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Diante do quadro exposto acima, a categoria “envelhecimento normal” prevê déficits cognitivo e biológico. Flashman et. al (2003) abordaram algumas pesquisas com idosos saudáveis entre 65 e 95 anos (sem doenças cardiovasculares, diabetes, etc), que observaram declínio psicomotor e atividade elétrica cerebral mais lenta. Os autores contrapõem a estas, outras pesquisas que indicam haver capacidade de reorganização neuronal e preservação da cognição no processo de envelhecimento. Nesta categoria de indivíduos, dizem eles, não há dificuldades com a memória. Segundo Bourgeois e Hickey (2009), pode-se vislumbrar 3 caminhos no envelhecimento cognitivo, quais sejam: (a) declínio “normal” ou saudável” associado ao envelhecimento; (b) prejuízo da memória significativo associado à idade, sem outros aspectos que caracterizam a demência; (c) demência. As autoras, entretanto, apontam para controvérsias sobre o “declínio cognitivo leve”, que pode ser considerado, segundo dizem, um fator de risco à demência. Flashman

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et. al. (2003), acrescentam que, além do quadro “normal”, o envelhecimento cognitivo pode ser alocado nas seguintes categorias diagnósticas:

(a) Declínio cognitivo associado à idade inclui os idosos com déficit cognitivo em diferentes domínios quando comparados ao grupo controle de adultos jovens.

(b) Declínio Cognitivo leve diz respeito ao grupo de idosos com queixa de dificuldades significativas de memória que, se confirmadas por um informante/acompanhante, são indicativas de que um quadro de demência de Alzheimer deve ser investigado. Testes costumam comprovar o declínio patológico da memória (se resultados são comparados com os de grupo controle de mesma idade e nível educacional). Os esquecimentos, mesmo que frequentes, não limitam as atividades cotidianas (o idoso não preenche todos os critérios do diagnóstico de demência).

(c) Demência é um quadro patológico, não esperado no envelhecimento, apesar de sua prevalência ser maior na população acima de 65 anos14. Os sintomas são crônicos e progressivos, podem estar relacionados aos danos cerebrais e caracterizam tipos de demência e etiologias.

O Declínio Cognitivo Leve (DCL) tende a oscilar entre normal e patológico, sendo frequentemente assumido como um estágio pré-demencial (MORRIS et. al., 2001). Charchat-Fichman et. al. (2005) comentam que, em 1999, neurocientistas reunidos em Chicago para caracterizar o DCL, chegaram a três critérios para a classificação dos idosos:

(1) DCL amnésico - risco maior de desenvolver Doença do tipo Alzheimer (DTA);

(2) DCL com comprometimento leve de múltiplos domínios cognitivos - risco de desenvolver outras síndromes demenciais (sendo a DTA uma trajetória possível);

14 Em estudo populacional brasileiro, a prevalência de demência variou de 1,6%, entre os indivíduos com idade de 65 a 69 anos, a 38,9%, entre aqueles com idade superior a 84 anos (CARAMELLI e BARBOSA, 2002).

36 3) DCL com comprometimento de uma única função cognitiva diferente de memória - risco maior de desenvolver demência frontotemporal e/ou afasia progressiva primária.

Os autores afirmam, porém, que todos os grupos poderiam

permanecer estáveis e não evoluir para síndrome demencial. Na prática

clínica, a heterogeneidade dos casos não sustentou tal classificação, dizem eles. Apesar dos esforços realizados, não há critérios clínicos confiáveis para predizer que declínios cognitivos leves correspondam ao início de um quadro demencial. Segundo Charchat-Fichman et. al.,

As principais limitações foram: instabilidade diagnóstica ao longo do tempo, indefinição de testes neuropsicológicos para avaliar funções cognitivas e atividades da vida diária, e ênfase no comprometimento baseado em um grupo controle emparelhado por idade e escolaridade e não em declínio cognitivo (idem, 2005, p. 81).

Outro ponto importante a ser comentado diz respeito ao fato de que, apesar da inclusão da queixa nos critérios diagnósticos, pesquisadores afirmam que “a queixa subjetiva reflete o estado afetivo dos indivíduos e não necessariamente declínio cognitivo” (CHARCHAT-FICHMAM et. al., 2005, p. 81). Assim, nessa dança diagnóstica, “estado afetivo dos velhos”, “presença de queixa de dificuldades de memória” e “falhas em testes neuropsicológicos” promoveram outra necessidade diagnóstica: diferenciar depressão e estados

iniciais da demência. A presença de sintomas depressivos e ansiedade tem

sido, frequentemente, associada à queixa de memória (BARKER, JONES, JENNISON, 1995). A depressão severa em idosos aproxima-se de sinais encontrados nas demências e, por isso, usualmente fala-se em “pseudodemência” nestes casos (BRYAN, MAXIM, 2006).

Damasceno (1999), neurologista brasileiro, descreve o caso de uma mulher com 61 anos, casada, professora de línguas. Ela queixava-se de esquecimentos, como do “o tópico da conversação”. Na rua, dirigindo o carro, “não sabia para onde exatamente estava indo ou devia ir”. A paciente negava

37 ter depressão, mas relatou uma “vivência desagradável” ocorrida um mês antes do início dos sintomas. Ela estava na fila do banco, quando assaltantes invadiram o local. Esta senhora conversou com os assaltantes, pedindo calma, uma atitude que a surpreendeu depois do ocorrido. O teste de Luria apontou leve déficit para memória verbal (lista de palavras) e SPECT15 mostrou “discreta hipoperfusão bitemporal e frontal direita, compatível com doença de Alzheimer” (idem, ibidem, p. 79). Após um ano, os sintomas de memória regrediram. A regressão ou a estabilidade sintomática excluiu a demência, conclui o autor, e faz aparecer a fragilidade do diagnóstico entre demência e depressão. Nota-se que, nesse caso, os exames de imagens e os testes indicavam o início do quadro de DTA. Entretanto, após um ano de tratamento medicamentoso (antidepressivo), o diagnóstico de DTA não pode ser confirmado com a ausência de queixas da paciente, o que determinou o quadro de pseudodemência.

Pode-se dizer que a demência, apesar da participação inegável da etiologia cerebral, erige obstáculos para o diagnóstico médico. Landi (2007) chama atenção para o fato de que a confirmação só pode ser viabilizada numa biópsia cerebral. Desse modo, o rótulo de “patologia” deve ser lido como “provável demência” ou “pseudodemência”, em muitos casos. A medicação para a alegada depressão e/ou demência do tipo Alzheimer é admitida como necessária para a confirmação do diagnóstico. Também, a demência de Alzheimer tem semelhança sintomatológica com o dito Declínio Cognitivo Leve e com depressão. Essas situações e outras parecem mesmo indicar que a Medicina não encontra um quadro puramente orgânico, quando o sintoma é “mental” e/ou linguístico.

Segundo a quarta edição do Diagnostic and Statistical Manual of Mental

Disorders (DSM-IV), mundialmente utilizado, a demência obedece a três

critérios diagnósticos:

(1) prejuízo da memória e mudança em outro domínio cognitivo,

como a linguagem, julgamento, pensamento abstrato e função

executiva;

15 As técnicas de "imagem molecular" denominadas de tomografia por emissão de pósitrons (PET) e da tomografia por emissão de fóton único (SPECT) estudam a química cerebral, neurotransmissão (neurônios pré e pós-sinápticos), assim como outras funções cerebrais (COSTA, OLIVEIRA E BRESSAN, 2001).

38 (2) declínio cognitivo suficiente para modificar tarefas cotidianas e vida social;

(3) declínio em relação a um nível anteriormente superior de funcionamento (EMERY, OXMAN, 2003; BOURGEOIS, HICKEY, 2009). O diagnóstico médico, enfatizam os autores, inicia-se com a anamnese visando mudanças no estado geral de saúde e cognitivo (confirmadas por um informante que acompanha o idoso). A atenção volta-se, desde aí, para a progressão e para a severidade dos sintomas. O exame físico prioriza o sistema cardiovascular e sinais de possíveis doenças que possam, também, alteram a cognição (como diabetes, hipotireoidismo, doenças renais)16. Recomendam-se, em seguida, exames laboratoriais, exames neurológicos de imagens e testes neuropsicológicos.

A Academia Brasileira de Neurologia, segundo Nitrini et. al. (2005), indica, para o diagnóstico da doença de Alzheimer (DA) os seguintes testes e exames: (1) avaliação da memória (como recordação de objetos apresentados em figuras); (2) avaliação da atenção (repetição de sequências crescentes de dígitos após o examinador); avaliação da linguagem17; funções executivas (teste de fluência verbal); conceituação e abstração e habilidades construtivas (desenhos de figuras geométricas) e exames de neuroimagem e de exames laboratoriais para diagnóstico diferencial (CHARCHAT et al, 2001).

Em alguns casos, a classificação da demência depende, exclusivamente, dos sintomas linguísticos. Apresento, no quadro 1.1, uma síntese adaptada da literatura nacional e internacional dos sintomas descritos pela literatura médica como base para o diagnóstico diferencial das demências18. Interessam-nos as descrições linguísticas.

16 Hipertensão arterial crônica, por exemplo, pode contribuir para a demência vascular. 17 Geralmente, utiliza-

se o “Teste de Boston para o Diagnóstico da Afasia”. Esse teste foi elaborado por Harold Goodglass e Edith Kaplan (em 1972 e revisado em 1982) e é um instrumento que compreende vinte e sete subtestes, que visam ao estabelecimento de perfis clínicos da afasia, a partir de um tratamento estatístico.

18 As demências podem ser corticais ou subcorticais. As demências subcorticais são caracterizadas por lesões na substância branca e núcleos da base, ocasionando alteração da memória recente e atraso no processamento cognitivo. Geralmente, estão associadas ao Parkinsonismo, Huntington, doenças vasculares e esclerose múltipla (VICENTE et. al., 2005).

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Quadro 1.1. Classificação das demências corticais (GROVES et. al., 2000;

ALEGRI et. al., 2001; CARAMELLI e BARBOSA, 2002; VICENTE et. al., 2005; GALLUCCI NETO, TAMELINI e FORLENZA, 2005; BRYAN, MAXIM, 2006, BOUGEOIS, HICKEY, 2009).

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Alzheimer (DTA) Frontolateral (DFT) Vascular Corpos de Lewy

Cognição e outras características

Fase inicial: declínio da memória para fatos recentes; Memória semântica pior do que a memória episódica; ansiedade e consciência dos déficits. Intermediária: perda da memória recente e mantém informações da infância e adolescência; distúrbios de planejamento e visuoespaciais. Avançada: Alteração grave de todo o sistema de memória, preservando a memória emocional associada à autobiografia. Alterações precoces de personalidade e de comportamento. A memória e as habilidades visuoespaciais encontram- se relativamente preservadas.

Pode ser de subtipo: 1. Afasia Progressiva Primária (APP) : sintoma exclusivamente linguístico e progressivo. 2. Semântica: pré-senil (antes dos 65 anos); Degeneração de lobos temporais; memória

preservada.

Relação causal entre o evento cerebrovascular e quadro demencial. Depressão e comprometimento funcional . Sintomas extrapiramidais, paralisias de membros, face.

Flutuação dos déficits cognitivos em questão de minutos ou horas,

alucinações visuais bem detalhadas, vívidas e recorrentes. Sintomas parkinsonianos, geralmente do tipo rígidoacinéticos de distribuição simétrica. Nas fases iniciais, a memória está preservada e os comprometimentos são visuoespaciais.

Linguagem Fase inicial:

preservada, exceto pela dificuldade de

Fase inicial: preservada. Fase avançada: Redução

Déficits de linguagem

variáveis. Déficit na fluência verbal e com o avanço da doença tornar-se similar aos

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como uma afasia anômica. Fase intermediária: Afasia transcortical sensorial ou Wernicke (alteração de compreensão); apraxias. Fase avançada: Afasia global, tendência ao mutismo.

da fluência verbal, redução na participação de conversas, alteração na compreensão de metáforas, alterações semânticas. Presença de perseveração e ecolalias na fase avançada. No subtipo APP: Inicialmente, a afasia é anômica e, com a evolução do quadro, torna-se não- fluente.

No subtipo demência semântica: Anomia grave, Alteração de compreensão para palavras; Afasia global na progressão da doença.

42 Nota-se que a vagueza da descrição dos sintomas linguísticos que remetem, basicamente, aos quadros afásicos. Primeiramente, seria necessário indagar se as alterações na linguagem de pacientes com demência são, de fato, afasias. Ao se aproximar de descrições das falas dos pacientes com demência, encontradas na literatura, Emendabili (2010, p. 65) as caracteriza como “pouco linguísticas”:

Na verdade, propostas que se enunciam “neuropsicolingüísticas” são, na verdade, “neuropsicológicas”. Os modelos de processamento explicitados são mentais e a linguagem é função cognitiva. Autores que sustentam posições consistentes com um pensamento linguístico sequer são invocados e explorados [...] Enfim, tudo o que se diz sobre linguagem resvala o senso comum (revestido de uma terminologia científica, diria Chomsky, 1954) (idem, ibidem p. 65).

De fato, não é outra coisa que se pode ver - a clínica médica encaminha discussões diagnósticas e tratamento medicamentoso – drogas que modificam o funcionamento dos neurotransmissores e podem favorecer conter a progressão acentuada ou promover alguma melhora dos esquecimentos. Como lembrou Fonseca (2002), o tratamento médico dedica-se ao cérebro ou à “sede da demência” e faz demandas que são acolhidas por outros campos, em especial pela Psicologia e pela Fonoaudiologia, mas sua direção não muda, como procurei mostrar.

1.4. A clínica Fonoaudiológica nas demências: influência da