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A senhora Lili: um olhar psicanalítico sobre as demências

CAPÍTULO 4 A Clínica de linguagem e sujeitos com demência

H: bastante notícia Ela ligava, daí o filho dela levô o rádio pra arruma um

filzinho que tinha arrebentado e não trouxe.

A maioria dos diálogos entre terapeuta e paciente era marcado por longos turnos de Hilda. A terapeuta pouco perguntava e, muitas vezes, parecia estar “fora” do “excesso” de fala da senhora: mais falante e menos sujeito. Esse “falar de si” era o que sustentava Hilda na própria fala, mesmo que o outro – terapeuta- fique fora da sequencialidade. Deve-se indagar para quem essas falas estão endereçadas. Concordo com Landi (2007, p. 5) ao afirmar que a particularidade da fala dos demenciados diz respeito “menos à articulação interna entre os significantes e mais a uma relação do sujeito com a fala (própria e do outro)”. Preso à cena – alienado na própria fala – vai “fugindo” do outro.

4.2. A queixa de dificuldades de memória na Clínica de Linguagem: o atendimento da senhora Marlene

A instância inaugural da Clínica de Linguagem é a entrevista72. Fonseca (2002) verticaliza os procedimentos diagnósticos nas afasias e propõe que o

72 Para uma discussão aprofundada sobre o diagnóstico da Clínica de Linguagem ver Arantes (2001).

118 paciente (não um informante) seja convocado desde o primeiro encontro. É uma recomendação, não uma norma, que tem como meta escutar a queixa e um pedido do próprio paciente. Em minha dissertação de mestrado, assinalei que o informante/acompanhante só poderia falar sobre o paciente e não pode falar pelo paciente. “Ora, como poderia alguém, nessa circunstância, falar a fala da outra pessoa? Como poderia reproduzir uma fala que não ouviu?” (MARCOLINO, 2004, p. 22). O que ocorre, na maioria dos casos, é que:

o acompanhante “toma a cena”: reproduz falas médicas e, ao falar sobre a pessoa do afásico, queixa-se dele ou das dificuldades introduzidas, na vida familiar, por sua nova condição, ou seja, ele fala das próprias apreensões, incômodos e temores. Assim, a figura do afásico é erigida a partir do “si mesmo” do acompanhante (idem, ibidem, p. 22).

Desse modo, o paciente é o protagonista da cena e pode indagar sobre seu sintoma. Diante de um mal estar na fala, o paciente pode mostrar seu sofrimento e é ele que demanda mudança de posição como falante. Essa recomendação é sustentada pelo conceito de transferência da Psicanálise, envolvendo, portanto, um manejo clínico para que uma demanda seja acolhida (ARANTES, 2001; TESSER, 2012). A entrevista tem função clara: a configuração do espaço clínico e engajar clínico e paciente no sintoma.

Destaca-se que um manejo clínico é operado nas entrevistas iniciais. Primeiramente, pela questão da singularidade de cada caso (CATRINI, 2005). Singularidade que diz respeito ao efeito que a afasia impõe ao sujeito. Não é incomum, por exemplo, o luto pela sua condição alterada de falante tomar conta das primeiras entrevistas. No luto, dificilmente, o paciente demanda mudança ao clínico. Desse modo, o clínico é chamado a escutar’ o paciente e “essa escuta deve ser voltada para o que excede a afecção orgânica” (FONSECA, 2002, p. 89). Um segundo ponto é a própria dinâmica familiar que se instaura após a afasia. Alguns familiares insistem em participar das sessões para fazerem algo semelhante em casa, como se fossem exercícios. As relações familiares que já estavam complicadas antes do incidente patológico, neste momento, estão demasiadamente desgastadas. Nesse sentido, destaca

119 Catrini (2005, p. 07) que “efeitos da afasia no sujeito e no jogo de suas relações familiares” devem interessar ao clínico de linguagem. Manejos sobre a inclusão da família no tratamento e a inclusão do paciente na família ocorrem, na maioria dos casos, no início do tratamento. Isso porque direções são implementadas para garantir que o paciente compareça à clínica. Pode-se dizer, então, que a instância diagnóstica é ponto de tensão na relação família- paciente-clínico (MARCOLINO, 2012).

Na demência o paciente também é convocado para falar sobre o que o aflige. Entretanto, há especificidade sobre a configuração da queixa, da demanda e do delineamento do espaço clínico. Isso porque a transferência, na demência, de certa forma, parece ser problemática. Não se trata de reduzir essa questão à consciência e não-consciência dos déficits, como é a discussão na Neuropsicologia, em que a saída é a inclusão do informante (fonte da verdade sobre o paciente) para confirmar os sinais da possível demência.

A experiência clínica tem mostrado que o sujeito, com provável demência, “flutua” ou aliena-se entre a queixa e a demanda: nega a doença em seu início e depende da família/cuidador para sustentar o tratamento. Esse outro modo de ser afetado pela doença e se apresentar ao clínico exige novos enfrentamentos para a Clínica de Linguagem, principalmente na direção terapêutica. Como sustentar uma clínica com um sujeito alienado do sintoma (depois, alienado no sintoma)? Ou a alienação é o sintoma? O que escutar nesses casos? Além disso, quando o sujeito pode queixa-se, nos estágios iniciais da doença, é a dificuldade de memória que lhe incomoda. O que significa “queixa de memória” para um Clínico de Linguagem?

Vejamos as primeiras entrevistas da senhora Marlene73, uma professora de português e francês aposentada há 12 anos, com diagnóstico de doença de Alzheimer, em estágio inicial. Ela chegou à clínica fonoaudiológica, acompanhada de uma cuidadora formal74, encaminhada pelo médico, devido a uma alegada dificuldade e deglutição para líquidos (disfagia) (conforme

73 O material clínico apresentado foi discutido, inicialmente, no trabalho de conclusão de curso de Santos (2001) sob minha orientação. Antes disso, supervisionei este caso e conheci a paciente Marlene.

74 O cuidador, geralmente, auxilia o idoso dependente em diversas tarefas cotidianas. Quando um familiar assume esse papel é denominado de cuidador informal. O cuidador formal é um profissional remunerado com alguma experiência no cuidado aos idosos (OLIVEIRA, MARCOLINO, ANDRADE, 2011).

120 relatório médico de encaminhamento). Ela fazia uso da medicação indicada para demência de Alzheimer (nome comercial Reminyl)75. Apesar de o motivo do encaminhamento ser a dificuldade de deglutição, a queixa principal da paciente fixou-se em “problemas com a memória”. Ela não se lembrou das alterações de deglutição. Provavelmente, o médico estava preocupado com o início da disfagia, quadro que, frequentemente, piora com o avanço da doença. Entretanto, a queixa da própria paciente marcou nossos encontros. Quanto à demanda, fiquei em dúvida.

No início da entrevista, ela repetiu, em vários momentos, que vinha tendo “problemas de esquecimento” há cerca de dois anos. Quando questionada sobre essa queixa, ela “desviava” ou, então, repetia que não tinha demência de Alzheimer. Seguem alguns segmentos das primeiras entrevistas:

(1)

Primeiro atendimento M = Marlene

T= terapeuta

M: o que eu mais sinto, o mais que incomoda é a falta de memória, me esqueço, eu tava tomando remédio, importado, não adiantô nada, sabe, faz dois anos que eu tô assim, nem quero contá que eles querem que eu tome (riso) é aquele mundarel de remédio né, mas eu tomei direitinho pra ele funcioná mais aumentô mais a minha capacidade de, de, de entendê, de guardar as coisas, mais o meu cérebro, fracassô mais

T: fracassô?

M: fracassô, eu esqueço mais, não sei os telefone, sei o meu né de tanto