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Dedico este item a uma abordagem teórica que prestigia a linguagem, que dá ênfase à sua face discursiva, social e que tem refletido sobre a relação entre memória e linguagem e seus desdobramentos na demência. Esta abordagem distingue-se da Neuropsicologia - embora mantenha a figura do sujeito epistêmico, i.e., a cognição tem ali lugar e função – porque envolve o “discurso social”. A memória aparece como uma função cognitiva, mas é construída no e pelo discurso social - portanto, memória é construção social. Vejamos como o outro faz, aqui, toda a diferença.

Parto, inicialmente do emblemático livro “Memória e Sociedade” de Ecléa Bosi (1979/1994), da Psicologia Social, por ele partir especificamente das “lembranças de velhos”, de narrativas orais. Interessa-nos pouco, nesta tese, como a autora explora esse “trabalho de memória”. Destaco a relação teórica entre memória e linguagem, quando um discurso social é invocado. Bosi recolhe seus pressupostos nas reflexões do filósofo Bergson. Segundo a autora, ele propõe um esquema de memória nada mecanicista, ou seja, desvia- se do esquema percepção-ação, que remete ao arco-reflexo, na Neurologia. Ele introduz outro, representado na relação imagem-cérebro-representação, que sugere que os estímulos sensoriais não desencadeiam, necessariamente, uma ação. As imagens, que os órgãos sensoriais enviam ao cérebro, assumem, na consciência, a qualidade de signos (representações) e liberam o pensamento. Assim, o sistema nervoso não é um simples condutor mecânico de estímulos, diz a autora.

Bergson, diz Bosi, enfrenta o paradoxo do tempo e distingue a percepção

atual da lembrança. Assim, perceber e lembrar são fenômenos distintos, mas

as lembranças submersas participam da percepção no presente. Disso

decorre, sustenta o autor, que não há percepção sem

lembranças/representação. Bosi, a partir desta colocação do filósofo, afirma que o passado é conservado na memória e atua no presente:

de um lado, o corpo guarda esquemas de comportamento de que se vale muitas vezes, automaticamente, na sua ação sobre

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as coisas: trata-se da memória-hábito, memória dos mecanismos motores. De outro lado, ocorrem lembranças independentes de quaisquer hábitos: lembranças isoladas, singulares, que constituem autênticas ressurreições do passado (idem, ibidem, p. 48).

A aquisição da memória-hábito vem das exigências sociais, diz ela, como dirigir um automóvel ou comer segundo as regras sociais. A memória- lembrança vem de eventos específicos, singulares da história: é memória “submersa” na consciência, denominada pelo filósofo como “inconsciente”23 como representação inconsciente. O sonho e a poesia são constituídos pela memória-lembrança, diz Bergson. Bosi assinala que incluir esta memória inconsciente nas considerações diferencia Bergson das vertentes psicológicas racionalistas em que (como vimos) não se admite que algo pode estar “nas sombras da consciência”. A consciência pode, de acordo com Bosi, “colher e escolher” o que está no “infraconsciente” (BOSI, 1979/1994, p, 52).

A partir desse ponto de vista – que implica Freud, mas não o explicita -, a autora propõe uma hipótese psicossocial, que trabalha a memória do idoso como “presa” ou “perdida” em “redes de evocações espontâneas e distantes” (idem, ibidem, p. 49). Bosi argumenta que a marginalização social do idoso exige pouco da memória-hábito e resta para ele, portanto, a memória- lembrança - a “memória-sonho”. Supõe-se que:

o velho típico já não aprenderia mais nada, pois sua vida psicológica já estaria presa a hábitos adquiridos, inveterados; e, em compensação, nos longos momentos de inação, poderia perder-se nas imagens-lembrança”(idem, ibidem, p. 49).

A memória do idoso pouco ativo vira “pura evocação” - o que não convence totalmente a autora. Aqui, ela se afasta de Bergson porque, segundo diz, o filósofo não deu um “tratamento da memória como fenômeno social” -

23 Para Bergson, inconsciente é um adjetivo para a memória que está fora da consciência e, portanto, em nada se assemelha ao substantivo “o Inconsciente” proposto por Freud, como veremos no capítulo seguinte. A Psicologia tradicional exclui a atividade inconsciente dos fatos psíquicos O termo “inconsciente” comparece em diversas acepções filosóficas. Assim, Freud não inventou o termo, mas lhe deu outro sentido (KAUFMANN, 1993/1996, p. 264).

48 não tematizou a relação entre os sujeitos e as coisas lembradas. Para preencher esse “vazio”, ela recorre ao sociólogo Halbwachs. A partir deste acréscimo teórico, de acordo com ela, a memória do indivíduo fica subordinada às representações sociais, dependente da relação do indivíduo com instituições (família, escola, Igreja), dependente do que os pais e amigos contam para nós. A vantagem desta proposta para Bosi é que: “Halbwachs amarra a memória da pessoa à memória do grupo; e esta última à [...] memória coletiva de cada sociedade” (idem, ibidem, p. 55).

O adulto jovem, diz Bosi, ocupa-se mais da vida prática e, portanto da sua memória atual. Quando ele se volta às lembranças passadas, “vive um momento de contemplação”, um devaneio em forma de sonho; já o idoso, apartado da vida social ativa, fica restrito à lembrança e de “ser a memória da família, do grupo, da instituição, da sociedade” (idem, ibidem, p. 63). Bosi afirma que as narrativas orais de idosos (com ou sem patologias

degenerativas) realizam um trabalho de “refacção” da memória, que lhes

confere o lugar de lembrar.

Nota-se que esse passo na direção de Halbwachs introduz o discurso sociológico nas considerações de Bosi e faz circular a ideia de que a memória é constituída por representações de discursos sociais. Na interação como outro, afirma ela, o idoso “colhe e escolhe a memória-lembrança” - ele lembra e atualiza sua própria história. Para ela, memória e linguagem são funções cognitivas dependentes e decorrentes do discurso social.