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3 PERCURSO NA PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO

3.6 Práticas de violência: De que estamos falando?

No Brasil, o debate sobre práticas de violência ganhou força há cerca de quatro décadas e foi suscitado pela esquerda e pelos primeiros defensores de direitos humanos.

Compreendemos que essas práticas foram historicamente construídas em um Brasil ex-colônia portuguesa, cujas bases socioeconômicas e políticas repousaram na grande propriedade rural, monocultura e exploração extensiva da força de trabalho escrava, alimentada pelo tráfico internacional de negros forçosamente desenraizados.

No final da ditadura militar, embora as práticas de violência fossem um fenômeno endêmico na sociedade brasileira, sua visibilidade ganhou foro público durante a transição da ditadura para a democracia. O fim do regime autoritário havia deixado mostras de que a violência institucional sob a forma de arbítrio do Estado contra a dissidência política não se restringia à vigência do regime de exceção. Há muito, desde os primórdios da República, trabalhadores urbanos pobres eram vistos e tratados como ‘classes perigosas e passíveis de rígido controle social. (ADORNO, 2002).

Ao optarmos por problematizar práticas de violência e suas relações com o acesso á saúde no território Barra do Ceará (Goiabeiras) compreendemos que nesse território se constitui uma diversidade de forças formadoras de um emaranhado de relações e de poderes perpassados em meio ao que acontece nas vivências territoriais.

Nesse território, que se constituem em relações, há devires (o novo a ser criado). Consoante Deleuze e Parnet (1998, p. 10), “devires são geografia, são

orientações, direções, entradas e saídas.” É daí também que se extrai o pensamento de que indivíduos ou coletivos são feitos de linhas, de naturezas bem distintas. (DELEUZE; PARNET, 1998).

A palavra violência vem do latim e significa: 1) tudo o que age usando a força para ir contra a natureza de algum ser (é desnaturar); 2) todo ato de força contra a espontaneidade, à vontade e a liberdade de alguém (é coagir, constranger, torturar, brutalizar); 3) todo ato de violação da natureza de alguém ou de alguma coisa valorizada positivamente por uma sociedade (é violar); 4) todo ato de transgressão contra aquelas coisas e ações que alguém ou uma sociedade define como justas e como um direito. (MINAYO, 2011).

Uma análise consistente não pode pretender dar conta do conceito de práticas de violência reduzindo-a simplesmente a um determinado fator causal. A elaboração conceitual de violência é um exercício intelectual difícil, as dificuldades provêm do fato de se tratar de um fenômeno da ordem do vivido.

Estudar esse emaranhado de linhas, a complexidade de relações que se estabelecem tem ligação com o entendimento da micropolítica que opera nos territórios, nos espaços de práticas de violência e produções na ESF.

Se a dificuldade de definição é bastante grande, muito dificilmente se consegue uma conceitualização suficientemente abrangente, muito mais complicado é interpretar a causalidade da violência. A interpretação de sua pluricausalidade é um dos problemas principais que a abordagem do tema apresenta.

Propomos nessa revisão da literatura a análise do conceito de práticas de violência sob a perspectiva de diferentes autores.

Compreender práticas de violência implica também a necessidade de compreender a natureza do ‘Ser humano’. Esta compreensão vem sendo objetivo de filósofos há milênios, e faremos apenas um breve registro.

Recentes investigações nos campos da biologia, da psicologia, da genética, da neurofisiologia, bem como novas interpretações no campo das humanidades são fundamentais para se obter uma compreensão sócio filosófica do ser humano.

Igualmente importante é conhecer os mecanismos que resultam não apenas na transformação do biológico pelo social como na afirmação do biológico como dimensão constituinte do social, sobretudo agora que correntes modernas das ciências naturais têm mostrado que a consciência humana possui potenciais praticamente ilimitados para se desenvolver e conhecer o mundo. Da mesma forma, não se pode negar que as peculiaridades individuais manifestam as reações dos seres humanos aos estímulos externos. Nada disso, porém, é justificativa plausível para o viés tendencioso de se tomar cor, raça e outros atributos biológicos como determinantes das práticas de violência. (MINAYO; SOUZA, 1998).

Consonante com Chauí, violência é um ato de brutalidade, sevícia e abuso físico e/ou psíquico contra alguém e caracteriza relações intersubjetivas e sociais definidas pela opressão, intimidação, pelo medo e terror. (CHAUÍ, 2007). Esta estudiosa analisa as práticas de violência na perspectiva da ética e da virtude.

Numa perspectiva geral, a ética procura definir, antes de tudo, a figura do agente ético e de suas ações e o conjunto de noções ou valores. O agente ético é pensado como sujeito ético, isto é, como um ser racional e consciente que sabe o que faz, como um ser livre que decide e escolhe o que faz, e como um ser responsável que responde pelo que faz. A ética se opõe a práticas de violência. (CHAUÍ, 2007).

Um conjunto heterogêneo de teorias se refere às raízes sociais das práticas de violência. Explica-se o fenômeno como resultante dos efeitos destrutivos dos acelerados processos de mudança social, provocados, sobretudo, pela industrialização e urbanização. As transições sociais, os movimentos de industrialização provocam fortes correntes migratórias com destino às periferias dos grandes centros urbanos, onde as populações passam a viver sob condições de extrema pobreza, desorganização social, expostas a novos comportamentos e sem condições econômicas de realizarem suas aspirações. (MINAYO; SOUZA, 1998).

A ocorrência de mortes violentas nos espaços urbanos vem sendo associada a alguns fatores existentes nesses ambientes, como concentração populacional elevada, desigualdades na distribuição de riquezas, iniquidade na saúde, impessoalidade das relações, alta competição entre os indivíduos e grupos sociais, fácil acesso a armas de fogo, violência policial, abuso de álcool, impunidade,

tráfico de drogas, estresse social, baixa renda familiar e formação de quadrilhas. (YUNES, 1994; MATOS, 2013).

Migração interna, favelização, condições precárias de vida, desemprego, acesso reduzido à escolaridade seriam geradores de práticas de violencia. Entretanto, ao reduzir violência somente a crime e delinquência, este tipo de análise torna-se reducionista, pois não leva em consideração a violência estrutural, a violência do Estado e mesmo a cultural que quase sempre aparecem naturalizadas.

Suas manifestações são aprovadas ou desaprovadas, lícitas ou ilícitas, segundo normas sociais mantidas por aparatos legais da sociedade ou por costumes naturalizados. (MINAYO, 2003; MINAYO; SOUZA, 1998). Práticas de violência em suas manifestações mais atrozes e mais condenáveis geralmente ocultam situações e condições aparentemente menos escandalosas, por se encontrarem prolongadas no tempo e mimetizadas por ideologias ou instituições de aparência respeitável. (CHESNAIS, 1981).

No seu sentido material, o termo parece neutro, mas quem analisa os eventos violentos percebe que eles manifestam conflitos de autoridade, as disputas de poderes e a busca de domínio e aniquilamento do outro. Tais conflitos tendem a ocorrer em contextos de rupturas nas hierarquias sociais tradicionais, impulsionadas pelo crescimento das práticas de violência (incluindo o crime violento) e seu impacto sobre as formas de socialidade e sociabilidade anteriormente dominantes.

As análises psicológicas das práticas de violência refletem, à sua maneira, as contradições existentes na realidade: o crescimento das tendências anti- sociais, o isolamento, o medo coletivo e individual, o estado de intolerância, a alienação dos indivíduos e a espetacularização dos dramas particulares. (MINAYO; SOUZA, 1998)

A perda de centralidade dos movimentos sociais ocorrida nos últimos anos também é apontada como influente no crescimento da violência urbana. Entre as causas desta perda encontram-se a escassez de recursos financeiros para as políticas urbanas, as estratégias da reestruturação produtiva com os seus impactos no “mundo do trabalho”, a crise do interclassismo e o agravamento da desigualdade

social. A agudização da violência é o deslocamento, contra os mais pobres, da fronteira entre a legalidade e a ilegalidade.17 (RIBEIRO, 2011).

Contudo, se é verdade que pobreza não gera necessariamente práticas de violência e que os bairros populares e as favelas não devem ser estigmatizados, também não se deve desprezar o fato de que evidências empíricas apontam tais áreas como aquelas em que se concentra a maior proporção de vítimas de violências, expressas pelas maiores taxas de homicídios e pelas baixas condições de vida. (BARATA; RIBEIRO et al., 1988). Sem discordar da premissa de que o aumento dos níveis de paupérie e de miséria constitui fator importante para o crescimento da violência, observamos que esta articulação tem gerado uma criminalização da pobreza.

Vários estudos no país têm demonstrado que a violência afeta a população de modo desigual, gerando riscos diferenciados em função de gênero, raça/cor, idade e espaço social. O grupo mais intensamente atingido pela violência constitui-se de adolescentes e adultos jovens do sexo masculino, pobres e negros. (MINAYO; SOUZA, 1993; BRILHANTE, 2013). O ‘crime organizado’ e a ‘guerra contra as drogas’ são apontados como causas, porém tratam-se da ‘ponta de um iceberg’.

A história da colonização do Brasil, da escravidão, da iniquidade perpetuada desde a invasão portuguesa em terras latinas explica essa exposição desigual.

A divisão internacional do trabalho significa que alguns países se especializam em ganhar e outros em perder. Nossa comarca no mundo, que hoje chamamos América Latina, foi precoce: especializou-se em perder desde os remotos tempos em que os europeus do renascimento se aventuraram pelos mares e lhe cravaram os dentes na garganta. (GALEANO. 2008).

Um dos pontos mais perversos do ‘crime organizado’ é a forma de inclusão de jovens pobres em quadrilhas de narcotráfico produtoras de verdadeiras guerrilhas urbanas. Normalmente, eles se engajam visando uma oportunidade de acesso aos bens econômicos e de consumo. A entrada de um indivíduo no mundo

17 Vertente de um caminho teórico que aponta a dinâmica do real na efervescência de uma sociedade: materialismo histórico.

do crime geralmente se dá em uma conjuntura de crescente exclusão social, cultural e moral de grupos populacionais inteiros.

Segund análise de Soares (2002), existem duas moedas complementares usadas na sedução dos jovens pelo crime: uma material e outra simbólica. A primeira é trivial e representa a necessidade percebida do acesso aos bens de consumo. A segunda é fundamental e frequentemente subestimada pelos estudiosos e responsáveis pela formulação de políticas de segurança:

Quando o tráfico oferece ao menino uma arma, dá a ele não apenas um instrumento de operação econômica, mas um instrumento de construção subjetiva de afirmação de si mesmo, de recuperação de sua visibilidade, de imposição de sua presença social. (SOARES, 2002, p. 43).

A violência que ele produz e reproduz a partir daí tem íntima relação com a violência do não-reconhecimento que o acompanha desde o nascimento.

Vivemos em uma sociedade que foi feita e existe para pessoas que têm o que vender ou têm como comprar. Os miseráveis, os pobres, os favelados, esse enorme grupo de pessoas e que está na periferia das cidades ou na periferia da alma da gente, não tem o que vender e como comprar, e por isso ‘não são’ A maioria dessas pessoas podem não entendem isso com clareza, mas sentem com intensidade que vivem e que suas vidas estão excluídas de um sistema que não existe para eles. (LANCETTI, 2012).

Dialogando com Kroef (2010):

Este processo de inter-relação e de adequação parcial das identidades pessoais e das identidades sociais funciona através do reconhecimento e da reafirmação que delimitam, simultaneamente, os iguais como aqueles que ocupam a mesma posição e um mesmo lugar, enquanto os diferentes são posicionados como os outros. (KROEF, 2010, p. 6).

Minayo (2003) conclui que as formas de delinquência organizada, reconhecidas pela população como a própria violência, presentes no Brasil e em outros países da América Latina nas últimas décadas, são subprodutos da esfera macropolítica e denunciam a decomposição dos sistemas sociais e dos aparatos formais vigentes que estruturam os Estados contemporâneos. (MINAYO, 2003).

Minayo e de Souza (1998) dialogam com tais teorias questionando que não são apenas os problemas de natureza econômica, como a pobreza, que explicam a violência social, embora saibamos que eles são fruto, são causa e efeito

e, ainda, elemento fundamental de uma violência maior que é o próprio modo organizativo-cultural de determinado povo (MINAYO; SOUZA, 1998). Ao escolher os que "são" e os que "não são", os que “tem” e os que “não tem” a partir das leis de propriedade, a sociedade revela sua violência fundamental, a violência estrutural. (MINAYO; SOUZA, 1998).

Apesar dos inúmeros estudos sobre o assunto, alguns equívocos ainda estão presentes no traçado do cotidiano social. Em geral, estes equívocos surgem a partir de uma atitude reducionista frente à questão das práticas de violência. Um dos exemplos que limitam a compreensão se refere ao fato de muitos situarem-na apenas no campo do crime, ou seja, o crime é visto como o todo e não como a

“ponta de um iceberg”. Os crimes, enquanto delitos cometidos contra a lei revelam

com concretude a existência da violência, uma vez que podem comprometer a vida de pessoas e de grupos. Porém, a base do iceberg cujo crime é o ápice abarca outros níveis de práticas de violência que necessariamente não se articulam. (MINAYO, 2003).

Outra limitação à compreensão holística das práticas de violência é menosprezar que ela se nutre e se reproduz no cenário de grandes interesses econômicos, de envolvimento dos mais diferentes agentes sociais, gestando-se dentro de instituições diversas, a margem ou a sombra da ação política transformadora. (MINAYO; SOUZA, 2011).

No caso da América Latina as práticas de violência tendem a evidenciar persistente e vigorosamente na sua expressão instrumental, como recurso usado por muitas pessoas e grupos para conquistar mercados de bens, poder. De um lado, ela manifesta a defasagem entre oferta de condições e escassez de espaços em uma sociedade cada vez mais competitiva e desigual. (MINAYO, 2003). E também vocaliza um ‘grito de socorro’ e um ‘grito de alerta’. Podemos tentar entende-la como a voz dos sujeitos não reconhecidos?

A inclusão e destaque das práticas de violência como problema de saúde aconteceu em virtude de as mortes e traumas físicos e emocionais virem aumentando, conforme vários estudos realizados e, nas últimas décadas a necessidade de um maior envolvimento da Atenção Primária à Saúde, por meio da ESF, Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), Centro de referência em assistência social (CRAS), dentre outros. (BRILHANTE, 2013, p. 211).

Para concluir esse exercício do estudo do estado da questão, uma sinalização bioética. A partir de uma frase de Michel Foucault: “o homem permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivente e, além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal em cuja política está em questão a sua vida de ser vivente”.

O filósofo Giorgio Agamben propõe uma releitura atual dos termos gregos. Para ele, a palavra zoē deve ser interpretada como vida nua, a vida humana

desamparada e ameaçada pelo biopoder. Sua interpretação diz respeito a todos aqueles excluídos da comunidade política e das políticas dos direitos humanos, possuindo o estatuto de Homo Sacer; do latim, homem sacro. Esta é uma metáfora18que o autor utilizou para interpretar uma condição humana atual. Na

antiguidade latina, homem sacro era aquele que o povo condenava à morte por um delito, mas não podia executá-lo. Embora, quem o matasse não fosse julgado por homicídio, pois em um texto do direito romano arcaico encontrava-se escrito: “se alguém matar aquele que por plebiscito é sacro, não será considerado homicida.” (SILVA NETO, 2013).

Qual o sentido pedagógico que o pensamento de Agamben nos remete como um paradoxo? Ainda existem hoje homens sacros? Frequentemente se depara com essa imagem metafórica no cotidiano; são os nossos párias, os sem- teto marginalizados que vagueiam nas ruas das cidades, também são os grupos de grupos marginalizados como os menores infratores de pequenos delitos que encarcerados em instituições estatais não têm possibilidades de recuperação ou grupos de adictos de drogas ilícitas que perambulam nas praças ou periferias das grandes cidades. O que se faz com eles? Simplesmente, como o Homo Sacer da Roma antiga nós os eliminamos “naturalmente” da nossa vida, da nossa cultura, da nossa sociedade. Será que não temos nenhuma responsabilidade ética em face dessa situação? A banalidade do fato transformou a nossa sensibilidade ética? (SILVA NETO, 2012).

O mundo da Modernidade se tornou insustentável. O ponto central não é imperativo da técnica em que a economia se tornou subordinada, mas dirigir nossa vida a partir de novos valores que ensejem uma diferente forma de pensar um porvir

quando o social deixará de ser residual e à tecnologia será atribuído um papel histórico de beneficiar o maior número de seres humanos. (SANTOS, 2000).