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A fala e a escrita da senhora Marlene: considerações sobre a avaliação da linguagem.

A senhora Lili: um olhar psicanalítico sobre as demências

CAPÍTULO 4 A Clínica de linguagem e sujeitos com demência

C: ela tá muito dependente por causa dos outros, por isso que ela esquece

4.3. A fala e a escrita da senhora Marlene: considerações sobre a avaliação da linguagem.

Na avaliação da linguagem, o clínico assume o compromisso ético de construir um dizer sobre a fala/escrita e a lógica que configura o sintomático (ARANTES, 2001). Para tanto, ele parte da constituição de uma escuta

especializada que possa ser afetada pela manifestação sintomática e que

possa afetar o tratamento. (ANDRADE, 2003; POLLONIO, 2011). O que só será viável quando se é afetado por uma posição teórica (LIER-DEVITTO, 2004, CARVALHO, 2005). Assim, a avaliação da linguagem deve orientar a interpretação para a fala do paciente.

Vale dizer que a interpretação não é compreensão do sentido ou contextualização no diálogo. A interpretação76 da fala é dispositivo clínico que promove a mudança de posição do sujeito na linguagem, ou melhor, que produz efeito estruturante na fala/escrita do paciente (SPINA-DE-CAVALHO, 2003). Desse modo, não há regra ou norma para interpretar, mas o que se recolhe, como efeito, na instância diagnóstica direciona a interpretação clínica. Considera-se a singularidade de cada caso e que a interpretação preserve a posição do falante quando o paciente procura sustentá-la.

A relação entre fala do terapeuta e fala do paciente configura-se no diálogo clínico. Nesse sentido, diálogo77 não é comunicação ou troca de informações e está relacionado com a noção de imprevisibilidade, indeterminação. Não há uma relação dual – terapeuta e paciente, já que a noção de língua torna essa relação triádica (terapeuta-língua-paciente) (MOTA, 1995). É um encontro entre “redes significantes” que, devido à “assimetria entre falantes” (clínico e paciente), promove um conflito marcado pela presença do sintoma. Disso decorre que, o clínico escuta a densidade significante da fala/escrita e, ainda, escuta um sujeito que sofre, um drama subjetivo (TESSER, 2007; FONSECA, MARCOLINO e LIER-DEVITTO, 2009).

A escuta especializada é constituída a cada novo caso na avaliação da linguagem. Para tanto, há o cruzamento da “escuta/interpretação em cena” e

76 Spina-De-Carvalho (2003) discute a interpretação na Clínica de Linguagem. 77 Tesser (2007) discute a noção de diálogo na Clínica de Linguagem.

128 “fora de cena”. Na escuta/interpretação em cena, o clínico está sob o efeito das produções do paciente. A escuta/interpretação fora de cena ocorre após a sessão, na leitura dos dados transcritos. Nessa leitura perdura a escuta “em cena” do clínico (LIER-DEVITTO, ARANTES, 1998). Nisso, ela se distingue da análise de um investigador sobre um corpus, sempre neutro, disposto ao seu olhar, igualmente neutro, um olhar sem sujeito implicado naquilo que “observa” (ANDRADE, 2001). Digamos que a escuta na cena penetra a leitura e esta deixa, por sua vez, seus efeitos na escuta. Nessa dialética, essas instâncias “escutar em cena - ler depois” afetam-se mutuamente e instituem uma escuta

para fala e para um fala singular. Nesse particular, o enlaçamento significante

entre fala/escuta/leitura assenta, paciente e clínico, numa mesma estrutura clínica mobilizada pela densidade da fala sintomática.

No diagnóstico, o clínico fica sob efeito da fala sintomática. Efeito que afeta a escuta e dá o início para a produção de um dizer sobre o caso. Para tanto, algumas questões são elaboradas e respondidas pelo clínico: (a) quais as características da fala do paciente? (b) qual é o efeito da fala do paciente no clínico? (c) qual é o efeito da fala sintomática no próprio paciente? e (d) qual é o efeito da fala do clínico na fala do paciente? (MARCOLINO, 2004; FONSECA, 2010).

Sob este corpo teórico, algumas considerações devem ser tecidas quando envolve o atendimento de sujeitos com demências.

(1) No que se refere a escuta para o drama subjetivo, temos um sujeito que não sofre porque se direciona à alienação. No período inicial da doença, um drama subjetivo pode ser escutado, não pelo sofrimento, mas pelo arrebatamento subjetivo. O que se vê é resistência à própria demência e ao final da vida.

(2) A escuta para trama significante sustenta a interpretação na clínica de linguagem. A fala de pacientes com demências perde significação, mas está articulada na cadeia falada. Desse modo, o que orienta a interpretação clínica nesses casos? O que define o sintomático na fala/escrita?

Na avaliação da linguagem oral da Marlene, o primeiro efeito na escuta clínica foi que a paciente falava “sem parar”. A terapeuta tinha dificuldade para

129 interrompê-la e, principalmente, encerrar as sessões. Mais do que isso, a terapeuta ficava “fora do sentido” porque Marlene deslizava de um texto a outro, apesar da fala bem articulada e fluente. Deslizamentos que não eram dispersões textuais porque ela conseguia, em muitos momentos, retomá-los. Ela se sustentava em suas vivências. Seus relatos são caracterizados por poucas anomias, como na palavra “computador” no fragmento abaixo (9), deslizamentos textuais, sem dispersão. Ela quase não hesita, mas ri. As queixas de dificuldades de memória não se apresentavam nessas histórias, como veremos:

(9)

Terapeuta e paciente conversando sobre orientações do médico.

M: ontem ainda, meu Deus do céu, ontem eu fui na casa da minha costureira, que ela tá muito doente, era só atravessá a rua e a filha dela tava lidando com o, como é que é, computador, e tinha os fios tudo assim, e eu não vejo, no fim derrubo computador, tudo

T: se enrolou nos fios?

P: credo Deus, (SI) tô caindo, nem no meu jardim que eu gostava de lidar não posso mais, às vezes eu vejo um mato lá e quero tirá sabe? Outro dia caio lá, caio, e eles ficam loco de brabo comigo, pra eu não ir lá, mas tão tirando minhas flores, eu digo “ah:” que não quero que tire, plantem mais, mas arrancam, pra eu não ir (riso)

T: o que a senhora acha disso, de cair?

P: de cai é a fraqueza dicerto, já me deu isso né, a velhera também né? (riso), mas quero vê, ontem morreu uma senhora lá, mas eu sei que eles não me contam mais, que eu sempre fui no enterro, mas sempre vô igual (riso) (SI) ô se não tem que me leva de carro, né? ...que eu não ando, não vô. Antes eu ía toda vida a pé, tem uma rampa sabe assim pra subi, eu ía a pé. Agora não aguento ir a pé, me da dor nas perna e ando muito mal, meio tropeçando, se eu vô tira um matinho, eu caio (riso), ontem cai lá no meu, meu Deus no jardim (SI) não sei o que passa, também você veja, ela deitada na cama, ainda bem que é baixinha a cama, assim lidando com o computador, bem baxinha a cama, como essa cadeira, e tinha aquela fioarada, mas eu não notei, porque eu

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não, sabe como é, a gente, e fui e enrosquei o pé, lá me fui, caí derrubei até o... (riso), mas eu disse assim “meu Deus se estrago, eu pago pra você, não fique nervosa”, mas não estrago nada, graças a Deus, não estrago, era baxinho assim, mas eu (SI) fiquei com tanta vergonha, eu e o pai dela bebe

muito né? (SI) eu disse “não se incomode, se não dá pra consertar eu compro

um novo pra você”. Daí, ele não fez, não fez nada, mas eu só pra ele não falar mais. E e a mulher dele, muito boa, tá muito doente também. Ela não costura mais, e veio essa filha que não tava, ela tava empregada lá no norte, veio pra atendê ela. Mas ela disse assim “eu vô leva lá” “cê dexe, leve consertá”. Não fez nada né? Não fez nada, só uma coisinha assim, com certeza, porque eu não vi, não vi nem um nada no chão e não vi nada (riso) [...].

Neste longo turno da paciente, alguns pontos chamaram a atenção na interpretação “fora da cena”. (A) os deslizamentos, marcados em azul, sem dispersão textual porque há um retorno ao texto inicial. Três histórias estão articuladas quando ela inicia a narrativa da queda na da costureira:

(1) “Tô caindo” desliza para a queda no jardim, texto recorrente, como veremos a seguir.

(2) “Velhera” articula a morte de uma senhora

(3) “Fiquei com tanta vergonha” traz “o pai dela bebe muito” e, depois a doença da costureira.

Interessante é a passagem para a retroação, a qual produz o efeito em cena. Ela retorna à queda na casa da costureira, mas também por um deslizamento metonímico. Não parece a retomada da palavra, quando diz “também você veja, ela deitada na cama”, mas um amálgama nos três textos.

Ela diz :

meio tropeçando, se eu vô tira um matinho, eu caio (riso), ontem cai lá no meu/

meu Deus no jardim (SI) não sei o que passa, também você veja,

ela deitada na cama, ainda bem que é baixinha a cama, assim lidando com o computador.

A referência temporal “ontem” – marcando o tempo presente do enunciado - é duvidosa: “ontem eu caí no meu jardim” ou “ontem eu fui na casa

131 dacostureira”? Nota-se que na cadeia “ontem caí lá no meu” segue uma pausa - indício de escuta para a própria fala e de posicionamento no presente, que articula, em seguida, os dois textos (queda no jardim e casa da costureira).

Para nossa surpresa, nas sessões seguintes, “ontem”, “esses dias”, “na semana passada” fixou-se no dia da queda no jardim (um sujeito preso nesta cena). Esse texto era contado em quase em todas as sessões, como se fosse inédito e sempre ligado à velhice e à morte de outras pessoas. Os recortes (10), (11) e (12), ocorridos em diferentes sessões, são exemplares da repetição da narrativa sobre a queda no jardim que se repetia em quase todo encontro entre terapeuta e paciente. Como se pode notar, não são blocos estáticos de uma fala cristalizada. Há mobilidade no encadeamento do mesmo texto.

(10)

M: às vezes quando morre muitos parentes da gente (riso) (SI) falo em morte né? Eles não me contam mais porque eu vô em tudo quanto é enterro (riso) porque eu sô uma das mais velha né? Vô até com a funerária quando não tem alguém que vá junto com o chofer eu vô junto com o / o chofer eu vô junto, ele já me chama que hoje não tem ninguém, avisam pra eu ir junto né? Porque eu não posso ir a pé, eu tenho muita dificuldade em andá sabe, caio onde que é né? Agora como netinho, eles só me dão pra eu ficá um pouco sentada com ele né? (SI) eu já cai no jardim (riso) eu fui plantá e cai dentro dos cantero sabe? E eles tinham saído aquela hora lá de casa sabe, disseram “já voltamo” a senhora sabe (SI) eu disse “não” mas vi aquele pezinho de flor lá mal plantando, vô plantá, cai sentada, depois não posso levantá, ainda bem que cai sentada.

(11)

M: mas e nossa, quantas vezes eu já cai T: e não se machuca?

M: e, não, graças, de tanto eu pedi pra Deus que me ajude né? Uma vez eu me machuquei um poquinho né? E dessa vez agora, na semana passada, eu inventei de ir ver uns pezinhos de flores (SI) pegá e plantá eles bem direitinho, ele tava meio assim, que de primeiro eu cuidava muito de jardim

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dessas coisas, e agora eu não posso, eu não posso me abaixar porque depois eu não posso levantá, a escada eu não posso subi escada.

(12)

M: uhum, agora quero vê se dá pra implantá mais esses dentes aqui às vezes (SI) se não eu implantava todos aqui sabe, apesar de sair caríssimo né? Porque eu tenho medo de implantá, já era pra ter implantado, de burra não fiz, tava bem boa daí (SI) não come, a fraqueza né? E era forte, andava bem agora não ando muito bem, tenho que andá, qualquer dia desse tenho que andá de bengala, caio não posso me levantá, esses dias cai no jardim, eles tinham saído um poquinho mas já voltavam, e eles não querem que eu faça, porque eu gosto muito de lida assim com flores sabe.

Durante a avaliação da linguagem, não escutamos momentos em que a paciente poderia se deparar com “problemas de memória”, apesar da sua queixa. O nosso estranhamento era o “excesso” de fala que parecia não incluir a posição do outro. Ela “esquecia” que contava a mesma história toda semana? Ao lado disso, ela recuperava textos anteriores sem problemas. O fragmento (13), a seguir, deixa ver um momento em que a terapeuta se perdeu nas histórias da paciente e retoma questionando a paciente:

(13)

M: conversei de mais

T: como foi que nosso assunto começou?

M: começô, você, mando eu lê aquele livro, lembra? Me perguntô uma porção de coisas, que eu não me lembro mais (riso) e daí você mando eu, aquele lá, da galinha né? Cachorro e o, não, papa, ô, papagaio.

T: ah sim! Nós lemos um texto do cachorro e do passarinho né? [esse texto foi lido um mês antes desta sessão]

P: é

T: mas isso foi faz tempo né? P: foi o primeiro!

T: é foi o primeiro, mas hoje eu digo. Hoje como que a gente começô com nosso assunto?

133 P: eu comecei contando das minhas operações

Na avaliação da linguagem oral, não escutávamos um fala com muitos problemas que justificasse um atendimento. A queixa de dificuldades de memória não se confirmava nos enunciados. A fala era fluente e bem articulada nos relatos pessoais. Neste momento, estávamos com textos que se repetiam em todo atendimento (velhice, queda, morte) e um excesso de fala que impedia a entrada do outro. Além disso, a alegria sempre constante e a alienação na recepção causavam estranhamento. Continuamos a avaliação para acompanhar as queixas sobre dificuldades de compreensão da fala do outro (do sermão, da novela).

Na avaliação da escrita, outra posição frente à própria fala e ao texto escrito se apresentou. Frente ao material escrito, uma “prova” de memória parece se configurar para a paciente e ela paralisa. Segue o fragmento (14)

(14)

Primeiramente, Marlene lê uma pequena estória em voz alta e depois silenciosamente:

M: Era uma vez um pássaro que andava sempre a achar, a chatear um cão, um dia o cão fez uma armadilha na árvore onde o pássaro tinha um ninho, o pássaro ia para o ninho e caiu na armadilha, o cão então pegou nele com as patas e fê-lo prometer que não voltava chateá-lo, o pássaro aceitou claro, claro, o cão agora vive feliz.

T: muito bem, então agora a senhora me conte o que foi lido M: aham, meu Deus do céu (SI) (riso)

T: pode lê novamente, fique a vontade P: (riso) (lê silenciosamente duas vezes)

P: ah então // a história do cão, do pássaro né? T: uhum

P: que andava a, sempre a chatear um cão né? O cão um dia fez uma armadilha pra ele, e ele caiu na armadilha né? / eu não me lembro mais, você viu a memória?

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M: (Lê o final da história e comenta) você veja, meu Jesus Cristo eu era professora e meu Deus eu dava aquelas aulas assim com facilidade e tudo e agora não guardo na memória sabe? Não guardo na memória o que eu leio, eu sabia orações décor e agora nossa Senhora, orações de manhã, fazia muito as orações assim décor, de noite na missa, a missa ainda graças a Deus sei tudo porque eu vô quase todo dia, então a gente sabe responde, mas assim eu vô lê uma coisa e não guardo na memória o que eu leio.

Quando a terapeuta narrava uma história ou pedia para a paciente ler algo e depois comentar, Marlene paralisava, se queixava, não arriscava mais. De fato, ela não conseguia narrar nada que não fossem suas próprias vivências. Efeitos sobre um sujeito que carrega o diagnóstico de Alzheimer? A relação com a fala do outro criava embaraços. Ela não sustentava a escuta para fala/texto do outro. Nem sempre ela compreendia a fala do terapeuta e paralisava frente aos textos do outro. Um esvaziamento imaginário despontava e um simbólico que aprisionava o sujeito.

Na escrita, ela era afetada por aquilo que produzia. Ao ler o texto (abaixo) que escreveu, ela disse: “viu como eu erro” e “não sei o que eu fiz aqui”. Ao final, “pareço uma criança escrevendo”.

Quanto à escrita, assim com a fala, fica presa nas próprias vivências, nos relatos pessoais. O texto abaixo era para ela recontar a narrativa que escutou da terapeuta:

135 (transcrição):

A costureira

Certo dia uma menina levou uma fazenda para fazer um vestidinho. A costureira ficou muito contente porque a fregueza era muito sua amiga- como a menina era pequena a costureira levantou-a em cima de uma mezinha para tirar a medida de seu vestidinho.

A criança (menina) ficou muito fez de ganhar um vestido novo. A costureira tirou a medida do vestidinho e com muita alegria e falei ótima! Na costura ficou muito contente, tão contente, assim como a menina, pois a costura ficou certinha e muito bem feita – tanto costureira com a menina ficaram feliz porque tudo bem certo.

Muito Obrigada Dona Olga a costureira ficou bem como eu queria depois mamãe acerta com a senhora, já vou com ele para minha mãe também fica feliz. Um beijo minha querida costureira. Tchau.

Nota-se que ela inicia na posição de narrador, como lhe foi solicitado, mas depois assumiu o lugar da personagem (criança). Encerra seu texto com agradecimento a sua própria costureira (Olga), como em uma carta. Deslizamentos de posição que mantém a textualidade, não dilui o sentido, mas perde a referência – um narrador e outro texto contado pela terapeuta, apesar das semelhanças.

136 Chamou atenção que, sem a solicitação do terapeuta, a paciente passou a escrever diariamente em casa. Em sua opinião, ela dizia que a escrita melhora o “esquecimento”. Tomamos isso como um efeito produzido pela escrita e uma direção clínica iniciada pela paciente.