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Freud: o aparelho de linguagem, o aparelho de memória

função 32 , conforme ela comparece em A interpretação dos sonhos (FREUD,

2.5. Lembrar e Esquecer

Esquecimentos das palavras, lapsos entre outras ocorrências inesperadas na fala (ou na escrita) foram privilegiadas por serem, segundo Freud, manifestações do inconsciente. Interessa-nos a explicação freudiana para os esquecimentos de palavras, de cadeias, de cenas, que são tão marcantes nas demências (e que não deixam se acontecer com falantes ditos normais). Em Psicopatologia da vida cotidiana (1901), esquecer nomes, pessoas, objetos recebem a mesma explicação. Nos três primeiros capítulos, Freud aborda os esquecimentos de nomes próprios, de palavras estrangeiras e de grupos de palavras – problemas que são designados, na Afasiologia e nos estudos sobre a demência, como anomia. A anomia é, sem dúvida, um sinal frequente no período inicial da demência.

Há motivo para o esquecimento, ou seja, há determinação psíquica para sua ocorrência. Freud assegura, por exemplo, que o nome próprio esquecido tem sempre relação com uma questão “íntima”. Uma “força psíquica”, diz ele, produz “falta na fala” (e/ou na escrita), de forma não muito diversa das que ocorrem em situações de “cansaço, intoxicação e distúrbios da circulação”

em que “a força psíquica rouba meu acesso a nomes próprios pertencentes à

minha memória” (FREUD, 1901/1977, p. 42). Frente a tais considerações,

pode-se dizer que as manifestações de lapsos ou chistes não sejam muito distintas de manifestações linguísticas entendidas como patológicas – casos de afasias e demências, que são favorecidas por “distúrbios de circulação”. De fato, com Freud, é um só mecanismo que explica o normal e o patológico, que dilui, portanto, essa divisão.

É conhecida e exemplar a explicação que Freud oferece para um esquecimento de nome próprio: Signorelli, nome de um pintor italiano é esquecido por ele. Operações fônicas deslocam o nome esquecido para

Botticelli e Boltraffio – havia motivo psíquico para ele ser reprimido. Freud diz:

“eu não desejava esquecer, na verdade, o nome do artista de Orvieto, mas sim outra coisa – essa outra coisa, contudo, conseguiu situar-se numa

conexão associativa com o nome” (FREUD, 1901/1977, p. 22) (ênfase

79 (morte e sexualidade) e os segmentos dos nomes Bósnia, Trafoi e

Herzegovina (que estão em Botticelli; Boltrafio e Signorelii, que escamoteia Herr numa tradução por Signor)49. Vejamos o diagrama abaixo:

Os nomes foram, diz Freud, “manipulados como imagens de um texto” (idem, ibidem, p. 24).

Esse tipo de análise também é viável, acrescenta ele, mesmo quando não se tem falsos nomes (substitutos) na consciência – sua presença ou ausência, associadas ao esquecimento, não é relevante para a explicação deste fenômeno. Contudo,

existem condições necessárias para se esquecer um nome [...]: (1) certa predisposição para esquecer o nome, (2) um processo de supressão realizado pouco antes, (3) a possibilidade de se estabelecer uma associação externa entre o nome em questão e o elemento previamente suprimido” (FREUD, idem, ibidem, p. 24).

Em (1) temos o motivo (desejo e força psíquica); em (2) a repressão de algo que passou para a consciência um pouco antes do esquecimento e em (3) a associação do material psíquico (interno) ao outro sistema consciência- percepção, que produz um elemento novo (pensamento, palavras, o tema do

49 Lacan, em várias passagens de seus seminários, reinterpreta o lapso de Freud. No seminário 5, Lacan sugere que o significante recalcado não é Signor, mas é Sign, o nome próprio de Freud.

80 diálogo). O esquecimento de grupo de palavras, ou sequências não foge a tal mecanismo. Freud conclui:

Empreendi desde então várias outras análises de casos de esquecimento ou reprodução errônea de uma sequencia de palavras, e o coincidente resultado dessas investigações inclinou-me a supor que o mecanismo de esquecimento (...) tem validade quase universal. [...] O comum a todos esses casos, independentemente do material, é o fato de o

esquecido ou distorcido estabelecer uma ligação, por alguma via associativa, com um conteúdo de pensamento inconsciente (FREUD, 1901/1977, p. 41).

Pois bem, para Freud essa via associativa é impulsionada “graças à semelhança no som ou à equivalência sonora” (idem, ibidem, p. 54). Freud observa, em de A interpretação dos sonhos, que as contaminações e substituições sonoras nos lapsos de fala são determinadas pelo trabalho de

condensação (como na construção dos sonhos). Com base em inúmeras

interpretações de lapsos de fala50, ele afirma que aquelas distorções podem ocorrer por influência de sons antecipatórios, perseverantes; por afetação de palavras que se queria falar, por frases contraditórias que estavam na consciência, ou, ainda, por contaminação de palavras ditas pelo interlocutor.

A “falha da memória” manifesta-se na fala, na escrita e também no corpo (em atividades motoras como “equívocos na ação”). Apesar disso e da heterogeneidade aparente dos esquecimentos, Freud insiste em dizer que há uma “unidade interna [a esse] campo de fenômenos” (idem, ibidem, p. 201) – pontuação que é do maior interesse para este trabalho que procura fazer um giro no entendimento do que acontece nas demências e busca um caminho que não se não reduza o sujeito a mero efeito da doença cerebral, como se ele não tivesse uma história, como se esse acontecimento cerebral não produzisse, nele, sofrimento.

Acompanha-se o movimento de Freud na elaboração do aparelho psíquico, como um aparelho de linguagem e um aparelho de memória. Desde

50 Os exemplos utilizados por Freud são retirados da literatura, especialmente do trabalho de Meringer e Mayer, e também da fala de colegas, pacientes e da própria fala.

81 os textos pré psicanalíticos, não há desvio de caminho: rompe-se com o dualismo memória e linguagem sustentado pela psicologia. Explode-se a relação entre domínios heterogêneos e independentes. Entretanto, isso não significa que memória e linguagem sejam equivalentes na obra freudiana. Então, qual é a natureza dessa relação?

Em A afasia (1891/1979), o aparelho de linguagem é uma rede que associa “impressões mnêmicas” – um funcionamento de linguagem operando nos sistemas de memória. O referente, o encontro com a realidade, ocorre na associação entre o sistema de representação-de-palavra e representação-de- coisa.

Interessante é que aquilo que nos chega à consciência-percepção está articulado à cadeia linguística. As representações-de-palavras são restos-de- lembranças acústicas, visuais e cinestésicas e, portanto são restos das cenas

linguísticas. Nesse ponto, essas lembranças são constituídas pela linguagem

e, portanto, memória é determinada pelo simbólico. Ainda assim, reconhecer o jogo simbólico não nos permite sustentar que memória é linguagem.

Freud submete a memória ao funcionamento do aparelho – a memória é trilhamento - e põe em jogo a dupla função da linguagem, como assinalou Lacan (1959-60/1995). Assim, admite-se que o inconsciente tem propriedade de estrutura, como a linguagem e, também se dá ao encontro do sujeito com a realidade, como função comunicativa.

A partir da segunda tópica, a cisão entre dois sistemas Ics e Cs está diluída e, portanto, o aparelho psíquico não é Um – é tomado pelo recalcamento, por uma parte do Eu – o não-sabido- e do Supereu. O “Id é o caos”, sem organização, como sublinhou Freud (1923/2006, p. 36). Como disse Garcia-Roza (1991, p. 227): “é apenas por economia expositiva que falamos em ‘um aparelho de linguagem’, ‘um aparelho psíquico’, etc. Um aparelho

psíquico nunca é um”.

No que concerne às demências, dois pontos merecem ser destacados para os próximos capítulos:

(1) O que chega à consciência foi autorizado pela censura. Desse modo, lembrar e esquecer são determinados pela censura. Os distúrbios de circulação, com ocorre com as afasias e as demências vasculares, favorecem a anomia, mas não eliminam a explicação de um

82 determinante psíquico para a falta de um nome na fala. O que essa determinação psíquica significa para uma Clínica de Linguagem? (2) A memória consciente está intimamente relacionada à representação

verbal. Assim, o que o sujeito lembra precisa articular-se à cadeia linguística. Essa passagem à consciência orienta o sujeito no mundo, um encontro com a realidade. È exatamente esse ponto que dissolve com a demência.

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Capítulo 3

A senhora Lili: