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Freud: o aparelho de linguagem, o aparelho de memória

função 32 , conforme ela comparece em A interpretação dos sonhos (FREUD,

2.2. O Projeto para uma Psicologia Científica: esboço de um aparelho de memória

Essa tentativa de formulação hipotética se apresenta com um caráter único no que nos resta escrito de Freud – e não se deve esquecer que ele cansou dela e não quis publicá-la. [...] Aqui, ele está conversando consigo mesmo, ou com Fliess, o que, no caso, é a mesma coisa. Ele faz para si mesmo uma

representação provável, coerente, uma hipótese de trabalho

para responder a algo cuja dimensão se encontra, aqui, mascarada, eludida. (LACAN, 1959-60/1995, p. 40) (ênfases minha).

61 O “Projeto para uma Psicologia Científica” (1895) desdobra exatamente os pontos mais obscuros da monografia: aborda a relação do aparelho psíquico, um aparelho de memória, com a percepção e a consciência. Desdobramento que dá, nesta obra, uma “concepção quantitativa” à representação33 (LE GAUFEY, 1997) e fortalece a ideia de memória como trilhamento, rompendo, assim, com toda a tradição filosófica, já que memória

adquire um caráter dinâmico (que justifica o termo “aparelho”).

Garcia-Roza (2004, p. 80) descreve O Projeto de 1895 como uma obra “fundamentalmente hipotética”, como puro movimento de reflexão teórica (sem experimentos ou observações). Não há ali, como pontuou o autor, qualquer correspondência entre a anatomia e a “teoria neuronal” de Freud:

O Projeto não é (...) uma tentativa de explicação do funcionamento do aparelho psíquico em bases anatômicas, mas, ao contrário, implica uma recusa da anatomia e neurologia da época, e a consequente elaboração de uma “metapsicologia” (GARCIA-ROZA, 2004, p. 81).

Lacan (1959-60/1995), no seminário 7 - A ética da psicanálise, valoriza o

Projeto (Entwurf) ao reconhecer que as relações entre princípio do prazer e

princípio de realidade; entre processo primário e o processo secundário foram construções teóricas emergentes nesta obra de Freud - é a novidade do

Projeto. Para Lacan, este trabalho de Freud “não é a pobre contribuiçãozinha a uma fisiologia fantasista que ele comporta” (idem, ibidem, p. 50). É muito mais do que isso – estão ali as inquietações de Freud que pulsam e impulsionam elaborações que alicerçam a Psicanálise embrionária, como aquelas que revolucionam a concepção de memória.

Como funciona, então, o “aparelho de memória”?

Temos, no Projeto, que o princípio da inércia é o ponto de partida de seu funcionamento – ele estabelece que os neurônios devem livrar-se do estímulo, quando afetados por uma quantidade de energia exógena (Q)34. Para isso, eles descarregam uma resposta com vistas cessação do estímulo. Esta

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É a origem da “hipótese econômica”, de regulação quantitativa, para explicar os processos psíquicos.

62 seria a função primária do sistema: produzir um escoamento de excitação. Há, portanto, fuga do estímulo, sendo esta a característica essencial da função

secundária. Freud não só supõe “esforço proporcional” entre a excitação e a

fuga do estímulo, como também indica a necessidade de se considerar o

registro mnêmico, que permite o reconhecimento da excitação. Importante

quanto a isso é que só pode haver fuga de estímulos externos. O sistema “nervoso” não pode fugir de estímulos internos (como fome, sexualidade, respiração) uma vez que eles representam exigências da vida – o sistema deve garantir nível de energia para responder às exigências vitais. Vemos, assim, que o sistema nervoso está sujeito à dupla pressão (deve administrar estimulação endógena e exógena) – para isso, o sistema sai da inércia e desencadeia ação específica para suportar e manter Qn em baixo nível. Aqui, a eficiência da função secundária está diretamente ligada à possibilidade de que certo nível de energia seja mantido, que decorre das resistências que se opõem às descargas. As resistências funcionam como uma barreira de

contato, que, diz Freud, tem a vantagem de explicar a memória (cerne do

aparelho psíquico neste momento).

2.3. – O aparelho de memória: a representação de um funcionamento

Tendo em vista que após a excitação, o neurônio deva permanecer inalterado para receber novas sensações, mas também que seu estado anterior será necessariamente alterado, Freud cria (sem respeitar a Neurologia) dois sistemas de neurônios: (a) o sistema de neurônios ϕ, permeáveis, que é afetado pela excitação e deve a ela responder e (b) o sistema de neurônios Ψ, impermeáveis, imutável e aberto para novas excitações. O que os distingue é a

permeabilidade da barreira de contato: no primeiro caso, a barreira de

contato não oferece resistência a Q (fonte exógena), permanecendo, assim, em estado inalterado para receber novas sensações e, no segundo caso, a

barreira de contato é resistente o que promove alterações endógenas:

“representar a memória e, provavelmente, processos psíquicos em geral” (FREUD, 1985/1977, p. 400). Esta distinção não tem base na Neurologia e nem

63 poderia ser justificada por ela – o aparelho de memória, esta subversão verdadeira do pensamento neurológico, prepara o modelo de parelho psíquico da Psicanálise, como admitem Lacan e Garcia-Roza, acima mencionados 35.

Freud propõe que os neurônios permeáveis ligam-se à percepção - recebem Q mais intensa e, por isso, deixam Q fluir sem resistência e sem qualquer tipo de registro. Os neurônios impermeáveis, por sua vez (que recebem Qn – uma energia mais fraca – e, indiretamente Q) têm condições de opor resistência ao estímulo endógeno nas barreias de contato (GARCIA- ROZA, 1991, p. 210). Considere-se que o sistema Ψ, contudo, está sempre sob

tensão, já que a estimulação endógena é sempre constante e não cessa

(temos aí a gestação do que virá a ser o conceito de pulsão, que é central na Psicanálise). Bem, o sistema ϕ que está ligado ao mundo externo pela percepção, responde com uma ação motora, como prevê o modelo de arco- reflexo na Neurologia. No entanto, em Freud, a relação perceptiva com o mundo é complexa - não é “tudo” e nem “qualquer coisa” que entra no sistema (ANDRADE, 2003) 36. Os órgãos sensoriais funcionam como filtros ao excesso de estímulos contínuos do mundo externo. Assim, ele deixa passar algumas

impressões – “o que entra” depende das condições internas ao próprio sistema. No início da vida, diz Freud, o bebê não tem condições motoras para aliviar a estimulação endógena (como fome ou frio) - vive em estado de

desamparo. O choro como descarga motora não alivia a tensão do sistema Ψ

– o bebê precisa do outro para satisfazê-lo:

O organismo humano é, a princípio, incapaz de promover essa ação específica [reduzir a Q interna]. Ela se efetua por ajuda alheia, quando a atenção de uma pessoa experiente é voltada para um estado infantil por descarga através da via de alteração interna. Essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima

35 Uma parte do aparelho recebe novas sensações e outro produz a memória que nada tem de estoque de imagens ou de informações. A memória é a alteração permanente do tecido nervoso. A diferença entre os “neurônios” não está na sua natureza, mas na função que desempenha – ela depende de como os neurônios respondem à estimulação (mais ligados ao sistema ϕ ou ao sistema Ψ).

36 Andrade (2003) atenta ao fato sobre a existência do filtro no aparelho perceptual. A autora retira que “há um movimento do ser vivo em relação ao meio que não é o mesmo para todos e, portanto, a impossibilidade de se conceber o sistema perceptual como pré-formado/universal” (idem, ibidem, p. 93).

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função secundária da comunicação37, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais (FREUD, 1895/1977, p. 422).

Freud valoriza a fragilidade do sistema percepto-motor do bebê na montagem do aparelho psíquico - fala em “desamparo” de que decorrem “todos motivos morais” – cabe perguntar: “que Neurologia é esta?”. É nesse espaço – o do desamparo – que Freud introduz a ideia de que a experiência de

satisfação leva: (1) à eliminação da tensão que causou o desprazer; (2) ao

investimento em um grupo de neurônios que promove a percepção do objeto; (3) à facilitação da relação entre imagens mnêmicas. Frente a um novo estímulo endógeno – à “urgência ou estado de desejo” (idem, ibidem, p. 424) -, o sistema investe em representações da experiência de satisfação38, dando margem à alucinação – estamos falando de representações da satisfação (e não do objeto, propriamente dito). Disso decorre o problema da realidade e da consciência. O sistema Ψ não consegue distinguir percepção e

representação – temos que falar, então, em realidade psíquica. É preciso

assinalar, aqui, a distância radical que esta postulação tem da Neurologia. É bem isso que pontua Lacan (1959-60/1995, p. 40): “Freud oferece um aparelho

que é fadado ao engano porque afasta o sujeito da realidade”. Não é um

aparelho feito para “satisfazer a necessidade, mas para aluciná-la” (idem,

ibidem, p. 40). Este fato justifica, acrescenta ele, a exigência de outro sistema

que possa “fazer correções” de forma que a realidade se apresente: o “Entwurf [projeto] é a teoria de um aparelho neurônico em relação ao qual o organismo

permanece exterior, assim como o mundo exterior” (idem, ibidem: 62) (ênfases minhas). Entende-se que nesse ambiente, “neurônios” não sejam “neurônios” em sentido estrito, mas objetos teóricos modificados pela teorização freudiana. Acompanhamos, assim, a dissolução do discurso organicista no Projeto de

37 Garcia-Roza (1991) sublinha que o outro não é mero cuidador. O choro, descarga motora diante da Q interna, é demanda ao outro e, portanto, registro simbólico: é “importantíssima função secundária da comunicação”, como disse Freud.

38 Le Gaufey (1997), ao discutir o termo representação (Vorstellung) no Projeto, enfatiza que o investimento relacionado à percepção do objeto é denominado de “imagem de lembrança” que pode ser amigável ou hostil. Essa “imagem de lembrança” refere-se ao objeto que existiu, o que se distingue da representação. O autor nota que Freud só vai mencionar a representação quando ocorre um novo estado de desejo e não há objeto real. O investimento é nas representações, sem relação com a percepção e, portanto, tem autonomia para articular-se com qualquer referente.

65 Freud. Passo claro nesta direção é a observação de que os sistemas ϕ e Ψ são

inconscientes – são inconscientes e quantitativos. Freud caminha e diz que a

“tomada de consciência” envolve uma questão de qualidade - na consciência estabelecem-se relações de semelhanças e diferenças, relações, estas, que não estão no mundo externo; ali: “só existem massas em movimento e nada mais” (FREUD, 1895/1977, p. 410).

O sistema Ψ – aparelho de memória - deve diferenciar entre percepção e representação. Freud explica que sensações conscientes são qualidades e constituem um terceiro sistema: sistema ω ou sistema de percepção-

consciência. É este sistema que fornece signos de realidade (de qualidade)

para o sistema Ψ. A transformação de quantidade em qualidade decorre, em Freud, da noção de período, retirada da Física Mecânica. “Período” seria o ritmo do movimento que se propaga: é ciclo temporal não-quantitativo, mas qualitativo. Esse ciclo ritmado se manifesta em sensações de prazer e

desprazer (quando há o aumento da energia no sistema Ψ, o sistema ω

sinaliza sensação de desprazer, por exemplo). Temos aqui, com a introdução do sistema ω, considerações sobre a relação entre consciente (sistema ω) e inconsciente (sistema Ψ), sendo este último, segundo Freud, regido pelo

princípio de prazer e o ω governado pelo princípio da realidade.

Resumidamente: energia exógena (Q) entra no sistema ϕ e, aciona a operação da função primária, que produz descarga motora. Parte de Q é também transferida para o sistema Ψ – este, como vimos, recolhe estímulos endógenos contínuos (Qn) e um quantum de Q – necessita, então, reduzir essa descarga dirigida a ele. A questão é que, cada Qn não tem, por si, força (intensidade) suficiente para ultrapassar a resistência da barreira de contato. A solução freudiana é que essa ultrapassagem é facilitada pelo mecanismo de trilhamento39 - próprio da memoria -:

(...) em relação à passagem da excitação, a memória é

evidentemente uma das forças determinantes e

39 A palavra alemã Bahnung, traduzida por facilitation na versão inglesa, aparece no seminário 7 (LACAN, 1959-60/1995, p. 53) como trilhamento Sobre isso, ele diz: “[...] Bahnung é traduzido em inglês por facilitation. É óbvio que essa palavra tem um alcance estritamente oposto, Bahnung evoca a constituição de uma via de continuidade, uma cadeia, e penso até que isso pode ser aproximado a cadeia significante [..] A tradução inglesa deixa a coisa escorregar completamente”.

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orientadoras de sua direção, e, se a facilitação fosse idêntica em todos os sentidos, não seria possível explicar por que motivo uma via teria preferência sobre outra (FREUD, 1895/1977, p. 401) (ênfase minha)

Pois bem, a soma das energias endógenas (Qn) é responsável pela definição de uma trilha preferencial para a passagem da excitação de um neurônio ao outro. Este movimento pode levar (ou não) à consciência. Após tal ultrapassagem, as barreiras ficam resistentes novamente. Vemos aqui esboçado um conceito que, mais tarde, será teorizado como “recalque”. Esse trilhamento é regido pela lei de associação por simultaneidade (investimento simultâneo de neurônios) – só com essa soma de esforços haverá ultrapassagem da barreira através de um caminho em detrimento de outros. O grupo de neurônios investidos - que organizam o trilhamento; interferem no percurso e inibem a descarga de energia endógena (ligada a alguma experiência de desprazer) - é denominado Ego. Na figura abaixo, Freud desenha o trilhamento:

(FREUD, 1895/1977, p.429).

Qn (acima e á esquerda) excita o a, mas transfere apenas parte da

descarga ao neurônio b (abaixo). O grupo de neurônio ego altera o percurso de descarga inicial – esse investimento simultâneo (ab) facilita a passagem pela barreira de contato, mas, também, inibe o escoamento livre de descarga (processo primário), funcionando como uma defesa. O caminho ab é facilitado, evitando outras possibilidades. Freud qualifica o neurônio a com a coisa (Das

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Ding) – que, assinala Lacan, não ser aproximada de representação-de-coisa40. Com Freud, leia-se, na figura acima que o neurônio a é constante (um elemento estranho, não representável pelo aparelho Ψ, diz KAUFMANN, 1993/1996, p. 85), e que o neurônio b (a representação) é variável.

O sistema ω, como vimos, indica signos de realidade ao Ψ. Ego pode, por isso, receber sinais de prazer ou de desprazer. Tal suposição impõe, segundo Freud, a necessidade de introduzir um mecanismo de atenção

psíquica, para manter o sistema Ψ voltado às percepções. Entende-se porque:

“não somente não é tudo que dá entrada no aparelho psíquico, como também não é qualquer coisa” (ANDRADE, 2003, p. 93). De fato, Lacan (1959- 60/1995) afirma que o sistema ϕ não é um “amortecedor”, mas que tem “o papel de um crivo” e retira disso a consequência de que:

(...) temos aqui, da mesma forma, a noção de profunda

subjetivação do mundo exterior - alguma coisa tria, criva de

tal maneira que a realidade só é entrevista pelo homem, pelo menos no estado natural, espontâneo, de uma forma

profundamente escolhida. O homem lida com peças

escolhidas da realidade (idem, ibidem, p. 63) (ênfase minha).

A memória aparece no Projeto (como na Afasia) como repetição de

determinados caminhos facilitados por trilhamentos anteriores, que

estabelecem redes associativas. Memória, então, conclui Freud, é mecanismo

inconsciente que depende da intensidade da tensão e da frequência da experiência. Ora, falar em memória enquanto “caminhos”, “redes

associativas”, em “mecanismo inconsciente” é afastar qualquer suposição de memória como estocagem de sensações, eventos:

A memória é determinada por marcas mnêmicas que são ordenadas pelo quantun de energia que ultrapassa a barreira. É pela diferença entre os “caminhos” que a memória não é um

40 Lacan (1959-60/1995, p. 40) articula Das Ding

com o princípio de realidade do sistema ω.

Das Ding está isolada da experiência do sujeito, está fora do significado, mas é a referência

para o mundo dos desejos – é o “Outro absoluto do sujeito”. No sistema Ψ, regulado pelo princípio do prazer, Das Ding orienta o sujeito na busca do objeto, movimentando as representações.

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processo mecânico pontual, não é a reprodução sempre idêntica de um traço imutável, mas um processo que implica um diferencial de valor entre caminhos possíveis (GARCIA- ROZA, 1991, p. 35).

Na Carta 52 que Freud escreve para Fliess, temos afirmação fortes e mais precisas sobre a memória, que textualmente ali, pode ser “reordenada, retranscrita”:

Como você sabe, estou trabalhando com a hipótese de que nosso mecanismo psíquico tenha-se formado por um processo de estratificação: o material presente em forma de traços da

memória estaria sujeito, de tempos em tempos, a um

rearranjo segundo novas circunstâncias — a uma retranscrição. Assim, o que há de essencialmente novo a respeito de minha teoria é a tese de que a memória não se

faz presente de uma só vez, mas se desdobra em vários tempos; que ela é registrada em diferentes espécies de

indicações. Postulei a existência de um tipo parecido de rearranjo (Afasia). (FREUD, 1896/1977, p. 317).

Assistimos um percurso que é iniciado com o aparelho de linguagem, na Monografia (Afasia) e que culmina num aparelho de memoria (linguístico em sua natureza de trilhamento) que vai sendo precisado e definido ao longo da década de 1890. Certo, parece-me ser o fato de que não há propriamente desvios da rota disparada em 1981, embora ela ganhe em detalhamento e em volume de conceituação. Na carta 52, por exemplo, Freud enuncia que o

material psíquico é representado por traços de memória, dando um passo a

mais em relação aos dois trabalhos anteriores em que ele operava sobre “representações”, “imagens mnêmicas” ou “imagem de lembrança”. Para Lacan, esse desdobramento foi da maior relevância, uma vez que a noção de “retranscrição” de traços mnêmicos, permite que ele diga que a percepção é

inscrita: “não simplesmente em termos de impressão, mas no sentido de algo

que constitui signo e que é da ordem da escrita. [....] A estrutura da experiência acumulada reside aí e permanece aí escrita” (LACAN, 1959- 60/1995, p.67) (ênfase minha).

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