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A senhora Lili: um olhar psicanalítico sobre as demências

CAPÍTULO 4 A Clínica de linguagem e sujeitos com demência

C: ela tá muito dependente por causa dos outros, por isso que ela esquece

4.3. A direção de tratamento no caso da senhora Marlene

Uma clínica de linguagem se faz nos efeitos da interpretação do terapeuta da fala e escrita do paciente. Na terapêutica, como afirma Tesser (2012, p. 88), “o clínico faz suplência aos descaminhos da fala”. Isso quer dizer que o clínico oferece apoio – contenção e contorno – para que o paciente se sustente como falante. A partir da interpretação do clínico, a fala do paciente produz efeito de significação e faz, portanto, faz signo: há encontro entre referência interna e externa.

A senhora Marlene não precisava da interpretação do clínico para falar. De fato, para falar de si, ela não precisava do outro. A instância diagnóstica direcionou a escuta para a repetição e aprisionamento dos textos. A primeira direção foi que o clínico também pudesse “entrar” no excesso da fala. Frente aos longos relatos, especialmente nos deslizamentos, o clínico pontuava cruzamentos de textos, dispersões, retroações. Assim, Marlene poderia falar para outro e não somente para si própria. É o que se segue abaixo:

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Paciente trouxe a oração de São Miguel escrita para a terapeuta. Após a leitura, ela faz um longo relato sobre São Miguel e desliza para uma outra história do evangelho.

T: uhum, mas então tá, ó nos estávamos falando da oração de São Miguel né, a senhora tava me contando da oração, daí a senhora me contô desse evangelho, ta porque a senhora lembrô dele? O que esse evangelho tem relacionado com a oração que fez a senhora lembrá?

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P: porque ela defende né? Defende de todo o perigo né? Pois é, a oração que é isso defendei-nos no combate né? Ele tem (SI) e ele defende / tem São Miguel, São Rafael e São Gabriel, são três santos né?

T: são

P: e: São Miguel ele, ele, ó ali, da manada do porco que eu contei agora (riso) olha aqui ó ciladas do demônio né? É São Miguel, São Gabriel, cê veja eu sei tudo, São Gabriel (falou sussurando a oração de São Miguel), é, é esse ai é São Miguel, agora não me lembro do São Rafael, são três protetores, os santos anjos né? O meu é esse aqui, o meu protetor (riso).

Os questionamentos da terapeuta produziam hesitações na fala da paciente. Ela parava e respondia ao outro para sustentar uma fala mais endereçada. Decidimos, também, que a escrita seria um bom caminho, já que a paciente era afetada pelo material e paralisava. Esse era um momento de fazer a suplência imaginária da sua posição de falante/escritor. Entre fala e escrita há relação de “mútua afetação” porque são regidas pelo funcionamento linguístico. No entanto, a distinção entre a posição sujeito-fala e a posição sujeito-escrita deixa ver que uma modalidade pode ser apoio para outra, como testemunha a clínica (MARCOLINO e CATRINI, 2006).

Implicada com os atendimentos, a paciente quis escrever todos os dias em casa e trazia seus textos para a terapeuta. Marlene escrevia sempre o mesmo tema: o que ela fez no dia. Apesar das sugestões da terapeuta, ela não arriscava outro texto. Talvez entendesse a escrita como um “exercício”, sem endereçamento. Ela comentou: “o médico disse que era bom escrever para a memória, mas eu tinha preguiça”. Neste tipo de texto, um relato diário, a senhora sustentava sua posição como escritora. No início de cada sessão, a terapeuta lia em voz alta seus relatos:

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T: dia oito. Nesse dia levantei mais cedo, já estava melhor, minha vizinha veio me visitar, conversamos bastante e almoçamos, à tarde como sempre, fui tirar uma soneca, à noite fui à missa e depois assisti o jornal na televisão como de costume, nada de bom, só tragédias, poucas noticias boas, nada como antes,

138 noticias boas, filmes e novelas descentes e boas e agora... e aqui dona Marlene.?

M: agora (SI), agora (SI) (riso)

T: uhum, “fiquei um pouco com, com” aqui, como que é aqui? “com visita”? M: “eu fiquei um pouco com, com, com nossas visitas” pode pôr “com visitas” “visitas” é visitas, ta ali, “com visitas de sempre”

T: ah tá, “fiquei um pouco com visitas de sempre”? M: é

E: ta, “e logo fui dormir, boa noite” M: (riso)

Na leitura desses textos, Marlene compreendia, na maioria das vezes, a fala do outro e não paralisava. Ela continuava um texto próprio, mas falado e indagado pelo outro. A realidade se organizava pelas interpretações da terapeuta. Após seis meses, ela decidiu encerrar os atendimentos porque estava se sentindo melhor. Ela diz:

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M: essa melhora, acho que foi, não sei, de eu vir aqui né? Talvez fosse né? Porque daí eu comecei a escrevê, e eu tinha muita preguiça de escrevê, sabe? Mas o médico já tinha dito que eu tinha que escrevê sempre, e eu tinha preguiça, por isso que entrei na pintura pra, por causa da preguiça que eu tinha de escrevê, me esquecia muito, sabe de escrevê, e aqui eu comecei me lembrá, com você

T: A senhora acha que a memória da senhora melhorô?

M: tá melhorando, porque eu lembrava dos sonhos, e comecei a sonhá e lembrá, qué dizê que eu melhorei, eu nunca sonhava antes, nada e sonhei só com o passado, com o presente eu não sonhei nada, queria sonhá também com o presente pra vê, dicerto que tô me lembrando né? porque não sonhava nada né? E agora to com essa sonhação.

As queixas de dificuldades de memória da senhora foram tomadas como “desnodamentos” do Imaginário. Precisamente, entendemos que Marlene estava se distanciando do outro e da realidade imediata e aprisionando-se em

139 suas próprias vivências. A direção do atendimento foi pautada pela tentativa de suplência imaginária que pudesse mantê-la mais próxima do outro e da realidade textual em curso. As queixas não desapareceram, mas algo se abriu como “esperança” para a paciente. O que esse curto atendimento nos ensinou é que uma clínica dita de linguagem permite que a lembrança aflore. Marlene agora se lembra de sonhos! Uma lembrança que só pode se apresentar ao sujeito quando autorizada pela censura e articulada à palavra, ao simbólico, como ensinou Freud.

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