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A clínica Fonoaudiológica nas demências: influência da Neuropsicologia Cognitiva

As publicações sobre a eficácia da reabilitação fonoaudiológica com pacientes demenciados é recente. Os primeiros trabalhos americanos vieram em meados de 1980 (BOUGEOIS, HICKEY, 2009). Segundo o relatório técnico

43 da American Speech-Language-Hearing Association, a literatura não indicava ou não visualizava possibilidades terapêuticas, antes de 1975, para quadros progressivos, como a demência (ASHA, 2005). Na década de 70, testes

começaram a ser aplicados em pacientes com DTA. O National Institute on Aging e o National Institutes of Mental Health iniciaram, no mesmo período,

estudos longitudinais para caracterizar as desordens cognitivas em diversos tipos de demências. Note-se, já aqui, a referida “complementaridade” a que me referi acima. Espelhados nos estudos da memória humana, fonoaudiólogos buscavam demonstrar que os pacientes com DTA tinham prejuízo maior na memória explícita (conceitos, palavras) e na memória de trabalho, especialmente procedimentos motores. Reitero: nada de novo aparecia no horizonte. Com base nos resultados previstos, os estudos concentraram-se em propostas terapêuticas para compensar déficits em sistemas de memória específicos. Por exemplo, tarefas de nomeação eram enfatizadas na estimulação de pacientes em estágio inicial de DTA, quando a anomia é o principal sintoma.

Somente em 1991, a American Speech-Language-Hearing Association (ASHA) publicou um guia delimitando o papel do fonoaudiólogo junto a esses pacientes. A versão mais recente desta publicação (ASHA, 2005) defini que o fonoaudiólogo pode :

1. Identificar pessoas com risco de demência, a partir da incidência e prevalência da demência;

2. Avaliar, selecionando abordagens diagnósticas para desordens comunicativas;

3. Intervir de modo direto com os pacientes e de modo indireto com cuidadores;

4. Aconselhar cuidadores sobre a natureza da demência e seu curso; 5. Colaborar com cuidadores e profissionais para estabelecer planos de

estratégias comunicativas;

6. Coordenar a equipe de profissionais e gerenciar um caso de demência; 7. Ensinar ou supervisionar outros fonoaudiólogos;

8. Defender serviços de atenção aos pacientes, como um perito; 9. Pesquisar problemas de comunicação e cognitivos nas demências

44 O fonoaudiólogo é, ainda, chamado a responder nas esferas da prevenção19. Parte-se do pressuposto de que “ofertas estratégias cognitivas” como o treino da memória, associada à vida social ativa sejam fontes privilegiadas na prevenção de demências (BRUM et. al., 2009).

Quanto ao tratamento, afirma a ASHA, fonoaudiólogos americanos discutem se a meta é a redução dos sintomas de memória, através estimulação da linguagem, ou deve-se espera a estabilização dos déficits cognitivos. É certo que a literatura sobre a eficácia dos programas de estimulação é escassa. Pergunta-se: “há melhora do quadro cognitivo quando se espera o avanço da doença”? O foco permanece, assim, dirigido para a elaboração dos programas de estimulação e de uma melhor caracterização da população com demência. Isso porque, acredita-se, a estimulação deve considerar o sistema de memória mais preservado de acordo com o grau de severidade e tipo clínico20.

Duas diretrizes são primordiais nesses programas de estimulação direta. O programa de estimulação deve:

1. incidir nos sistemas de memória mais preservados, visando a independência desses sistemas em relação aos outros deficitários. No caso da DTA, valorizam-se os sistemas de memória implícita (memória de procedimento, capacidade de condicionamento), que permanecem preservados mesmo com o avanço da doença21.

2. A técnica comportamental de pareamento estímulo-resposta para impedir erros – isso favorece, como se diz, engramas neurológicos mais fortes para a resposta-alvo (CLARE et. al. 2000; ASHA, 2005).

Entende-se, então, que o trabalho do fonoaudiólogo seja o de estimular a memória, já que ele é dirigido pela máxima: “estimular o cérebro com atividades que exijam atenção, concentração e pensamento lógico, o que

19 Médicos indicam como fatores preventivos da DTA: bom nível educacional, tarefas que demandam concentração e ativam o cérebro; atividades físicas, dietas ricas em vitamina E; consumo moderado de vinho e café (BRYAN, MAXIM, 2006).

20 Além disso, deve-se calcular o prognóstico e definir se o paciente terá benefício com uma intervenção direta. Considera-se para a intervenção direta aspectos como a respostas aos sinais, habilidade para ler, conversar e seguir ordens simples. Em outra situação, o terapeuta pode decidir por intervenções indiretas, ou seja, elabora planos direcionados aos cuidadores para facilitar a comunicação e a rotina em casa (ASHA, 2005).

21 Com efeito, pacientes com DTA têm dificuldades para recordar eventos, mas conseguem aprender novos comportamentos.

45 contribui para o aumento da densidade sináptica cerebral” (SOUZA e CHAVES, 2005, p. 15) – mesmo frente ao que propõe Vinson. Ela enfatiza a necessidade de tratamento por uma equipe multidisciplinar em que, ao fonoaudiólogo, caberia “maximizar a comunicação do paciente, ensinar estratégias para a comunicação entre família e paciente, garantindo a rotina e monitorar as mudanças comunicativas com o progresso da doença” (VINSON, 2001, p. 43).

Entendo que esta direção clínica, orientada por uma hipótese que dá relevo à relação memória X linguagem X demência na Neuropsicologia - e que é incorporada pela Fonoaudiologia – torna inespecífica a prática fonoaudiológica porque ela recua a linguagem e o sujeito na doença, seja da reflexão teórica, seja como da prática clínica. Assumida como domínio dependente e externo (matéria observável) ela, a linguagem, perde importância, assim como a ciência da linguagem22. Não é sem motivo, portanto, que a comunicação ganha a cena nas propostas terapêuticas. Ali, a linguagem é naturalizada ou, quando muito, reduzida a um código formal e estável. Estratégias como “falar frases curtas”, “repetir palavras” são assumidos como estímulos suficientes nesta clínica que tem escuta apenas para a doença e sua progressão.

Pode-se dizer que “a queixa de dificuldade de memória” não chega a ser, por isso, recolhida (pelo médico ou pelo fonoaudiólogo) – o paciente é indivíduo como portador (ou não) de sinais da doença: mais decisivos são os resultados dos testes neuropsicológicos. A relação sujeito-sintoma não pressiona esta abordagem das demências: não há espaço, como procurei mostrar, para o sujeito, nem para sua relação com a linguagem. A clínica perde a chance de considerar os efeitos que a demência produz no falante e no clínico e, com isso, de distinguir essa clínica de outras: o fonoaudiólogo, como disse, fica aderido à noção de memória como fonte do sintoma na linguagem e distante daquilo que deveria fundar sua prática.

22 Cabe mencionar a esse respeito que ela pode ser elevada a um estatuto mais digno de “funcionamento autônomo” (como quiseram Saussure, Jakobson e Chomsky) e nesse caso, ela não seria função do orgânico e/ou da cognição.

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