir

até a escola no horário de saída da tarde para conversar com as mães, crianças e professoras. As conversas são informais e abordamos assuntos cotidianos como o que ocorreu na Rua da feira no sábado, o jogo de futebol no CUCA, as ações da equipe de saúde. Em uma ocasião, um automóvel que estava sendo perseguido parou em frente à escola na tentativa de “se proteger”. Os perseguidores dispararam vários tiros contra o automóvel. Nós, que estávamos na calçada, nos deitamos no chão protegendo as crianças e escutamos os disparos e os impactos dos projéteis no muro da escola. Felizmente, houve uma vantagem tênue da vida sobre a morte e ninguém se feriu, pelo menos fisicamente.

Algumas semanas depois, o Morro foi invadido novamente. Estávamos fazendo uma visita domiciliar e a reação da nossa equipe de saúde foi tirar as crianças que brincavam na rua e colocá-las em local mais seguro. Aguardamos, por cerca de três horas, um ‘sinal’ para sair do ‘abrigo’. As crianças ‘pareciam

acostumadas’, mas ‘meu coração batia forte’. Outras ‘invasões’ ocorreram durante

nosso trabalho no Morro. Aguardamos diversas vezes o ‘fim das balas’ para retornar á UAPS.

Visitas, encontros, desterritorializações e reterritorializações aconteceram. Vinte e nove adolescentes e adultos jovens integrantes dos ‘Ratos do Moro’ e ‘Diabos do Polo’ morreram em decorrência da violenta desde que assumi responsabilidade sanitária pela comunidade.

Em determinado período os confrontos acirraram-se e vivenciamos práticas de violência que geraram grandes angústias:

67 O CUCA da Barra é um espaço de lazer, educação e cultura que trabalha em parceria com as equipes de saúde da família na Barra do Ceará, Fortaleza (CE).

“Hoje me senti no inferno de Dante, aterrorizante. Queria que tivesse sido alucinação, mas era tudo vida real. Minhas pernas tremeram e minha vontade foi sair correndo. Correr para onde? Correr de quem? Eles estavam enterrados de cabeça para baixo.” (Diário de campo, dezembro 2013).

Figura 66 - Fotografia tirada pela pesquisadora em Florença (Itália): lembrança do

Morro

Fonte: Acervo pessoal

Mas a vida seguiu. O cotidiano, dia após dia é um constante processo de desterritorializações e reterritolializações. Retomando o pensamento de Deleuze e Guattari:

“(...) faça rizoma e não raiz, nunca plante! Não semeie, pique! Não seja nem uno nem múltiplo, seja multiplicidades! Faça a linha e nunca o ponto! A velocidade transforma o ponto em linha! Seja rápido, mesmo parado! Linha de chance, jogo de cintura, linha de fuga.” (DELEUZE; GUATTARI, 1995).

Um rizoma não começa nem se conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas. O trabalho em uma comunidade marcada por práticas de violência

assemelha-se ao rizoma. Para onde vai você? De onde você vem? Aonde quer chegar?

Morro, Polo e Gueto, quando analisamos práticas de violência, vivem em movimentos de dupla desterritorialização, porém gerando linhas de cristalização e arborificações dos jovens e suas famílias.

“Se eles invadem agente se defende. Se defende como pode. Só que depois é nossa vez. É a mesma coisa com o Gueto, com a rua Larga. Se invadirem e a gente deixar assim, assim por assim, sem vingar os irmãos eles vão tomar o Morro. É assim mesmo [...]” (Gabriel Garcia Marques, integrante dos Ratos do Morro).

É uma questão política também: por que tem tanta gente sem dinheiro? Por que existem tantas desigualdades e iniquidades? Essa disputa constante justifica a violência; isso justifica a tentativa desesperada de comprar, e para comprar tem que ter dinheiro; para ter dinheiro você tem que vender, e para vender você vai vender aquilo que te deixam. Muitas vezes a opção é vender maconha, crack, cocaína, etc.

“Queria ficar com ela. Ai minha mãe não tinha dinheiro pra comprar a eu queria tá com camisa polis (SIC). Peguei só um pouco do pó. Tia eu ia devolver depois ia devolver.” (Rubens Alves, integrante dos Ratos do Morro).

Observando o sexto teorema de Deleuze, a desterritorialização é sempre dupla e permite gerar uma força desterritorializante. A possibilidade de ruptura com as práticas de violência cristalizadas poderia surgir a partir desse teorema (dessa força desterritorializante):

“Sexto teorema: a dupla desterritorialização não simétrica permite determinar uma força desterritorializante e uma força desterritorializada, mesmo que a mesma força passe de um valor ao outro conforme o "momento" ou o aspecto considerado; e mais do que isso, o menos desterritorializado sempre precipita a desterritorialização do mais desterritorializante, que reage mais ainda sobre ele.” (DELEUZE; GUATTARI, 1996).

Porém, houve um momento na comunidade das Goiabeiras que o rizoma arborificou-se e o sexto teorema que poderia (poderá) ser emancipador foi cristalizado pelas práticas de violência:

“Cara guerreiro sempre fiel com os parceiros colava na favela o tempo inteiro representava todos os irmãos, os cria da favela guerreiros. Partiu deixando saudades pra todos os irmãos -pois na favela ele era querido com os morador era respeitado conseitoava dentro da favela e a molecada para ele dava valor. No dia surgiu uma noticia triste que tinham derrubado o nosso irmão que ele tava num lugar na hora errada dando bobeira e veio a traição [...]” (Carlos Drumond de Andrade, integrante dos Diabos do Polo).

Mortes prematuras, famílias desestruturadas por linhas de cristalização. Nesses momentos linhas de fuga não traçam movimento e vida, mas, morte, finitude e estagnação.

Como romper essa estagnação? Como reinstalar o movimento criador na comunidade paralizada pelas práticas de violência?

A estrutura social, a identificação psíquica deixam de lado demasiados fatores especiais: o encadeamento, a precipitação e a comunicação de devires que desencadeiam multiplicidades.

Quando dizemos devir, não nos referimos somente à evolução de idéias ou da transformação dos corpos ou de suas representações ao longo do tempo. Falamos em devir para nos referirmos à transmutação radical de valores que inaugura um pensamento e que traduz na criação de territórios existenciais inéditos. (SAIDÓN, 2008).

Uma das características essenciais do desenho de multiplicidade é a de que cada elemento não para de variar e modificar sua distância em relação aos outros.

A figura 67 é um desenho realizado por criança de oito anos residente no Morro São Thiago. O desenho foi realizado durante consulta na UAPS. Destaca-se a riqueza de detalhes e multiplicidades.

Figura 67 - Desenho feito por criança de oito anos residente no Morro de São Tiago

Fonte: Acervo da pesquisa

O desenho marca um ritornelo.

"O ritornelo vai em direção ao agenciamento territorial, ali se instala ou dali sai. Num sentido genérico, chama-se ritornelo todo conjunto de matérias de expressão que traça um território, e que se desenvolve em motivos territoriais, em paisagens territoriais...” (DELEUZE; GUATTARI, 1995).

Ao observar o desenho podemos compreender rupturas e as relações entre os territórios dos “Ratos do Morro” e dos “Diabos do Polo”. Em “guerra”, mas relacionando-se e com diversos elementos em comum.

Práticas de violência são evidenciadas através da troca de tiros, violência policial, mortes, poças de sangue, indivíduos sendo detidos e armas sendo arremetidas. As crianças soltando pipas (arraias) representam a sinalização da chegada da polícia e aviso a pesquisadora que pode ‘subir o Morro’, também, podem ser identificadas como linhas de fuga. O movimento, linhas de fuga no devir- criança.

“Uma criança no escuro, tomada de medo, tranquiliza-se cantarolando. Ela anda, ela para, ao sabor de sua canção. Perdida, ela se abriga como pode, ou se orienta bem ou mal com sua cançãozinha. Esta é como o esboço de um centro estável e calmo, estabilizador e calmante, no seio do caos. Pode acontecer que a criança salte ao mesmo tempo que canta, ela acelera ou diminui seu passo; mas a própria canção já é um salto: a canção salta do caos a um começo de ordem no caos, ela arrisca também deslocar-se a cada instante. Há sempre uma sonoridade no fio de Ariadne. Ou o canto de Orfeu.” (DELEUZE; GUATTARI, 1996).

O problema mais geral não é a comunidade ‘ser violenta’, mas a experiência das práticas de violência. As práticas de violência traçadas como princípio diferencial ou de diferenciação em que cada grau designa um modo de existência e de pensamento.

“Seu sentido real é que nunca podemos falar antecipadamente para toda a experiência - a menos que lhe falte sua essencial variação, sua inerente singularidade e lhe apliquemos um discurso excessivamente genérico a fim de não deixar o conceito e a coisa numa relação de indiferença mútua. É preciso, portanto, um tipo de conceito especial: um "princípio plástico", a exemplo da Vontade de Potência.” (ZOURABICHVILI, 2004).

O que define uma situação é uma certa distribuição dos possíveis, o recorte espaço-temporal da existência (papéis, funções, atividades, desejos, gostos, tipos de alegrias e dores etc.). Compreender que as práticas de violência estão presentes e que existem linhas de fuga que são disparadas a mercê de nossa vontade, talvez, seja um dos primeiros passos para romper com a imobilização frente a essas.