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A senhora Lili: um olhar psicanalítico sobre as demências

3.1. O atendimento de Lil

Segundo o autor, Lili, aos 68 anos, foi encaminhada pelo hospital

Salpêtrière, para o Centro de Atendimento de pessoas com diagnóstico de

doença de Alzheimer, logo após o falecimento de seu marido. Os encontros clínicos - “trabalho relacional” - ocorriam entre a idosa, Messy e Jacqueline e eram iniciados pela rotina: a paciente pegava seu tapete para deitar e iniciar uma série de relaxamento (o objetivo declarado era melhorar os sintomas corporais, como a rigidez presente nos quadros degenerativos). Em seguida, Lili pintava em folha de papel com “verbalização livre” (idem, ibidem, p. 51). No relato, nota-se que a rotina inicial de deitar no tapete para relaxamento passa por oscilações – a paciente esquece do tapete e hesita quando recebe a instrução para buscá-lo; em outra sessão, fica sentada no tapete como os terapeutas; na 11ª. sessão, o autor nota que “claramente Lili demonstra quenão

85 deseja se deitar” (idem, ibidem, p. 61). Diferente disso, era a insistência nos desenhos e comentários que os acompanhavam – aconteciam sistematicamente no estilo de uma narrativa. A segunda parte desses encontros era, sem dúvida, mais significativa para Lili, que queria falar, através dos seus desenhos, já que estava silenciada ou com uma fala pouco encadeada.

Antes desses encontros no Centro Dia, Lili havia sido atendida pela arte- terapeuta – ela era uma referência e um lugar de identificação, diz Messy. Por exemplo, na 7ª. sessão, ela olha para suas unhas curtas e diz que prefere as compridas de Jacqueline. Na 30ª. sessão, depois de ter perdido peso (para grande preocupação da filha e do médico), a paciente diz que decidiu emagrecer para ficar parecida com Jacqueline: “ser delgada como ela”. A entrada, nesses encontros, de um terceiro (o psicanalista, um homem) foi relacionada, por Messy, às três cores (ou três formas) que sempre apareciam nos desenhos de Lili. Na primeira sessão, após pintar seu desenho, ela diz: “vejo vocês dois, eu estou por fora” (idem, ibidem, p. 54). Sobre isso, diz Messy, que toma (diz ele) a insistência do “três” como significante: “estar por fora, é também não estar sabendo das coisas ou é fantasma da união entre J.P-F e J. M., da qual ela está excluída” (idem, ibidem, p. 54).

No prólogo, Périssé-Fichot faz a observação de que os desenhos da paciente eram marcados por linhas retas (referidas a “masculino”) e curvas (referidas a “feminino”). Frente aos desenhos seguidos das evocações “enigmáticas” da paciente, ela pergunta:

O que é que Lili podia perceber do outro, masculino? - um pai morto na guerra, e que não conheceu;

- um irmão mais moço, filho de um homem que nunca viu; - um marido de que jamais pode se “aproximar”

E de outro lado:

- uma mãe que a envolve e a chama de Lili

- uma filha única que é em tudo a criticada, sem que ela saiba por quê.

86 Essa foi a interpretação que os clínicos escutara. A idosa falava pouco, estava “sem palavras”, diz Messy, mas ela “compreendia o sentido das palavras” (idem, ibidem, p. 85-86): respondia com o corpo e também oralmente, com certa pertinência. Certo dia, todos os profissionais do Centro estavam aflitos com a ausência de uma paciente. Quando a “ausente” chega, Lili foi a primeira a indicar (para a surpresa de todos) que a senhora havia chegado, conta Messy. Lili fazia comentários sobre os desenhos, apresentava falas soltas, ou dizia palavras. Os terapeutas recolhiam estes enunciados da paciente e faziam relações deles com sua história passada e atual. Messy, por exemplo, articula a morte do marido à interrupção das lembranças – “hipótese psicogênica”, que o autor sustenta para a demência. Ele descreve a 4a. sessão:

Após a sessão de pintura fica muito tempo de pé, sem responder ao nosso convite para se sentar, dizendo porém: “vocês estão sabendo, se há algo que não está bem, devem me dizer”. Relembra sua vida no campo, o marido doente, e mais nada: “Parou”. Conta também que encontrou algo no fundo do armário: “Está bom”. O quê? [...] Depois disso, todas as lembranças sobre a doença do marido se interromperão justamente no dia de sua morte. Fica desse corte, dessa ausência, sua entrada numa patologia diagnosticada como “doença de Alzheimer”. (idem, ibidem, p. 56).

Messy chama a atenção para insistente repetição do “mesmo tema” nas sessões. A idosa parece “presa” à doença e à morte do marido, bem como aos deslocamentos textuais para mortes dos homens na família. Sobre a doença do marido, ela dizia “não posso tocá-lo” (uma enfermeira cuidava dele) – Lili faz menção a uma cena em que a enfermeira fechou a porta do quarto para cuidar de seu marido; Lili diz que sempre “ficava fora”54. Um enunciado solto aparece em outra sessão: a paciente, ligada ao significante “três”, faz um traço ondulante entre outros dois traços e diz: “está atravessado”. Messy, como disse, liga a insistência do “três” à configuração clínica instalada – “um casal”

54 Note-se a relação deste enunciado com a questão, mencionada acima, sobre a insistência do três” nos desenhos e no enunciado de uma das sessões, “vejo vocês dois, eu estou por

87 de terapeutas e a paciente (identificada com J.P-F). Essa configuração fantasmática nos leva, ainda na minha interpretação, às cenas de cuidados do marido doente – havia um outro (a enfermeira) que a empurrava para a posição de “terceiro excluído”. De fato, algo atravessa, separa; “fica atravessado”.

Messy relata que, na 9a sessão, Lili desenha 5 linhas verticais – duas linhas rosas à direita, duas linhas verdes à esquerda e uma linha verde ao meio do papel. Ela diz “é uma serpente” e traz lembranças da “serpente sem

cabeça”, fantasia que a amedrontava quando criança. Tratava-se de uma serpente e de uma louca que corriam atrás dela e de dois amigos. Messy retira daí a relação da paciente com a própria doença; “a loucura que a persegue” (idem, ibidem, p. 60).

O autor fala de um trabalho clínico que “põe em ordem”, que dá certa unidade (imaginária) ao sujeito. Messy assinala que os terapeutas escutam uma história no que Lili diz. Eles instigam Lili a falar ou a desenhar e, assim, esclarece o autor, procura-se dar um “banho de palavras” (MESSY, 1993, p. 87). Contudo, o autor nada diz sobre as suas interpretações. Não se chega a saber nada sobre as intervenções dos terapeutas e, desse modo, como Lili foi afetada pelas decisões e interpretações dos terapeutas, que ao que parece, tendem a ser da ordem da “interpretação simbólica”, que Freud opõe à do “deciframento” (Freud, 1900/2001)55. Esse ponto parece-me importante porque, como veremos, ela é mais da ordem do imaginário – quem sabe, um efeito da “perda de memória” sobre o clínico.

Depois de serem evocadas lembranças dos homens mortos na família (pai, tio, marido), Lili não parou de desenhar na sessão. Messy sobre a profissão do marido e ela não sabe – nem a do pai que, quando mencionado, traz o enunciado “está morto”. O pai morreu quando a paciente era menina. Messy interpreta a resposta “está morto” para a pergunta sobre sua profissão como resposta a uma vivência traumática (o pai morto quando ela era

55

Tal interpretação (de sonhos) “leva em consideração o conteúdo onírico e trata de substituí- lo por outro conteúdo compreensível, e em alguns aspectos, análogo” (FREUD, 1900/2001, p. 118). O método da “interpretação por deciframento”, este assumido por Freud, “trata o sonho como uma escrita cifrada em que cada signo traduz-se, a partir de uma chave-fixa, em outro significado conhecido” (idem, ibidem, p. 119). Por tratar-se de uma cifragem, de um enigma - não há significado dado, prévio, e, portanto, possibilidade de substituição por outro significado que lhe seria análogo - a direção da interpretação é outra, portanto, no deciframento.

88 pequena). Ele conclui que “não há incoerência nessas evocações, apenas uma

ausência de palavras, parecendo uma linguagem perdida” (idem, ibidem, p.

59). Messy aposta que “faltam palavras” para a paciente responder. Ou seja, no esquecimento da palavra referente a profissão, ela responde com a vivência.

De fato, “não há incoerência” interna na jogada retroativa da memória que “pai” evoca – um tanto abalada está a referência externa, como discutiu Landi (2007). É esse abalo que, como efeito, deixa o efeito de “a linguagem perdida”. A “linguagem perdida” dizem, efetivamente, do efeito que a fala da Lili produziu no psicanalista. Acontece que, sob esse efeito, ele dirá que há “ausência de palavras” – não me parece ser isso que está em questão: por que supor que uma resposta diferente da esperada para uma pergunta corresponderia a “um falta”? Parece-me mais plausível dizer que as palavras que afloraram foram retiradas de uma rede associativa, de um trilhamento singular imposto por “pai” (e não pela profissão).

No retorno das férias, Lili depara-se com a saída próxima de Jacqueline do Centro de Atendimento. A partir daí, ela não desenha mais três cores. Apesar de “trabalho de despedida” realizado, em palavras de Messy, a idosa fica mais agressiva com outros profissionais, emagrece e fica hospitalizada por 10 dias. Depois de seis meses do afastamento da arte-terapeuta, a filha da paciente, “esgotada pelos cuidados com a mãe”56 e vendo seu casamento ameaçado, “precipita-se”, diz Messy. Ela deixa Lili numa casa de repouso. Após institucionalização, o quadro da paciente piorou significativamente57. Messy fala da “inconstância” da Lili em casa e de sua deteriorização na casa de repouso: [...] “como não se perder, se além de tudo, não se deseja estar aí?” (idem, ibidem, p. 88).

Após o desfecho desse caso, o autor comenta:

Trabalhamos sem levar em conta a idade de Lili, nem seu diagnóstico, mais ainda, nós o refutávamos [...]. Foi possível

56 A filha conta que a mãe havia piorado muito e que, por exemplo, estava evacuando em folhas de papel que guardava em armários.

57

É bem conhecida e discutida a “queda do sujeito” em instituições de longa permanência. Para uma discussão aprofundada sobre os efeitos subjetivos da institucionalização, ver DUDAS (2009); GOFFMANN (2004); FOUCAULT (1926/1984).

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contar com o apoio da transferência estabelecida com Jacqueline Pérrissé-Fichot, em especial [...]. A partida de J.P-F fez Lili imergir de novo no luto, já que o anterior não havia sido elaborado [...]. A inexperiência, o isolamento e as resistências

familiares contribuíram para seu fracasso. (idem, ibidem, p.

78) (ênfase minha).

É bem verdade que o atendimento de pessoas com demência envolve, necessariamente, a família – uma condição para a manutenção do tratamento. Nisso, a clínica (seja ela psicanalítica ou de linguagem) aproxima-se da clínica com crianças. No caso de demências, como o sujeito vai, aos poucos, “fugindo do outro”, a família parece jogar um importante papel para que um tratamento/acompanhamento seja viabilizado58.

Messy escreve que a maioria dos pacientes com problemas de memória, após o início do tratamento e do estabelecimento de uma relação transferencial com o terapeuta, não deixa de “compreender as palavras” que lhes são endereçadas e de responder, muitas vezes, com o corpo. Apesar da degeneração cerebral, assinala ele, há momentos de “coerência verbal” e de uma “presença atenta” (ainda que “flutuante”). Lili, diz ele, não se perdia para chegar, sozinha, ao Centro de Atendimento, mas era inconstante quanto a voltar ao prédio em que morava. Ele continua: algo sustentava Lili no atendimento e na relação com os terapeutas. Esse “algo” ultrapassava a própria demência. Talvez se possa dizer que Lili recuperasse ali, com eles, uma posição que favorecia um encontro entre referência externa e interna que, mesmo que fugaz, “driblava” a demência. Messy faz valer uma interpretação nada trivial a partir do que recolhe da presença e da fala da paciente. Sobre a fala de Lili, que não se sustenta numa posição de narrador: o psicanalista pode retirar uma história dos enunciados “soltos” e enigmáticos da paciente por “haver vida psíquica com seus conflitos comuns, no plano do sujeito.” (idem,

ibidem, p. 63).

58 O termo “acompanhamento” é veiculado na Neurolinguística Discursiva que propõe um modo de atendimentos a afásicos. Refiro-me ao “acompanhamento” conforme ressignificado por Fonseca (2012) - como veremos no capítulo seguinte. Também ali, considerações sobre a transferência na Clínica de Linguagem serão tecidas, ainda que esse ponto não seja o foco deste trabalho.

90 Messy levanta a hipótese do “espelho quebrado” para caracterizar a velhice. Ele compreende a demência como tensão do ego e desinvestimento

do objeto59. Vejamos: a entrada na velhice gera uma tensão existencial. O eu, diz ele, não se reconhece sua imagem no espelho (um ego feiura, que antecipa a morte). Dito de outro modo, frente ao espelho (o Outro), o corpo fica fragmentado, o “espelho está quebrado” (idem, ibidem, p. 9). A percepção antecipada dessa fragmentação pode produzir, como efeito, angústia. É o Real que incide e o Simbólico60, diz Messy, acaba organizando o que é aterrorizador. Em alguns casos, porém, pode acontecer uma precipitação: “do indivíduo na patologia, e até na morte, pela volta da agressão contra si mesmo” (MESSY, 1993, p. 26). Para um grande número de sujeitos, acrescenta o autor, o tempo do “espelho quebrado” fica circunscrito a um período depressivo, motivado pela perda da imagem ideal. O que se tem, é que, embora socialmente marginalizado, o idoso tem desejo e pode elaborar suas perdas61. Mas, qualquer declínio motor; social - ou uma lesão cerebral - pode representar uma perda insuportável e empurrar o sujeito para a patologia, de maneira desproporcional à degeneração cerebral.

Na demência, propõe o autor, o Simbólico não pode se ligar Imaginário e é, por isso, que as palavras são perdidas, mas não toda a linguagem. Perde- se, diz Messy, a “representação pré-consciente” (nos termos da primeira tópica de freudiana). Com esta afirmação, Messy procura aproximar memória e linguagem: o paciente demenciado “perde a memória das palavras”. Para o autor, ele se lembra dos fatos, mas “faltam-lhes as palavras” e o paciente fica

à mercê da representação-de-coisa, afasta-se da realidade – “à maneira do esquizofrênico ou do sonho” (idem, ibidem, p. 85). Cabe apontar que a reflexão sobre a fala dos pacientes com demência encaminhada na Clínica de Linguagem percorre outra direção. Na demência, não faltam palavras. Isso porque, o sujeito não está fora das referências internas da língua. O que se

59 Emendabili (2010) assinala que perda não é déficit - ela não pode ser quantificada:

“trata-se de perda da possibilidade do sujeito para lidar com o objeto investido. “Perda” remete, segundo Messy, ao desaparecimento desse objeto” (idem, ibidem, p. 47).

60 A hipótese psicogênica do autor para abordar o envelhecimento e a demência está centrada na primeira e segunda tópica freudiana. Entretanto, os termos lacanianos Real, Simbólico e Imaginário fazem certa pressão.

61 Desse comentário de Messy, parece decorrer o título do livro de Mucida (2004): O sujeito

91 dissolve é o encontro entre referência interna e referência externa (LANDI, 2007; EMENDABILI, 2010).

Messy conclui que, no limite, esses sujeitos fecham-se no mutismo e rompem, definitivamente, a relação com o outro e com as pressões externas:

Demência é “doente sem pré-consciente” (idem, ibidem, p. 87).

Para o psicanalista, a demência decorre da:

(1) Ruptura do sistema representação-palavra. Tem-se, diz ele, um sujeito sem Pcs. Entretanto, representação de palavra é, em seu texto, reduzida à “memória da palavra”.

(2) O retrocesso da memória é relacionado à “falta de palavras”: o sujeito “lembra-se dos fatos, mas faltam-lhe as palavras”, diz Messy. Nesse caso, memória é espaço de armazenamento de palavras. Por isso é que na demência haveria problema de “acesso lexical”.

Desde a monografia A Afasia (FREUD, 1891/1979), representação-

palavra diz respeito a “impressões” ou a “traços” visuais, auditivos e cinestésicos e, portanto, não a vocabulário, palavra62. De fato, o que chega ao pré-consciente está intrinsecamente relacionado à representação verbal. Entretanto, essa passagem, como vimos, ocorre no encontro entre a representação-palavra e a representação-de-coisa – um efeito de operação do aparelho da linguagem. Messy não considera, de forma determinada, a rede associativa a que esquecimento ou anomia deveriam ser remetidos, ou seja, à lógica do funcionamento do aparelho.

Assumir, como faz o autor, que o sujeito recorre à representação-de- coisa por haver deteriorização do sistema representação-palavra não procede, a meu ver, do texto freudiano. Como, pergunto, seria admitir que o sujeito possa, sem palavras, “lembra-se dos fatos”? Retira-se de Freud que a representação-de-coisa não retém qualidades e, caso não seja articulada à cadeia linguística pela fala, não se pode ter qualquer apreensão do pensamento. Desse modo, “lembrança de fatos” só pode corresponder a efeito do encontro entre os dois sistemas e não da dissolução dessa relação – o significado decorre desse encontro.

62

O que seria “lembrança de fatos” quando a representação-de-coisa é um resto da experiência? Não há essência do objeto em Freud.

92 Parece-me que, ao longo do desenvolvimento da doença, o encontro entre representação-palavra e representação-de-coisa, nos termos freudianos, é abalado e pacientes tendem ao mutismo – o que tornam insondáveis as lembranças. Antes do esgotamento das “lembranças” e do silenciamento, i.e., antes do desencontro entre linguagem e mundo, a experiência clínica tem mostrado que os pacientes repetem, insistem, em “algumas lembranças”. No caso Lili, Messy recorta a repetição do significante “três” (nos desenhos e nos relatos das mortes dos homens da família) – ele se destaca das lembranças, que ficam nele condensadas, sugere ele. As lembranças estão lá, aderidas a este significante, mas encobertas e funcionando com âncoras subjetivas, que impulsionam o sujeito - enquanto houver fala e falante.

Messy interpreta as lembranças de Lili e as reduz a esse “três”. Mas, é fato, que pacientes repetem “lembranças” da própria vida, incessantemente. A clínica não deixa dúvidas a esse respeito. Uma paciente, conta, em todas as sessões, ter sido a preferida dos sogros com quem viveu por 15 anos; que ela conseguia tudo do sogro e que todos (sogra e cunhados) quando queriam alguma coisa dele, recorriam a ela. Outra senhora repetia, a cada encontro: “O Sr.P. sempre disse que nossa família é formidável”. Importa assinalar que, nos períodos iniciais da demência, os pacientes são afetados pelas “perdas de memória” - sofrem seus efeitos e são assombrados pelo risco de “dissolução subjetiva” (LANDI, 2007). Frente a isso, eles se parecem ancorar-se num investimento narcísico63 que, nessas repetições aparece “inflado” – isso, um tempo antes do sujeito se perder e mergulhar na demência. Num período dito intermediário, o doente já não é afetado pelas suas dificuldades de memória e pelo estranhamento do outro frente às falas diluídas de sentido e, então, caminha para uma alienação, sem sofrimento.

No que diz respeito às possibilidades de tratamento de um sujeito na demência, Messy (1993) é otimista: “vários exemplos nos mostraram que uma estabilização, e até mesmo progressos” (idem, ibidem, p. 92), desde que o ambiente em que vivem as pessoas demenciadas seja “afetuoso e atento”

63 Para Freud, diz Chemama (1995, p.139), “pelo menos até a década de 1920, o narcisismo representa uma espécie de estado subjetivo relativamente frágil, de equilíbrio ameaçado (há oscilação entre investimentos objetais e investimentos egóicos)”. Pode haver alterações, portanto, no funcionamento narcísico – pode haver tanto uma inflação desmedida do narcisismo, quanto uma forte depressão.

93 (Messy refere-se à família e à equipe de profissionais). Quanto à clínica psicanalítica, que se realiza pelo “olhar do outro”, há um caminho possível, qual seja: “colocar o imaginário em relação com o simbólico que, por vezes, permitirá que a palavra encontre seu lugar” (Messy, 1993, p. 88). Nesses enlaçamentos felizes, o paciente tem “momentos de lucidez” (idem, ibidem). Por isso, ele sugere, que “é preciso continuar a emitir nossas mensagens, captar os apelos dos sujeitos” (idem, ibidem, p. 86), quer dizer, “é preciso, em todo caso manter o doente no banho de palavras, alimentado por nosso narcisismo” (idem, ibidem, p. 87).

O que significa encaminhar uma clínica psicanalítica que visa “colocar o imaginário e simbólico em relação”? Como se pode ver, o autor recorre, ainda que tangencialmente, aos registros lacanianos do Real, Simbólico e Imaginário, à topologia do nó borromeano64. Mas, por que o autor se desloca da primeira tópica freudiana para os três registros lacanianos? Interessa dizer que os registros R/S/I são invocados, por Messy, quando ele se fala da clínica.