• Nenhum resultado encontrado

Freud: o aparelho de linguagem, o aparelho de memória

2.1. As afasias: o aparelho de linguagem

Na monografia “A Afasia” (1891/1979), Freud propõe o aparelho de

linguagem. A argumentação para leva à postulação deste aparelho nasce da

crítica ao localizacionismo, uma corrente da Neurologia, iniciada por Broca (1861) e Wernicke (1874), a qual postula a existência de uma relação de causalidade direta entre o local da lesão cerebral e o tipo de sintoma na

57 linguagem28. Freud faz uma guinada radical a esse respeito, aproxima-se de Hughlings Jackson (1866,1878, 1881) – avesso ao localizacnismo - e também do filósofo John Stuart Mill (1843) – que recusa a simplicidade da ideia de causalidade direta. Freud redimensiona a noção de paralelismo psico-físico, introduzida por Jackson, “serve à diluição teórica da causalidade cérebro linguagem” (Fonseca, 2002, p. 53). O que caminha em paralelo não se toca: uma linha não pode, logicamente, ser causa do que ocorre na outra – os fenômenos são concomitantes, simultâneos, mas independentes – este é o

argumento de Jackson, sublinha a autora.

Freud fará uma torção importante nesse paralelismo, como veremos. Ela foi propiciada, na interpretação de Fonseca, pelo olhar de Freud que transitava entre a afasia e a histeria no final do século XIX. Se na afasia há lesão no corpo e sintoma na fala; na histeria não há lesão, mas há sintoma no corpo. Como sustentar, frente à histeria, que sintomas psíquicos sejam causados por lesões orgânicas? O paralelismo psico-físico vinha a calhar, portanto, mas modificado para que ele pudesse distinguir afasia e histeria. Freud dirá, em 1891, que os domínios psíquico e físico são paralelos, mas são concomitantes

dependentes. Há relação, mas ela não é propriamente de “causa” – uma lesão no corpo não causa nada em domínios que lhes sejam heterogêneos, mas ela pode afetá-los de formas e intensidades diferentes (e vice versa, como mostram as histerias).

Em “A afasia” (1891/1979), a relação entre cérebro e linguagem é de “concomitância dependente”, ou seja, cérebro e linguagem são domínios heterogêneos e solidários, que se afetam mutuamente e, “dependentes”, já que não há afasia sem lesão cerebral. O “concomitante” aproxima-se da “simultaneidade” e não remete à causalidade direta e subordinação entre esses domínios. O “choque traumático”, que Freud ressalta na histeria deve ser referido à “relação simbólica” e, portanto “tem determinação subjetiva (e não orgânica)”. É surpreendente a solução oferecida por Freud: o sintoma, seja na

28 Fonseca (2002, p. 28): [...] assinala que o discurso fundador dos dois autores mencionados, (a) baseou-se na constatação empírica da associação entre dois acontecimentos: a lesão cerebral e as perturbações na fala. Além disso, tal associação ocorre numa sucessão temporal

particular e regular: o acontecimento cerebral (evento antecedente) foi, por consequência,

assumido pelos médicos pesquisadores como a causa do sintoma na linguagem (evento subsequente); (b) referendou experimentalmente (através da anátomo-patologia) o que já era objeto de especulação: uma causa (neurológica) para as perturbações (perdas) na linguagem.

58 afasia, seja na histeria, decorrem do jogo simbólico (de associações). Desse modo, é necessário concluir, com Fonseca, que:

Freud ficou mesmo “na oposição” (...) ele se insurge contra a causalidade organismo-sintoma e destaca o corpo da

histérica do corpo orgânico. No segundo caso, o das afasias,

Freud insurge contra a causalidade mecânica lesão-sintoma e

destaca o “aparelho funcional da linguagem” daquilo que, até então, era um “aparelho cortical da linguagem”. Dito de

outro modo, linguagem e corpo simbolizado são destacados para serem teorizados (FONSECA, 2008, p. 346) (ênfases minhas).

Temos, assim, que o corpo do homem é simbolizado e que a linguagem

é indissociável de dois sistemas mnésicos: o sistema de representação-palavra

e o sistema de representação-objeto. Dito de outro modo: o aparelho de

linguagem é desenhado como rede de associações que articula impressões

grafadas em sistemas de memória. Essa aproximação é notável já em 1891. Ao escutar a fala afásica, Freud sustenta que a representação-palavra é composta por “impressões” visuais, auditivas e cinestésicas. Trata-se da associação da imagem acústica, da imagem visual e da motora de uma letra,

da imagem motora da fala, por exemplo – aí está o corpo frente à linguagem - há uma rede que no corpo associa “impressões” da palavra. O significado viria com o sistema de representação-objeto, este também composto por “impressões” visuais, auditivas e táteis, que são reordenadas a cada nova associação. Apesar de a representação-objeto não pertencer à linguagem (fala e escrita), só há significado, sustenta Freud, na associação entre os dois sistemas29.

Os distúrbios afásicos, patologias de linguagem, são explicados por

rupturas em cadeias nas cadeias associativas, ou seja, explicados por uma

29 A representação-palavra é um sistema fechado (ligado à linguagem) e distinto da representação-objeto (que é aberto a novas impressões). A ligação entre os dois sistemas é realizada via imagem acústica do sistema fechado (via representação- palavra) e associações visuais do sistema aberto (representação-objeto).

59 anomalia no funcionamento do aparelho de linguagem, que é, como disse, também um aparelho de memória – as redes associam impressões mnésicas captadas pelos sentidos. Temos, então, que: (1) afasia verbal indica um problema nas associações do sistema de representação-palavra; (2) afasia assimbólica, uma perturbação entre a associação da representação-palavra e representação-objeto; (3) agnósica, um problema no sistema de representação- objeto (FONSECA, 2008, p. 345).

Devemos nos ater, nesse ponto, ao termo “representação” que, segundo Le Gaufey (1997) não é definido ou especificado nos textos iniciais de Freud. Apesar de “representação” pertencer ao vocabulário filosófico e psicológico – o que equivale a dizer que o termo é carregado de conteúdo cognitivo30 - Freud faz um uso original deste termo, na medida em que ele ao acrescentar a palavra “inconsciente” - ele fala em representações inconscientes – ele produz um “paradoxo na junção desses dois termos” (LAPLANCHE e PONTALIS, 1982/2001, p. 449). De fato, este acréscimo subverte toda a tradição filosófica contida na palavra “representação”. Os autores assinalam ainda que ao falar em sistemas mnésicos, Freud dispersa a lembrança “em séries associativas”. Ele suspende, desse modo, a relação percepção- representação já que privilegia “associações” e não representações ligadas a esta ou àquela qualidade sensorial31. Perde-se a relação um-a-um (objeto sensível-representação), que garantia substância à memória, compreendida, nesse enquadre como um espaço de estocagem. Ora, com redes associativas, a importância recai sobre as associações – caminha-se na direção de uma

concepção “negativizada” de memória, de memória dessubstancializada. Essa operação é realizada pelo aparelho de linguagem.

Fonseca (2008, p. 344) aproxima a originalidade freudiana da discussão do filósofo Jonh Stuart Mill. Ela volta-se para a palavra “impressões” que remetem “à aparência de uma coisa, ou seja, não se trata da coisa-em-si”.

30Representação é, como assinala Ferrater Mora “vocabulário geral que pode referir- se a diversos tipos de apreensão deu objeto (intencional)” (MORA, 2001, p. 629) – traço comum que une esses sentidos (filosófico e psicológico) é sua remissão a operações percepto-cognitivas. Representação liga-se à “reprodução de uma percepção anterior” a “ato de pensamento” (idem, ibidem, p. 630).

31 Andrade (2003) discute, em profundidade, a relação percepção-representação- comunicação, que ela destaca como relação necessária a um pensamento psicológico (cognitivista).

60 “Impressão” é “traço mnésico” – resto de uma operação psíquica (e não psicológica em sentido estrito), o que nos leva a reconhecer que traço não tem essência. Notamos que a representação (impressões/traços visuais, táteis e cinestésicas) possui, necessariamente, algum vínculo com a percepção, mas tendo em vista a ideia de impressão, de traço, é imperativo dizer que ela é faltosa, já que o resultado são “traços”. Importa repetir que Freud constrói um aparelho de linguagem/memória que não possui relação direta com o mundo externo e que, por isso, ressignifica o termo “representação” como procurei indicar acima. Interessa dizer que essa operação teórica é viabilizada quando Freud submete a memória ao aparelho de linguagem, quando aponta na direção de que memória não é fruto de apreensão perceptiva, mas dependente do jogo de associações realizado pela mecânica do aparelho de linguagem.

Destaco a distinção entre os dois sistemas: representação-palavra e representação-objeto. O significado decorre da relação entre os dois sistemas. Parece que esse ponto nos leva ao o papel da linguagem como estrutura e